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Artigo

Da utilidade do teatro de Alfred Jarry

21.5.2015  |  por Dirce Waltrick do Amarante

Foto de capa: Ligia Jardim

No final do século XIX, os simbolistas se mostraram fatigados com o teatro naturalista, que seria o “falso por definição”, como afirmou Édouard Émile Dujardin.

Para os simbolistas a atmosfera do drama deveria surgir da poeticidade do texto,como pregava o ensaio Da inutilidade absoluta da encenação exata, de 1891, escrito pelo poeta e ensaísta Pierre Quillard: “A palavra cria o cenário, assim como todo o resto”.

A intensão dos simbolistas era não só suprimir todo o cenário construído realisticamente, como também suprimir a presença física dos atores, “homens necessariamente disformes, incapazes de fazer o público admitir que são os deuses que macaqueiam”, como alertava Dujardin.

O poeta Stéphane Mallarmé, autor de uma peça inacabada, Herodíade, também sonhava com um teatro sem personagem e sem ação. Mallarmé dizia preferir a leitura ao espetáculo.

A partir das ideias simbolistas, Alfred Jarry (1873-1907), um jovem francês excêntrico, dá uma verdadeira guinada nas concepções teatrais e funda, como afirmam os estudiosos, a estética moderna.

Em 1896, Jarry publica, em Mercure de France, o artigo Da inutilidade do teatro no teatro, uma referência óbvia ao texto de Quillard, destacando sua dívida para com os simbolistas, ainda que “os estudiosos do simbolismo considerem a peça de Jarry apartada dos princípios poéticos do movimento, especialmente pelo viés iconoclasta e pelo traçado grotesco e caricatural das personagens”, como destaca Sílvia Fernandes.

O fato é que, em Da inutilidade do teatro no teatro, Jarry defende, assim como defendiam os simbolistas, que o teatro não deveria oferecer qualquer espécie de ilusão da realidade. Além disso, seu texto defendia o artifício na criação da personagem, liberando os artistas da pretensão de recriação de um ser humano real.

No que diz respeito ao cenário, Jarry pregava que ele não deveria mais ser onírico (nisso distancia-se dos simbolistas), mas sim um lugar abstrato, meio improvisado, incoerente, inacabado e falso.

Em dezembro do mesmo ano, poucos meses depois da publicação de “Da inutilidade do teatro no teatro”, Jarry estreia a sua peça Ubu rei, concebida primeiramente para o teatro de bonecos. O título remete vagamente a Édipo rei, de Sófocles, e parecia anunciar mais uma tragédia clássica. “Realmente”, diz Otto Maria Carpeaux, “ao levantar-se o pano, os espectadores viram as colunas de um templo grego, embora com a palavra École (Escola) na arquitrave e um coro de comparsas providos de máscaras. Acostumados ao estilo declamatório do Théâtre Français, esperavam ver o ator principal avançar para a ribalta, pronunciando versos racinianos […]”. Mas, para a surpresa geral, o ator Firmin Gémier, no papel do rei Ubu, dirigiu-se à plateia pronunciando a escandalosa palavra “Merdra!”.

O cenário da peça se valia do uso de letreiros para apontar as mudanças das localizações das cenas: “Um personagem corretamente vestido viria, como nos fantoches, pendurar um letreiro escrito sobre o cenário. (Notem que estou certo da superioridade ‘sugestiva’ do letreiro escrito sobre o cenário. Nem um cenário nem uma figuração seriam capazes de expressar o ‘exército polonês em marcha na Ucrânia’)”, opinava Alfred Jarry.

Na estreia de Ubu rei, a vaia teria sido geral se não fosse por uns poucos presentes, como Mallarmé, que afirmou: “Jarry é poeta e com este Ubu rei começa uma nova época”. Embora tenha sido uma frase profética, ela ficou incompreendida por muito tempo.

