Menu

Crítica

Impressões portuguesas

23.12.2014  |  por Fernando Marques

Foto de capa: Pedro Soares

Dou a estas impressões o tom pessoal que meras impressões costumam implicar. Falo aqui sobre teatro em Portugal, mas nem de longe considero que as cinco ou seis vezes que fui ao país bastem para ter e transmitir, dos espetáculos e textos que se produzem lá, uma ideia ampla ou assertiva. Posso garantir, no entanto, que são impressões anotadas com interesse genuíno.

Estive em Portugal pela primeira vez em 2005, e me chamou a atenção a qualidade técnica de seus espetáculos. Os lusos têm 800 anos de prática cênica: “O testemunho mais antigo que se conhece de manifestações teatrais na Idade Média portuguesa remonta ao ano de 1193”, informa Luiz Francisco Rebello em História do teatro. Rebello contesta a noção de que o teatro em Portugal só tenha brotado em 1502, quando se representou o Auto da visitação, o primeiro do vasto repertório de Gil Vicente.

Se o domínio de palco me pareceu boníssimo, nem sempre, por outro lado, os aspectos propriamente artísticos e ideológicos coincidiram com as minhas expectativas. Assim, por exemplo, o espetáculo Amália, de Filipe La Féria, dramaturgo, compositor e encenador de musicais, tratava a diva como o mito que ela de fato se tornou – mas não estamos obrigados a apreciar mitos ou mitificações, certo?

Talvez pese o fato de que, no Brasil, embora adulemos os nossos ídolos, sejamos menos reverentes para com eles. Registrei o que vi à época, há quase uma década, em matérias para jornal. Outro episódio que então me causou estranheza foi o esforço de uma hábil montagem, baseada em autores estrangeiros (Camus e Lorca), em sublinhar de modo estrito a referência a Portugal (mais que a qualquer outro país), ao denunciar as relações de poder entre os sexos. O que se fez vestindo a protagonista com as cores da bandeira lusa.

Em espetáculo pleno de sutilezas (chamava-se Equerma, da companhia Karnart), que envolvia palco dotado de mecanismo giratório (pequenos bonecos dispostos sobre mesas rodavam em torno da atriz), a marca demasiado óbvia me pareceu desnecessária. Procuro entendê-la: Portugal viveu a necessidade histórica de singularizar-se, sobretudo frente à Espanha, o que ainda se faz sentir por lá. Essa terá sido a motivação para os portugueses rejeitarem, com escândalo, as modestas mudanças do acordo ortográfico? Há também a memória imperial.

Prometi falar sobre o bom, por vezes ótimo teatro luso e aqui estou a me perder em considerações improvisadas… Avisei que eram impressões! Pois. Quero chegar ao seguinte: o mito Amália, tratado tão literalmente no espetáculo que vi no Porto há nove anos, com direito a erguer-se a intérprete nos ombros de uma dupla de atores, à maneira do que se concede às rainhas e às santas, é abordado de forma bem diversa em outro espetáculo do mesmo La Féria. A montagem de 2014 chama-se Portugal à gargalhada e lida com a figura de Amália irreverentemente, mostrando-a num quadro que satiriza a “panteonite nacional”, ou seja, a mania dos heróis.

Saídos de túmulos postos à vista do público, a escritora Sophia de Mello Breyner, o poeta Almeida Garrett, este vindo do século XIX, a referida Amália Rodrigues e, depois, o jogador Eusébio saltam das tumbas para conversar animadamente sobre o dia a dia. A cantora então se revela egocêntrica, falastrona, autoritária (Sophia mal pode abrir a boca). Os mitos existem para ser desmontados.

O gênero das revistas está vivo por lá. No início de 2014, pude ver em Lisboa o espetáculo Tropa-fandanga, do Teatro Praga, que acha graça (criticamente) de desgraças como a Primeira Guerra Mundial, iniciada há um século, e a guerra colonial portuguesa na África, encerrada com a Revolução dos Cravos em 1974. As revistas Tropa-fandanga e Portugal à gargalhada acham-se muito bem providas de recursos materiais e de boa técnica para utilizá-los, o que atinge extremos de luxo e virtuosismo em Portugal à gargalhada – os figurinos e telões de José Costa Reis impressionam, para não falar do maquinário eletrônico. O espetáculo é conduzido por comediantes experientes, ladeados por jovens igualmente bons. O modelo Broadway, embora somado a fontes musicais lusas, esquematiza ou tipifica a cena, talvez em excesso. Canções e arranjos operam exatos, e há quadros cômicos impagáveis (como o citado), alguns deles escritos em verso.

