Crítica
Proibido para menores de 16 anos, o mais novo espetáculo do Clowns de Shakespeare deveria estender sua restrição a todo e qualquer representante da tradicional família brasileira. A menos que estejam todos dispostos a enfrentar um necessário debate sobre os valores humanos, sociais e políticos levados diariamente de casa para o meio da rua ou fazendo o caminho inverso.
Escrito pelo jornalista e dramaturgo venezuelano Gustavo Ott e dirigido pelo carioca Renato Carrera, Dois amores y um bicho fecha a trilogia de espetáculos do Clowns assinados por autores sul-americanos contemporâneos sobre o contexto político e social da América Latina. O elenco conta com Titina Medeiros, César Ferrário e João Júnior.
A trilogia foi iniciada em novembro de 2014 com Abrazo, livremente inspirada n’O livro dos Abraços, do uruguaio Eduardo Galeano, e seguiu já em 2015 com Nuestra senhora de las nuvens, do dramaturgo argentino radicado no Equador Arístides Vargas.
O texto de Ott tem origem no calor das manifestações políticas de 2004 na Venezuela, quando chavistas e a oposição duelaram nas ruas de Caracas pelo poder político do país. A distância para o Brasil é meramente geográfica. O texto cai como uma luva no meio do radicalismo polarizado dos debates nacionais que por vezes descambam para a violência de lado a lado.
Essa conexão que o espectador faz em poucos minutos de espetáculo revela o quão semelhante são as divergências envolvendo os vizinhos latino-americanos. A digestão do público é lenta, gradual e segura durante quase duas horas de peça.
A história gira em torno do assassinato de um cachorro a pontapés por um pai de família homofóbico. Ao tentar justificar para a filha os oito meses em que ficou atrás das grades, o homem alega, inicialmente constrangido, que matou o animal por se tratar de um cão homossexual.
A primeira pedra que os atores atiram no público vem da construção do núcleo familiar. A filha do casal é interpretada pelo ator João Júnior. Não há qualquer sinal de caricatura em cena. O que existe é tão somente a liberdade do teatro a serviço da reflexão.
O enredo se passa na casa de uma família pequeno-burguesa e num zoológico, usado como metáfora do mundo. As jaulas de cada animal denotam fases do comportamento humano.
Ponto para a iluminação de Ronaldo Costa que transformou em grades a luz minimalista do espetáculo.
Os personagens são de fato psicologicamente trabalhados a partir da relação animal do homem. No fundo, somos feitos do mesma essência, gritam as entrelinhas.
É necessário pontuar que o trabalho de expressão corporal do ator César Ferrario é emblemático e dá uma contribuição enorme para aproximar o homem de seus medos, de seu interior. O gorila na jaula que abre o espetáculo joga luz sobre o ser humano inerte, em estado bruto, insensível ao que virá adiante.
Na pele de Pablo, representante da tradicional família burguesa, Ferrario cospe falsos valores, expõe preconceitos e revela que os bichos fazem parte da construção do indivíduo.
A tensa cena do tigre em que Pablo e Karen discutem a relação depois de se refestelarem num jantar de carne crua é o estopim para a explosão do cidadão comum. O tigre é o surto, o homem em completo transe. Numa sociedade machista, a mulher é a vítima coadjuvante.
A mesma analogia cabe ao Estado, com seu aparato repressivo e opressor a partir da instrumentalização da tortura psicológica. É assim no interrogatório de Karen e da filha. Ou na repercussão do crime quando vale a máxima de que cachorro que morde o homem não vira notícia, mas o contrário é capa de jornal.
Contemporâneo, Dois amores y um bicho critica a formação da opinião na tradicional família brasileira ao dialogar com a televisão e expor a seletividade da imprensa como parte de um todo.
O espetáculo tem 1 hora e 40 minutos. O desconforto do Barracão chega a interferir na visão integral do desenrolar das cenas. Mas nada que deponha contra a República Bolivariana do Clowns.
Cena curtaTeatro experimental
O Centro Experimental de Teatro foi reativado pela Fundação José Augusto sob a coordenação do diretor João Marcelino. Como a sede do CET ainda enfrenta um imbróglio na justiça, o Teatro de Cultura Popular vai funcionar como a casa provisória das oficinas. Marcelino decidiu começar com ações de leituras dramáticas. A primeira foi apresentada ao público quinta-feira passada (26/3). Seis atores encenaram o clássico Um bonde chamado desejo, de Tennesse Williams. A ideia é levar as leituras para o interior. Caicó e Assu serão as próximas cidades visitadas.
.:. Publicado originalmente no jornal Tribuna do Norte, caderno Viver, em 28/3/2015.
Ficha técnica:
Texto: Gustavo Ott
Direção: Renato Carrera
Com: Titina Medeiros, César Ferrário e João Júnior
Direção musical: Marco França
Trilha sonora: Gabriel Souto e Marco França
Iluminação: Ronaldo Costa
Cenografia: Rafael Telles
Figurinos: João Marcelino
Preparação corporal: Ana Cláudia Viana
Preparação vocal e direção de texto: Babaya
Projeção em vídeo: Johann Jean
Assistente de direção: Márcia Lohss
Jornalista nascido em Brasília e radicado em Natal (RN) desde 1998. Foi repórter do Diário de Natal, Tribuna do Norte e repórter especial do Novo Jornal. Também coordenou o núcleo de audiovisual e novas mídias da secretaria municipal de Cultura em Natal. É autor da biografia O Homem da Feiticeira - a história de Carlos Alexandre (edição do autor, 2014).