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Artigo

Notas sobre estética e política na MIT 2015

17.3.2015  |  por Kil Abreu

Foto de capa: Ligia Jardim

Mesmo com o recorte curatorial razoavelmente preciso, amparado nos eixos que foram propostos para a MIT 2015, que por um momento recaem sobre temas, assuntos e em outros sobre meios implicados na criação, é uma evidência que o diverso se impõe porque em qualquer caso os contornos desse campo anunciado se alargam na mesma medida em que os temas se transformam em questões de pensamento nem sempre pacíficas e os jogos com a linguagem se renovam a cada um dos trabalhos apresentados na Mostra. Mas, se o diverso é uma evidência é preciso então investigar as suas nuances. Porque uma crítica que se conforma à constatação da diversidade ou à sua mera descrição é uma crítica natimorta. Exije-se, pois, para sair fora dessa condição, certo espírito de uma aventura possível de pensamento.

Este encontro tem ao menos dois temas anunciados: matrizes da cena atual e as relações entre estética e política. Eu decidi me concentrar em um destes eixos (estética e polítca) e em uma única montagem, Arquivo, o trabalho do coreógrafo israelense Arkadi Zaides; e, ainda, na repercussão de alguns aspectos do enfrentamento entre forma artística e processo social. Ao final faço uma breve panorâmica que tenta localizar esta montagem no contexto da MIT e, a partir da Mostra, provoco algumas extensões na direção da conjuntura que atravessamos agora.

Minha fala é , pra usar um termo que também vem do teatro, um gesto de ensaio, no sentido do levantamento de algumas hipóteses e possibilidades em que eu vou convocar além das minhas impressões as coisas que eu li e ouvi de alguns outros parceiros e parceiras aqui nessa edição da MIT. Creio que é uma maneira de experienciar a discussão estética assim como a ideia de política através do próprio discurso. Alerto, entretanto, que as citações, quando aparecerem, são por minha conta e risco. Os citados não têm nenhuma responsabilidade sobre as relações lançadas aqui.

Arquivo e a mímesis radical

Proponho abrir a porta do espetáculo nos termos de uma mímesis radical. No sentido imediatamente político do termo, mas, antes mesmo disso, eu penso, no sentido linguístico. Então, objetivamente: “radical” como aquilo que se refere à raiz.

Trata-se de uma partitura física que define o seu desenho gestual, os seus ritmos, dinâmicas, planos e modos de ocupação do espaço, qual seja, as suas formas e variações, a partir de um conjunto de referentes que não estão “assimilados” à coreografia no sentido de informações e inspirações (sociais, teóricas, filosóficas, afetivas, técnicas) segundo uma operação mais ou menos usual na dança, qual seja: a transmudação, a re-apresentação dos materiais de origem em chave ‘estética’. Em Arquivo, como vimos, sem que se precise falar necessariamente em “improviso”, porque eu creio que não é disso que se trata, ali não só a coreografia em si como os seus referentes são explicitados no mesmo movimento em que o ato coreográfico se anuncia, em uma extensão direta entre a raiz da imagem e a sua apresentação no plano cênico.

É quando podemos então intuir que todo o processo de formalização da montagem desde logo se mostra interessado em investigar as possibilidades de fazer do corpo o suporte não apenas da estilização dos materiais, mas da sua, vamos dizer, retenção psicofísica em termos aproximadamente literais e deliberadamente precários, brutos, se o ponto de vista for o da expectativa por um acabamento plástico. Como se se tratasse de um esboço cuja condição eleita é permanecer como esboço e cujo objetivo é fazer essa aproximação radical entre arte e vida tomando como campo de ação aqueles modos da sociabilidade em confronto que o espetáculo resgata – o conflito entre israelenses e palestinos.

Em apoio, acidental ou não, a essas disposições estéticas há algo que aparece como um poderoso delineador dos sentidos nesta montagem e que a cruza de ponta a ponta. Ou ao menos na maneira como ela se apresenta a nós, brasileiros, que não conhecemos em maioria o idioma: trata-se da supressão das legendas, da tradução das falas gravadas, dos diálogos nos momentos de conflito. Esta supressão é significativa em pelo menos dois aspectos mais ou menos evidentes: primeiro, a intuição de que as palavras seriam mesmo insuficientes, seriam elementos de todo modo dispensáveis porque já não dão conta de suportar o real. A possibilidade de estabelecer dialética através da palavra nos soa supérflua, como se a linguagem estivesse imobilizada em uma das suas funções. Como se o dia-logos nos soasse inútil. Somos capazes de ler as linhas do conflito sem que um Agon se firme por meio da troca de argumentos. Paradoxalmente, entretanto, essa interdição da linguagem leva não a um fechamento, como se poderia supor, mas, lida no corpo do Arkadi, a uma intensificação do que a gente pode chamar aproximadamente de ‘sentimento trágico’, no sentido atribuído por Raymond Williams: de que o trágico não depende da estrutura da tragédia na concepção clássica. É histórico e se institui entre outras coisas a partir de pontos de vista, de lugares e condições de classe.

