Reportagem
Pródigo no registro e narrativa de sua história, sobretudo nas últimas duas décadas, o Grupo Galpão vem da Belo Horizonte natal para protagonizar em São Paulo, no Itaú Cultural, na noite de quinta-feira, 30, o lançamento de uma coleção de livros com dez volumes, outros dois livros avulsos, um box duplo de DVD e um CD, além de promover a exibição do trecho de um documentário que produziu. A concentração de fôlego é paradigmática do pensamento, da prática e do desejo de compartilhar 32 anos de memória. Razão para celebrar ainda os 17 anos de seu braço para ações culturais e artísticas, o Centro Cultural Galpão Cine Horto, localizado na mesma rua da sede do grupo, a Pitangui, no Horto, bairro da zona leste na capital mineira.
O pacote de lançamentos motiva a realização da mesa-redonda “Memória e compartilhamento dos processos internos de criação e gestão de um grupo teatral”, com os atores Eduardo Moreira e Chico Pelúcio, juntos desde os primórdios do núcleo, e do gestor e produtor cultural Romulo Avelar.
Dentre os produtos, as Edições CPMT (Centro de Pesquisa e Memória do Teatro, unidade que preserva a história do espaço e do grupo) reedita os quatro primeiros volumes da coleção Diários de montagem e lança outros seis títulos inéditos.
Cofundador do grupo, Eduardo Moreira assina sete dos dez relatos em que são esmiuçados cada processo de criação, ou seja, bastidores preciosos tanto para as mulheres e os homens das artes cênicas como para o espectador minimamente familiarizado com a trajetória desse grupo de atores. A maioria das criações envolve diretores convidados e profissionais do corpo, da voz e da música, para ficar em três elementos basilares em todos os trabalhos apresentados a céu aberto ou em palcos.
Moreira escreve sobre as montagens de A rua da amargura: 14 passos lacrimosos sobre a vida de Jesus (1994), O inspetor geral (2003), Um homem é um homem (2005), Till, a saga de um herói torto (2009), Tio Vânia: aos que vierem depois de nós (2011) e Os gigantes da montanha (2013) – leia trecho abaixo -, além de registrar uma experiência de convívio que não desaguou numa obra em si, mas serviu para pensar no que montar, Encontro com Paulo José, convidado a encenar o inspetor de Gógol e o homem de Brecht.
Já o escritor Cacá Brandão, dramaturgista em Romeu e Julieta (1992), Um Molière imaginário (1996) e Partido (1998), assina os respectivos relatos que foram publicados pela primeira vez em 2003, ao lado de A rua da amargura, pela Editora UFMG.
Também na seara dos livros, Chico Pelúcio, que está à frente do centro cultural, autografa Galpão Cine Horto: uma experiência de ação cultural, enquanto Romulo Avelar lança Do Grupo Galpão ao Galpão Cine Horto: uma experiência de gestão cultural.
A filmografia do grupo ganha um box duplo com duas passagens antológicas na Praça do Papa, em Belo Horizonte, conhecida pela afluência de milhares de espectadores em manifestações políticas ou culturais, como se viu na remontagem de Romeu e Julieta, em 2012, e na estreia de Os gigantes da montanha, no ano seguinte, ambas encenações de Gabriel Villela, parceiro instaurador de poéticas memoráveis dessa biografia coletiva – vide ainda A rua da amargura. Como os melhores registros digitais, os discos adicionam documentários sobre os bastidores.
Também no segmento audiovisual, a noite de quinta na avenida Paulista contará com a exibição de um trecho do documentário Primeiro sinal – história do teatro em Belo Horizonte dos primórdios até 1980, codirigido por Pelúcio e Rodolfo Magalhães. O filme enreda artistas de várias gerações, preenchendo lacunas ao traçar um panorama da produção teatral na cidade.
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Por fim, um CD reúne canções de Till, com a música de caráter cigano conduzindo a trilha, e Os gigantes da montanha, impregnado do cancioneiro popular italiano, à maneira dos sucessos do festival de San Remo.
Parte dos lançamentos teve patrocínio do Banco Itaú e apoio do Itaú Cultural ao Galpão Cine Horto. Já a manutenção do grupo é patrocinada há 14 anos pela Petrobras.
E como exemplo das ações do Cine Horto, o projeto “Cena Espetáculo”, que acontece desde 2008, estreia amanhã sua sétima edição com Rosa choque, do coletivo Os Conectores. A obra foi concebida pelos atores Cris Moreira (Consuma-se) e Guilherme Théo (Aqueles dois), sob direção de Cida Falabella. A ideia é reverberar a pauta constante do feminismo e pôr em cena a mais antiga das dualidades humanas: a relação homem-mulher. O duo de atores pretende explorar a construção de identidade e papeis de gênero, expondo o que a sociedade tem padronizado e questionando o que é comportamento feminino e o que é comportamento masculino nos dias que correm.
Serviço:
Lançamentos do Grupo Galpão e Centro Cultural Galpão Cine Horto
Onde: Itaú Cultural – Sala Vermelha (Avenida Paulista, 149, próximo à estação Brigadeiro do Metrô, tel. 11 2168-1776)
Quando: Quinta-feira, 30/4, às 19h
Quanto: entrada franca para a mesa-redonda “Memória e compartilhamento dos processos internos de criação e gestão de um grupo teatral”; box com dez volumes da coleção Diários de montagem, R$ 130; livros Do Grupo Galpão ao Galpão Cine Horto: uma experiência de gestão cultural (336 páginas), R$ 70, e Galpão Cine Horto: uma experiência de ação cultural (204 páginas), R$ 50; box duplo de DVD com Romeu e Julieta e Os gigantes da montanha, R$ 60; CD de Till e Os gigantes…, R$ 20. Mais informações no site do Grupo Galpão, aqui.