A revista de ano 'Portugal à gargalhada', de La FériaDivulgação

A revista ‘Portugal à gargalhada’, de La Féria

O mencionado vigor material não constitui a regra. Ao contrário, parece ser a exceção – o que em parte se pode atribuir à crise que maltrata o país há alguns anos. Tartufo, texto de Molière adaptado e encenado por Hélder Costa com o elenco de A Barraca, tem o seu apelo no trabalho dos atores, jovens na maioria, acompanhados por grandes veteranos, a exemplo de Maria do Céu Guerra. O saber-fazer português comparece ao espetáculo, mas cenários e figurinos não me animaram, de saída. Em conversa informal, ouço que a montagem contou com apenas 30 por cento dos recursos inicialmente previstos. O jogo dos intérpretes, de todo modo, ganha o público.

Pude comprar dois livros com peças de Hélder Costa, autor de obra extensa. Li uma delas, a dentadas, ainda em Lisboa: chama-se Um homem é um homem – Damião de Góis (de 1981). Hélder empresta forma dramática à vida do humanista português Damião de Góis (1502-1574), intelectual prestigioso, de ideias generosas e arejadas, que desafia os conservadores e é preso pela Inquisição – em trajetória representativa da derrota do humanismo frente à intolerância da Contrarreforma. Outra peça, esta de 2004, intitula-se Os renascentistas e transforma Gil Vicente, Góis, o comediógrafo Chiado, o aventureiro Mendes Pinto e Camões em personagens. A Barraca é grupo conhecido no Brasil, onde mostrou espetáculos e obteve boa acolhida nos jornais.

A partilha de dinheiro, público ou privado, parece tão desigual em Portugal quanto neste país. Uma reforma agrária no campo de batalha da cultura seria bem-vinda por aqui, e lá também.

Ficha técnica:
Portugal à gargalhada
Texto, música, encenação e concepção cenográfica: Filipe La Féria
Atuação: Marina Mota, Joaquim Monchique, José Raposo, Maria João Abreu, Paula Sá, Ricardo Soler e outros 17 atores e bailarinos
Coreografia: Marco Mercier
Figurinos e telões: José Costa Reis
Direção musical: Mário Rui Teixeira
Dramaturgia: Helena Rocha
Assistência de encenação: Nuno Guerreiro
Chapéus e adereços: Luís Stoffel
Direção vocal: Tiago Isidro
Vídeos: Lobo Mau/Cabra Cega
(Em cartaz no Teatro Politeama, em Lisboa, até junho de 2015)

Ficha técnica:
Tartufo
Texto: Molière, com adaptação de Hélder Costa.
Encenação: Hélder Costa.
Atuação: Maria do Céu Guerra, João Maria Pinto, Adérito Lopes, Carolina Parreira, Ruben Garcia, Samuel Moura, Sérgio Moras, Sónia Barradas, Teresa Mello Sampayoe Tiago Barbosa
Cenografia e figurinos: Maria do Céu Guerra
Sonoplastia: Ricardo Santos
Iluminação: Paula Vargues e Fernando Bello
Relações públicas/secretariado: Inês Costa e Paula Coelho
Design gráfico/cartaz: Arnaldo Costeira e Mónica Lameiro
Estagiário de cenografia: Roi Dominguez
(Em cartaz no TeatroCinearte A Barraca, em Lisboa).

Professor do departamento de artes cênicas da Universidade de Brasília (UnB), na área de teoria teatral, escritor e compositor. Autor, entre outros, de ‘Zé: peça em um ato’ (adaptação do ‘Woyzeck’, de Georg Büchner); ‘Últimos: comédia musical’ (livro-CD); ‘Com os séculos nos olhos: teatro musical e político no Brasil dos anos 1960 e 1970’ e ‘A província dos diamantes: ensaios sobre teatro’. Também escreveu a comédia ‘A quatro’ (2008) e a comédia musical ‘Vivendo de brisa’ (2019), encenadas em Brasília.

Relacionados