Sequência da atuação do israelense Arkadi ZaidesLigia Jardim

Sequência da atuação do israelense Arkadi Zaides

Aqui, nestas circunstâncias particulares de recepção, o trágico se institui então como matéria bruta, apresentado por via de uma mediação (legendas) bastante objetiva e elementar das sequências de gravações. As possibilidades de leitura e codificação das imagens se dão por meio dos nossos repertórios e percepções prévias a respeito do conflito e, no plano mais específico da obra, por esse rebatimento contínuo entre as imagens projetadas na tela e as respostas físicas do performer, de uma maneira que se por um lado nós temos como ponto de inflexão o momento presente, hiperatualizado (pois se trata de matéria documental em um contexto de cena também documental); por outro esse hiperpresente é também o lugar simbólico de convergência de outros tempos que incidem ali subliminarmente, em olhares para o passado do confronto, como a lembrar que somos todos a nossa História inteira; e em olhares para um futuro que, intuímos, não promete nenhuma resposta àquela dança-pergunta. Uma dança que por insistir nas repetições parece só redesenhar na sua ordem cíclica, enfim e paradoxalmente, “um mundo sem tempo”, como diria Antonio Candido a respeito de outro contexto.

A tentativa de superação, então, tem que ser buscada em outros termos. Sem precisar anular as contradições em jogo e mesmo diante do impasse, a escritura e reescritura que aparecem nas dinâmicas de composição do espetáculo inventam um dispositivo novo: o corpo de Arkadi se recria como lugar de utopia. Porque, sendo o corpo-território de um cidadão israelense, e tendo este corpo uma posição clara, ele elege, escolhe, decide, arquiteta ali uma ágora impossível visto que os agentes não estão na mesma condição política. É quando percebemos que o estético e toda a possibilidade da beleza – se é que ainda podemos falar nestes termos – é projetado não apenas da coreografia, se tomada como objeto “em si”. O estético é projetado necessariamente através daquilo que não é a criação “em si”, qual seja, é projetado do seu contexto indissociável, dos seus modelos vivos e em embate.

Então salvo engano no projeto do artista esse trânsito entre o estético e o político, que por motivos agora óbvios aparecem ao nosso olhar apresentados num mesmo lance, é sustentado em um compromisso ético, um acordo que o Arkadi faz com aqueles materiais escolhidos por ele. As projeções documentais em tela e toda a problemática que ela coloca em pauta são documentos graves sobre relações determinadas: de mando e submissão – institucionalizados ou não – , liberdade e contingência e, portanto, relações frontais de poder; mas que deixam vazar também, deliberadamente, ao menos nos recortes eleitos, as formas muitas vezes vistas por nós não como a parte central, mas acidental das relações de poder, quais sejam: os modos complexos e truncados do afeto.

Esta percepção é possível sobretudo quando a montagem nos dá a ver as maneiras como a vida pública e a vida privada têm suas fronteiras perturbadas, borradas e postas à prova através daquelas mediações que se anunciam já, de antemão, “falhadas” porque sempre baseadas na violência como pressuposto. São exemplares nesse caso as cenas das crianças bêbadas naqueles acessos de ira; os incêndios fortuitos dos campos palestinos; as diversas passagens de apedrejamento, expulsão, enxotamento. Na performance do Arkadi não à toa esses momentos todos se organizam formalmente em uma composição “intencionada” em que fica clara, por exemplo, a insistência no procedimento de retomada, de repetição. Não necessariamente de representação, mas de presentação reiterada dessas passagens.

No depoimento que ele deu no encontro do Itáu Cultural, apresentado pelo Bernardo Carvalho, o fundamental, me parece (ao menos do ponto de vista dele, que não precisa ser necessariamente o nosso) foi a preocupação em ressaltar um princípio que, pela natureza específica do projeto, nos fala diretamente sobre as questões de forma sem esquecer as de fundo , qual seja: a tentativa de fazer ver, nas dramatizações sobre o corpo ou através do corpo (falo em ‘dramatização’ não no sentido de gênero), fazer ver aquilo que, para ele, uma parte de Israel se recusa a ver apesar das evidências. E então é preciso sublinhar a evidência. Daí, parece claro, o gosto pelo uso dos recursos documentais. Literalmente, na fala dele: “Incorporar no meu próprio movimento essas imagens é uma maneira de dizer: esse somos nós”.

