Crítica
5.12.2014 | por Mateus Araújo
Foto de capa: Guga Melgar
Os 450 anos de William Shakespeare quase passaram despercebidos pela cena teatral pernambucana, no tangente a grandes apostas de montagens. Quase passou, não fossem duas versões pontuais de Rei Lear, encenadas neste ano. A primeira, com dramaturgismo e coadaptação de Luís Reis e direção de Marianne Consentino, foi uma adaptação para a estética mambembe do clássico, apresentada no início do ano. A segunda, um experimento do carioca Moacir Chaves, que estreou no Recife em novembro. Dona de uma estética de desconstrução afiadíssima, a montagem explora as ferramentas visuais e sonoras do teatro para construir um trabalho pautado no olhar característico do diretor, que utiliza a voz do ator como eixo central da interpretação.
Tragédia escrita em 1606, Rei Lear conta a história de um rei que enlouquece após ser traído por duas de suas três filhas, às quais havia deixado seu reino de maneira insensata. Na obra original do bardo inglês, 12 personagens compõem a trama. Moacir Chaves, por sua vez, dividiu os papeis entre as três atrizes Paula de Renor, Sandra Possani e Bruna Castiel, que desenvolvem em cena um jogo curioso e confuso. As mulheres se revezam entre os personagens, sinalizando cada um deles com placas dispostas por todo o cenário. Há a sensação na plateia de que alguns personagens entram no enredo sem sequer serem apresentados. Em pouco mais de uma hora de peça, é possível se perder na história, por culpa da adaptação da dramaturgia.
Por outro lado, Moacir Chaves leva a plateia a enxergar a obra de Shakespeare com um viés diferente do comum. O texto poético (todo escrito em verso), cuja estrutura gramatical foi rigorosamente preservada nesta adaptação, ganha pontuações interessantes. Utilizando uma técnica que lhe é de costume, Moacir recorre à amplificação das vozes de suas atrizes através dos microfones espalhados no palco. Os equipamentos – parte fundamental da montagem – dão carga emotiva e sublinham aquelas frases que precisam ser “gritadas” sob o olhar do diretor. A opção, que até causa estranhamento, deixa perceptível um teatro no qual se destaca o experimento em detrimento à teatralidade. Rei Lear de Moacir nos apresenta um Shakespeare onde dizer (bem dito) vale mais do que interpretar apenas com o gesto. Isso serve bem a Bruna Castiel e Paula de Renor, mas por vezes foge de Sandra Possani, a mais corporal de todas.
Se a estética de Moacir faz de Rei Lear algo bastante particular nas interpretações, o mesmo acontece na trilha sonora, uma peça fundamental nesta montagem. O som executado ao vivo, em cena, pelos músicos Tomás Brandão (que assina a direção musical com Miguel Mendez) e Samuel Nóbrega, nos dá essa carga esquizofrênica em que o monarca se encontra, ainda evidenciando o caráter de desconstrução a que se propõe o diretor. Com um sintetizador polifônico analógico e uma guitarra, Tomás e Samuel desenham o excelente som erguido por ecos, reverberações e interferências.
O cenário do espetáculo, criado por Fernando Mello da Costa, nos remete a uma sala de julgamento, com altos bancos e mesas onde ficam os microfones e onde as atrizes passam boa parte da peça. Somado à luz feita por Aurelio di Somini, que desenha essa complexidade de sentimentos e de personagens de maneira eficaz, formam um complexo bonito e bem resolvido. O figurino de Chris Garrido iguala todos os papeis, chamando a nossa atenção para aquilo que eles dizem e não o que representam.
Ficha técnica:
Autor: William Shakespeare
Diretor: Moacir Chaves
Atuação: Bruna Castiel, Paula de Renor e Sandra Possani
Iluminação: Aurélio de Simoni
Cenografia: Fernando Mello da Costa
Figurinos: Chris Garrido
Trilha sonora: Tomás Brandão e Miguel Mendes
Operação de luz: Beto Trindade
Execução da trilha sonora ao vivo: Tomás Brandão e Samuel Nóbrega
Projeto gráfico: Clara Negreiros
Preparação vocal: Carlos Ferrera (1ª fase); Luciano Brito/ Acorde´s Escola de Música(2ª fase)
Cenotécnico: Cristóvam Sovagem
Confecção adereços: Manuel Carlos
Confecção de figurino: Edilene Melo (Catirina)
Produção executiva: Elias Vilar
Produção geral: Paula de Renor
Realização: Remo Produções Artísticas e Centro de Diversidade Cultural Teatro Armazém
Formou-se em Jornalismo pela Universidade Católica de Pernambuco e cursa o mestrado em Artes Cênicas na Universidade Estadual Paulista (Unesp), desenvolvendo uma pesquisa sobre masculinidade no teatro, com foco na obra do Grupo Magiluth. Escreve para a Folha de S. Paulo, UOL Entretenimento e revista Continente. Foi repórter de cultura do Jornal do Commercio, de 2011 a 2016, e titular do blog e da coluna Terceiro Ato. Integrou o núcleo de pesquisa da Ocupação Laura Cardoso (2017), do Itaú Cultural. Coordena a equipe de comunicação da SP Escola de Teatro. E é membro da Associação Internacional de Críticos de Teatro (AICT-IACT).