Carne, sim! Ouro não! Abatam três cavalos velhos, e esses berdas-merdras que se deem por muito satisfeitos

Os movimentos artísticos do século XX, no entanto, começaram a dar valor a Jarry. O movimento dadaísta, que nasceu na Suíça em 1916, se identificou com a sua estética e foi influenciado por ela. Porém, tanto as obras dadaístas quanto o Ubu rei foram vistos, na época, apenas como “infantilismo agressivo”, ainda que desse “infantilismo” brotasse um protesto sério contra a violência e a corrupção. Ubu é um tirano, um ditador cruel e estúpido como muitos ditadores o foram e o são ao longo da história:

“Pai Ubu: ‘Não, nem tostão! Queres me arruinar por causa desses idiotas?’

Bordadura: ‘Entenda, Pai Ubu, o povo espera algo de bom, um gesto generoso.’

Mãe Ubu: ‘Ou mandas dar carne e ouro ao povo, agora, ou estarás deposto em menos de duas horas.’

Pai Ubu: ‘Carne, sim! Ouro não! Abatam três cavalos velhos, e esses berdas-merdras que se deem por muito satisfeitos.’”

Mais tarde, os surrealistas também se identificaram com Ubu rei e suas frases que oscilam entre o real e o irreal, entre o humor negro e a mística do absurdo.

Como afirmam os estudiosos, Ubu rei teria sido ainda a primeira peça do teatro do absurdo, que nasceu com essa denominação nos anos 1950, na França. As peças de absurdistas como Eugène Ionesco, Fernando Arrabal, Samuel Beckett, assim como a peça de Jarry, se estruturam sobre uma dramaturgia alógica, que põe em xeque as leis do dia a dia e a ilusão de um pensamento lógico e linear.

Na opinião de Otto Maria Carpeaux, Ubu rei teria sido também o primeiro happening, afinal, diz o estudioso, “um verdadeiro happening é um ato aparentemente absurdo pelo qual se pretende perturbar um ato sério e cerimonioso para torná-lo também absurdo, desmascarando-o e denunciando-o”.

Diria que Alfred Jarry profanou o teatro e o devolveu, no final do século XIX, ao uso comum dos homens. Com isso, fez o teatro progredir e ganhar um novo status e novas experimentações estéticas. De tempos em tempos, o teatro necessita de um novo Jarry que ponha o teatro abaixo para que então ele seja reconstruído.

O francês Alfred Jarry 1873-1907) , excêntrico renovadorReprodução

O francês Alfred Jarry (1873-1907), excêntrico renovador

Os alunos do curso de Artes Cênicas da UFSC fizeram, no dia 8 de maio, uma leitura dramática da peça de Alfred Jarry, com o seguinte elenco:

Pai Ubu – Giovanni Scotton
Mão Ubu – Roberta Lira
Capitão Bordadura – Arthur Dobler
Rei Venceslau – Fernando Santos
Rainha Rosamunda – Louysa Duarte
Boleslau – AlexandreSchmitz
Ladislau – Renata Souza
Bugrelau – Oswaldo Neto
General Lascy – João Rafael
StanislauSobieski – AlexandreSchmitz
Imperador Alexis – Gerson Gonçalves
Girão – Letícia Vieira
Pila – Renata Souza
Cotica – Vanessa Lima
Conjurado e soldados – Todos
Povo – Todos
Miguel Federovitch – Letícia Vieira
Nobres – Todos
Magistrados – Todos
Conselheiros – Todos
Financistas – Todos
Guarda de finanças – Aline Nazário
Camponeses – Todos
Exército russo – Todos
Exército polonês – Todos
Os guardas de mãe Ubu – Todos
Um capitão – Isabella Chimidts
Czar – Claci Maria Becker Kunzler
O comandante – Vanessa Volpatti
Rubrica – Vanessa Volpatti

Bibliografia:

CARPEAUX, Otto Maria. Happening Ubu. In: JARRY, Alfred. Ubu rei. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972.

FERNANDES, Sílvia. Alfred Jarry. In: JARRY, Alfred. Ubu rei. São Paulo: Peixoto Neto, 2007.

HUBERT, Marie-Claude. As grandes teorias do teatro. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013.

Ensaísta, tradutora e professora do curso de Artes Cênicas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Publicou, entre outros, Cenas do teatro moderno e contemporâneo (Iluminuras), Para ler ‘Finnegans Wake’ de James Joyce (Iluminuras). Colabora em jornais como O Estado de S. Paulo, O Globo e Notícias do Dia.

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