O exercício em busca de uma forma que não só remeta à ideia de alteridade – de reconhecimento do outro na sua condição de diferença – mas que crie nos campos da arte, formalmente, uma experiência de alteridade, é que gera todas as implicações políticas e estéticas do projeto. Uma tarefa artística difícil porque precisa articular a um só tempo proposições que deem conta de promover a escuta de velhas questões que continuam pautando os encontros e desencontros entre forma artística e processo social. E que disparam uma vez mais a nossa atenção, por exemplo, para as relações possíveis entre autonomia e determinação dos processos criativos; e, junto com isso, para o agenciamento necessário das expectativas de recepção.

Controvérsia

Sem querer me alongar aqui, lembro apenas, tão somente para ilustrar, o dia desse encontro já citado entre o Arkadi e a plateia que estava lá para ver o trabalho, em que a Bia Medeiros colocou de uma maneira contundente uma questão muito interessante. Ela falou que julgava o espetáculo “hipócrita” porque salvo engano (parafraseio) na visão dela o trabalho e os seus significados possíveis se articulam nos contornos de uma micropolítica, que dá conta daquelas questões apenas no âmbito das relações interpessoais, o que favorece o dimensionamento dos problemas em termos morais e religiosos quando há – e creio que isso é ponto pacífico porque, é claro, há mesmo – uma regência exterior ao conflito, instâncias maiores de poder, que na montagem não são explicitadas.

É uma preocupação que dá o que pensar. Faço então algumas colocações e algumas perguntas, que não se dirigem apenas a ela, são para todos nós.

Obra é baseada em imagens filmadas por palestinosLigia Jardim

Obra é baseada em imagens filmadas por palestinos

Primeiro, creio que esta não é uma questão ociosa, especialmente nesse caso. Porque neste trabalho as conexões entre forma e meio são bastante explícitas. Então independente do julgamento e da discussão, dos desdobramentos que se possa fazer a partir da questão da Bia – ela é pertinente. E, mais importante: a pertinência não é acidental, é central, dialoga fundamente com as proposições formais que o espetáculo apresenta. Todo o sentimento e a valoração são viáveis justo porque representam alguns dos possíveis que estão na forma da montagem e na problemática que essa “expressão formada” gera. Aliás, é só assim que isso tudo nos chega como sentido, como significação.
Por outro lado, há uma pergunta que é: o quanto é possível, no caso, agora pensando em um trato entre nós, espectadores, e a cena, promover a escuta dessas proposições sem julgá-las? Qual é o limite dessa negociação particularmente aqui e quando reclamamos uma ampliação do olhar do artista? O trato ético que ele faz com os seus materiais é extensivo, naqueles termos da alteridade, a um trato necessário entre nós e a cena?

Quanto a possibilidade de uma outra leitura em que se possa projetar o plano estético sobre o político, ou vice versa, em outras bases, acompanho um argumento que talvez possa ser útil aqui, ainda que tenha sido aplicado em outro contexto, que é do Jean-Pierre Sarrazac em um livro dele já antigo sobre a questão do drama tardio, quando ele se refere à recorrência dos solilóquios na cena e de como certas narrativas são articuladas de uma maneira que aquilo que em princípio, num solo tradicional, tende a levar o narrado para o ensimesmamento, acaba resultando, por operações próprias, no contrário disso. Ambos os trechos têm um contexto específico e se referem a autores. Ele também fala em termos de “personagem”, o que não é o nosso caso. De todo modo creio que talvez o princípio seja próximo da nossa questão. Diz ele:

“Pouco importa que a personagem seja mundialmente célebre ou desconhecida porque ela é englobada num processo coral. É atravessada de ponta a ponta pelas aspirações, pela submissão, pelas revoltas, pela condição de uma categoria social ou de todo um povo”. E depois: “A subjetividade destes autores é diretamente política. Não se alimenta do ego solitário de um escritor, mas da combinação discordante das vozes de uma época (…) Esta voz, que transforma o autor em sujeito épico, é contígua ao teatro e à realidade; percorre os caminhos mistos da arte e da vida. Além disso, detém o poder de suspender e de retomar o desenvolvimento da peça. Engrena e problematiza”.

