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Crítica

Um mundo para além do humano

15.3.2015  |  por Maria Eugênia de Menezes

Foto de capa: Mario del Curto

Sabe-se que é possível fazer teatro sem palco, sem figurino, sem cenário. Pode-se abdicar da iluminação. Até do texto aprendemos a abrir mão, quando a encenação ganhou independência do drama. Mas haverá um limite? Teatro sem atores ainda é teatro?

Em Stifters dinge, uma das obras apresentadas durante esta edição da Mostra Internacional de Teatro (MITsp), o diretor alemão Heiner Goebbels responde à questão colocando a plateia diante de uma grandiosa engenharia – composta de máquinas, imagens e instrumentos musicais – na qual se prescinde da presença humana.

Não é a primeira vez que a cidade acompanha esse feito: em 2010, o canadense Denis Marleau trouxe a São Paulo Os cegos, uma montagem que utilizava apenas projeções em 3D. Naquele caso, porém, a figura humana – mesmo que ausente corporalmente – ainda colocava-se como centro da obra. Havia 12 rostos com os quais o espectador poderia identificar-se. A radicalização de Stifters, portanto, não está somente na maneira como abdica dos intérpretes. Mas em como se põe a criar um mundo inteiro no qual essa ‘humanidade’ seja supérflua.

Uma inversão desses lugares de protagonismo está em jogo aqui. O espectador acompanha um universo em que tudo aquilo que costuma estar a serviço do ator – a luz, a música, os elementos cenográficos – surge agora em primeiro plano.

Goebbels forja uma arte que crê na existência da “coisa em si”. Um dos grandes nomes da encenação contemporânea, o diretor corre o mundo preconizando o seu ‘teatro da ausência’: a única presença é a do próprio público. Não existe sentido dado a priori. Nada quer significar nada. “Sentido é aquilo que o espectador provê para aquilo que vê”, define ele.

Antes que a grande instalação seja posta para funcionar, o público observa três tanques serem enchidos de água. A partir daí, choverá em cena, haverá neblina. Veremos pianos cujas teclas se movimentam sem que ninguém as toque. Teremos acesso ao interior de seus mecanismos e à beleza de sua existência mecânica. (Goebbels define a criação como um ‘concerto para pianos sem pianistas’). Há ainda uma floresta de galhos que se colocará em movimento – tal como ocorre na cena clássica de Macbeth.

O alemão Heiner Goebbels em palestra da MITsp

A aparência de grande instalação, certamente, aproxima o espetáculo das artes visuais. O que não o exime de sua teatralidade. As imagens e os textos estão pautados para entrar em cena em momentos precisos. São rachaduras pelas quais entrevemos esse além-mundo.

Ouve-se o trecho de um escrito de Adalbert Stifter, o autor e artista austríaco conhecido por suas minuciosas descrições de florestas e campos. Em uma entrevista, Levi-Strauss dá conta de sua vocação etnográfica e da descrença no futuro do homem.

Com formação musical, Goebbels concebe uma trilha que não quer criar ambientes ou conduzir emoções. Quais seriam, afinal, as emoções despertadas por esse constructo polissêmico? Os galhos retorcidos, a gravação de vozes de povos primitivos, a imitação da névoa – o natural só surge como recriação, miragem de um tempo morto. As máquinas estão no comando e dão notícia de um porvir distópico, em que a vida não existe (ou poderia não existir) mais.

.:. Publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo, Caderno 2, p. C6, em 14/3/2015.

.:. O site da MITsp, aqui.

Crítica teatral, formada em jornalismo pela USP, com especialização em crítica literária e literatura comparada pela mesma universidade. É colaboradora de O Estado de S.Paulo, jornal onde trabalhou como repórter e editora, entre 2010 e 2016. Escreveu para Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas, como o Circuito Cultural Paulista, e jurada dos prêmios Bravo! de Cultura, APCA e Governador do Estado. Autora da pesquisa “Breve Mapa do Teatro Brasileiro” e de capítulos de livros, como Jogo de corpo.

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