Serviço:
Rosa choque
Onde: Galpão Cine Horto (Rua Pitangui, 3.613, tel. 31 3481 5580)
Quando: Sexta e sábado, às 21h; domingo, às 19h. De 1º a 17/5
Quanto: R$ 20
Trecho:
Diário de montagem do espetáculo Os gigantes da montanha
O Galpão exala nervosismo e apreensão. Chegou o primeiro dia da mostra dos workshops individuais em que cada ator deverá fazer uma apresentação de seu personagem. É um tipo de trabalho que deve trazer a marca individual de cada um para a elaboração do conjunto. O coletivo precisa ser um reflexo da marca impressa por cada um. É chegada a hora de cada ator imprimir sua digital nesse esforço coletivo que começa a ser erguido.
Cinco trabalhos estão escalados para o dia de hoje – Júlio como Spizzi; Inês como Use; Simone fazendo Sgriccia; Arildo como Conde; e Teuda fazendo a Assombração da Vila. A indicação é que cada um utilize uma música, componha um personagem com maquiagem e figurino e utilize texto da peça.
Todos os atores fazem um aquecimento vocal com Francesca. Os que se apresentam hoje fazem os exercícios já maquiados e semicompostos. Existe muita tensão no ar como se cada um fosse passando internamente suas falas e suas cenas. A meta é trazer a experiência pessoal para o contexto dos exercícios montados.
Júlio apresenta um Spizzi com nariz de palhaço azul, que lhe dá certa estranheza, e encarna bem a figura romântica e exacerbada do personagem. Transparece em todo o trabalho uma perturbação de fundo sexual. Marcelo relaciona a libido com priapismo do enforcamento. Júlio utiliza muito bem um dos armários para fazer Ilusionismo do enforcamento com os pés pendurados. Francesca lembra que há na interessante ligação entre a tradição popular do melodrama e do circo com a modernidade norte-americana de vanguarda dos beatniks. Júlio se torna altamente sedutor e o nariz ajuda a suscitar a bipolaridade entre violência e romantismo. Existe algo de cabaré cubista e de Jim Morrison em sua composição. Quando ele desafina, no começo da canção Ciao amore, nossa preparadora fica encantada com “o poder poético da desafinação, que se torna um elemento dionisíaco”. A música italiana traz um misto curioso de algo cafona e, ao mesmo tempo, transgressor.
Em seguida, vem Inesinha com um exercício muito bem executado e cheio de indagações e perguntas sobre a personagem de Use. Ela começa no palco italiano com Use deitada sobre um carrinho de mão. A composição feita com um belíssimo pano estampado colorido faz lembrar uma ópera de Jerôme Savary. Na cena em que Use faz o monólogo inicial da Fábula do filho trocado, ela faz um jogo do grito das mulheres com a estampa do quadro O grito, de Munch, desenhado na parte de dentro do seu figurino. Outro momento mágico se dá quando a personagem se refere à noite negra e ela desvenda um pano preto que sai de dentro do armário. As metáforas e as alegorias aparecem com muita naturalidade e o efeito especial é produzido com simplicidade. Gabriel elogia a desmedida e o desregramento que existem no trabalho de atriz de Inês. O jogo é muito apropriado para Use, que já entra na peça num grau acima de representação. Em seu depoimento sobre o trabalho, Inês revela que pensa a personagem sobre a dicotomia da diva que entregou sua vida à arte e não teve uma vida pessoal e nem pôde se entregar à maternidade. Gabriel levanta a comparação com personagens como Cliteminestra, Jocasta e Hécuba. Francesca diz que a primeira parte do teatro a fez lembrar-se de Orfeu e Eurídice
A terceira cena apresentada é a de Arildo fazendo o Conde. É a única cena em que ele repete a mesma encenação em dois espaços diferentes, o palco italiano e o elizabetano. O espaço italiano trouxe mais à tona a fragilidade do personagem. Francesca diz que a primeira “foi mais vitoriana e a segunda fez brotar um Rodolfo Valentino”. Na cena em que o Conde vê os fantoches, Arildo abre um armário cheio de bonequinhos de pano e Barbies de plástico.
Simone, como Sgriccia, mergulha no universo de Bispo do Rosário. Ela utiliza elementos como um cata-vento de papel na cabeça, vassouras, espanadores. Tudo pintado de branco com um figurino que lembra um fantasma. As conexões são multas. Gabriel diz ter se lembrado da solidão de um carnavalesco que volta sozinho para casa ainda portando sua fantasia. A figura do “louco de Deus” fica muito presente. O figurino é quase uma instalação. Francesca evoca as figuras voadoras de Chagall. Há algo da solidão de Paris, Texas, de Wim Wenders, como um personagem em que a casa é o próprio corpo e ele não tem lugar no mundo. O momento mais pungente do exercício é quando ela utiliza um acalanto de Dorival Caymmi para evocar a presença do Anjo Cento e Um.
O último exercício do dia é apresentado por Teuda, que faz uma assombração da Vila de Cotrone. Seu personagem, montado por Gabriel, Rosa e Marcelo, é de uma incrível dubiedade. Ao vê-lo, não sabemos se rimos ou ficamos apavorados. Há algo de autorretrato de Frida Kahlo na concepção. Gabriel se lembra do filme peruano La teta assustada. O comentário geral é que basta soltar a figura da Teuda em cena que ninguém mais presta atenção em mais nada, tal é o seu poder de sedução.
.:. Trecho de Os gigantes da montanha, páginas 57-60, décimo volume da coleção Diários de montagem (Edições CMPT).
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.