Me parece útil, em uma associação livre, para ajudar a pensar o trabalho do Arkadi porque a partir daqui nós podemos dizer que nele esta dimensão épica (não no sentido estrito do gênero, mas de um desejo de visão ampliada do mundo que caracteriza a “disposição” para a forma épica), nele essa disposição está também dada, sem que com isso ele precise abrir mão de ler estas questões, que têm implicações amplas – históricas, sociais – em chave, vamos dizer, íntima. É como se ele estabelecesse uma relação de justaposição entre aquelas vidas cotidianas (se é que a ideia de cotidiano pode ainda ser aplicada aqui) e os processos históricos; entre a problemática existencial e a tragédia coletiva.

No limite, pode-se também dizer, seguindo esse argumento, que certa visão singular da politicidade – a dele – só será possível nesta perspectiva e que, naturalmente, se a forma muda – porque é disso também que estamos falando- a qualidade da fricção entre estética e política também muda. Por isso talvez sejam inegociáveis os dois eixos narrativos e estruturais do trabalho: primeiro, o ponto de vista da câmera, que é parcialmente o do olhar palestino (digo parcialmente porque a operação de seleção dos materiais que foram à cena também define em parte o ponto de vista) ; e, segundo, a performação daquelas composições gestuais pelo Arkadi. Esses dois eixos se dinamizam, ganham estrutura e movimento através de um discurso cênico que não dispensa e, pelo contrário, empenha inteiramente, o ser ético através da forma, em um pacto que não é, como vimos, com a representação de uma posição exterior a ele, mas uma posição, como diria longinquamente Artaud, entranhada na própria carne. O que para mim também quer dizer: não só no corpo físico como também no corpo social que está ali simbolicamente presente.

Como último ponto de diálogo a essa interlocução com a Bia há uma coisa que lembrei e que acho bonito. É uma sentença famosa do Adorno naquela fala dele sobre lírica e sociedade, quando contrasta poesia e ideologia. Ele diz que “a poesia revela [ou desvela, depende da tradução] aquilo que a ideologia esconde”. E é também disso que aqui se trata: de uma operação poética que se coloca a tarefa de, partindo da arte, desafiar a ideologia – no sentido de uma consciência falsa que se cria sobre o real para que as evidências se naturalizem, para que deixem de ser problemáticas, para que se petrifiquem em certeza (quando digo ‘petrifiquem’ lembro o quanto a pedra e os seus usos é recorrente naquelas imagens). Enfim, acho que sem que o Arkadi tenha precisado dizer isso em termos filosóficos ou teóricos é isso o que ele FAZ e é este o jogo que ele nos propõe ver e colocar em movimento.

Zaides transpõe raiz da imagem para o plano cênicoLigia Jardim

Zaides transpõe raiz da imagem para o plano cênico

MIT, Brasil

Pra terminar, eu acho que, pelo menos sob uma determinada maneira de pensar esse tema que foi proposto aqui, cruzando texto e contexto, é indispensável dizer que um pouco antes e nesse momento mesmo em que a gente discute há uma narrativa sendo escrita no corpo social, do lado de fora [entre manhã e tarde de domingo, 15/3]. E ela comporta ao seu modo uma parte das formas, símbolos e tensões que a gente pôde ver nestes dez dias de MIT. Não estamos todos na mesma posição, claro, não estamos mesmo. Mas, da posição periférica em que nós estamos é possível vislumbrar uma teia de relações que nos inclui.

Há aqui na nossa porta um país estourando nas ruas, para “se representar” em um momento bem delicado, que a gente não sabe se é um momento de “re-fazimento” da sociabilidade, e então mesmo de dentro da virulência e da incerteza um momento de abertura para a superação das convenções que organizam as nossas narrativas, com as dores que um processo de amadurecimento e reescritura política acarreta; ou se é simplesmente a repetição dessas mesmas convenções, que nós vivemos há cinco séculos e que se caracteriza como uma histórica indefinição a respeito do que somos, do que representamos ou do que podemos ser e representar efetivamente no futuro próximo.

De uma maneira ou de outra são narrativas não pacíficas, que nesse momento têm a sua configuração própria: seus diferentes imaginários, seus atuantes e métodos de atuação; suas visualidades específicas, seus modos de ocupar espaço e de pensar os desdobramentos dessa escritura que a gente não sabe onde vai dar.

