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Crítica

Distintos vagabundos embebidos pela farsa

4.12.2014  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Rafael Mendes/Captura.Me

Os quatro amigos escudeiros do cachaceiro-pai da ralé assumem o leme do narrador da novela A morte e a morte de Quincas berro d´água, de Jorge Amado, esgarçando ainda mais as contradições entre o homem de passado burguês e aquele que gozava a malandragem em grande estilo. Adaptado e dirigido por Daniel Porpino, o espetáculo Quincas (2012), do Grupo de Teatro Osfodidário, de João Pessoa, emerge aspectos arquetípicos do subúrbio soteropolitano e receptivos no imaginário nacional.

A encenação e a apropriação da prosa parecem desenhar um pensamento alvissareiro para revisitar com distanciamento o livro do final da década de 1950, mas a atuação cai no canto da sereia ao retratar os tipos de Amado com linearidade cômica, supervalorizada, diluindo camadas poéticas e oníricas contidas na dramaturgia e expondo preocupação constante com as deixas textuais ou marcações espaciais.

Que o quarteto marginal tome a voz narradora e cole o personagem-título a eles – como o texto original o faz lá pelas tantas, com o morto-vivo bonachão que ri no caixão e dá seus pitacos –, isso é uma solução inspirada.

Se o romancista baiano carrega na tinta satírica, também mistura elementos férteis ao realismo mágico. Vide o morto-vivo no devaneio da emissão oficial de seu atestado de óbito até a “derradeira” morte de Quincas – quando o corpo oculto de espírito presente cai no mar durante uma tempestade. Pois a montagem sinaliza disposição para um meio termo entre esses afluentes expressivos, o que não se sustenta ao longo da apresentação, predominando o registro da farsa com o qual o elenco é mais familiarizado.

Curió (interpretado por Fabíola Morais), Pastinha (por Dudha Moreira), Pé-de-Vento (por Odécio Antonio) e Cabo Martim (por Thardelly Lima), cavaleiros dos botecos, gafieiras, mercados e jogatinas resultam eles mesmos mais uma constelação de figuras, principalmente aquelas da família de Joaquim Soares da Cunha, o aposentado cinquentão que abandonou mulher e filhos e foi reinar na zona de meretrício.

O espelhamento moral entre as vidas pregressa e presente do velho Quincas refletem distorções, prato cheio para o trivial burlesco plasmado na gestualidade e na enunciação aceleradas. Como estabelecer contrapontos no cerne do humor popular? O grupo demonstra consciência da questão. Acontece que as brechas para a dosagem se esvaem.

Essa perspectiva não conversa intimamente com o envoltório mítico basilar verificado, por exemplo, na recorrência da água em cena, metáfora do mar, das garrafas de aguardente, das lágrimas graciosas e sinceras. O sincretismo é outro aliado, além das canções corais e do som percussivo extraído de objetos como barril ou uma carcaça de geladeira no espaço cenográfico em semi-arena e repleto de luzes de vela. Sente-se falta dessa multiformidade no trabalho de ator. De alguma agudeza n’alma em meio ao deboche.

Em tempo: Osfodidário é, também, corruptela de Dario Fo, o dramaturgo e comediante italiano, um farol para o grupo, que dele montou A farsa do poder.

.:. Texto produzido para publicação a ser organizada pela Mostra Internacional de Teatro da Paraíba, a MIT PB, aqui. O jornalista viajou a convite da organização do festival.

Atores do grupo paraibano Osfodidário em ‘Quincas’

Ficha técnica:
Texto: Jorge Amado
Direção e adaptação: Daniel Porpino
Atuação: Ana Marinho/Fabíola Morais, Dudha Moreira, Odécio Antonio e Thardelly Lima
Realização: Grupo de Teatro Osfodidário

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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