Sem querer abrir aqui outra porta, ao escrever essas notas eu lembrei de uma coisa bonita que foi o encontro com o Zé Miguel Wisnik, que comentou o espetáculo que estreou na MIT, o Canção de muito longe e fez um apontamento livre e que primeiro me pareceu descabido, mas que depois eu li como uma fala de artista e achei bacana: ele comentava, entre outras coisas, sobre como uma forma teatral rigorosa, altamente disciplinada, projeta o plano da intimidade de um jovem executivo – o personagem da peça – que “se fez” no coração do império (Nova York) e durante a sua, digamos assim, ‘narrativa de passagem’ relata em chave íntima, pra usar uma expressão do Zé Miguel, “hipercool”, não menos que o atravessamento mortal de uma época inteira, configurada pelo desencantamento que pauta o espetáculo. E de como o inusitado, aquilo que ainda pulsa como matéria vital, é apresentado na figura absolutamente lateral de um… brasileiro. Que cruza a trama por não mais que uns dez minutos se contarmos pelo tempo da representação.

Assistindo ao espetáculo eu tive dúvida, acho que muitos tiveram, sobre se esse personagem brasileiro existe mesmo no texto original. Se não teria sido um desses artifícios pra fazer uma aproximação com o lugar onde o espetáculo está sendo apresentado. Mas, o fato é que isso na verdade não importa porque o acidental, se for o caso, pode perfeitamente ser assimilado como parte do essencial porque foi assim que, enfim, nós vimos. Foi assim que essa dramaturgia nos foi oferecida e é assim que nós, entre outras possibilidades, a podemos ler. Então, para voltar ao Zé Miguel: ele dizia que é esse personagem lateral – Marcelo -, vindo da periferia do capitalismo, quem traz na bagagem o que ele chamou de “excedente de vida” que chega pra bagunçar uma ordem que caminha – toda ela – para anular a vida.

Minha impressão é que neste momento mesmo em que a gente ensaia aqui essas relações entre estética e política a nossa “prova do palco” é saber se essa afirmação do Zé Miguel, que a MIT através do espetáculo holandês colocou na roda como um objeto de conhecimento, se essa percepção certamente idealizada mas altamente otimista, se sustenta como algo efetivo na sequência histórica ou não. Se vamos conseguir ou não caber nesse figurino e dar o salto. E, talvez mais importante que isso: dar o salto pra onde?

Eelco Smits na encenação do holandês Ivo Van HoveLigia Jardim

Eelco Smits na encenação do holandês Ivo Van Hove

Para terminar, eu digo que essa percepção sobre a indefinição no Brasil não está muito distante de um sentido mais geral que talvez costure os espetáculos que estiveram nesta edição da MIT – esses arranjos de forma e pensamento por vezes enigmáticos, violentos, líricos, estranhos, alinhados à tradição ou rebeldes a ela – totalmente rebeldes a ponto de tocar frontalmente as suas questões tabus (como a gente vê por exemplo no Stifters dinge, que sequestra os atores de cena); ou mesmo aparentemente alinhados às convenções mais firmes de uma parte do teatro moderna, como no trabalho dos colombianos do Maldita Vanidad em que o repertório e os recursos de um realismo stricto sensu nos mostram um mundo que resiste a aceitar as fissuras e os estilhaçamentos da vida e do sujeito que há muito já se operaram – toda a experiência do século XX no teatro foi para tentar dar conta disso. Talvez estejamos vivendo o paroxismo – ou a rebordosa – dessa experiência, enfim. Me refiro apenas a estas duas montagens para citar as que acho exemplares não em termos de valor artístico, mas em termos de um diálogo com as tradições do teatro, as suas possibilidades de reabordagem ou de confronto. É claro que as linhas de fuga da Mostra foram bem mais diversas, dentro deste intervalo que vai de uma ponta a outra.

De todo modo, felizmente na maior parte das montagens vimos um teatro altamente provocativos. De uma maneira que talvez seja necessário, para uma aproximação honesta diante desse quadro diverso e nem de longe pacífico, recorrer às recomendações de Drummond naqueles versos famosos da Procura da poesia:

Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?

.:. Artigo elaborado no contexto da fala da mesa de reflexão estético-política Zonas de intersecção: matrizes da cena atual, realizada em 15/3 no auditório do Itaú Cultural, uma das atividades da ação Olhares Críticos durante a 2ª MITsp. Participaram também Josette Féral, José Antonio Sánchez e Luiz Fernando Ramos, sob mediação de Fernando Mencarelli.

Jornalista, crítico, curador de teatro. Dirigiu o Departamento de Teatros da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, publicou no jornal Folha de S.Paulo e foi coordenador pedagógico da Escola Livre de Teatro de Santo André. Compôs os júris dos prêmios Shell e APCA. Assinou curadorias para Festival de Curitiba, Festival Recife do Teatro Nacional, Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto, bem como ações reflexivas para a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp). Edita, com Rodrigo Nascimento, o site Cena Aberta – Teatro, crítica e política das artes, www.cenaaberta.com.br. É membro da IACT – Associação Internacional de Críticos de Teatro.

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