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Crítica

A linguagem suspensa pela vida

1.6.2015  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Rafael Pimenta

Projetos culturais nascidos em comunidades socialmente desassistidas pelo Estado enfrentam riscos de outra ordem quando ambicionam uma dimensão artística à altura das linguagens que abraçam. A contradição mais comum é aquela da expressão poética sufocada pelo viés institucional de fundações ou organizações não governamentais em suas legítimas interlocuções junto à iniciativa privada. Quando as forças da arte e das ações social e cultural estão claramente potencializadas, os resultados podem surpreender.

O espetáculo Acelere!, da companhia Circolombia, sintetiza essa equação materializando-a no próprio lugar da cena. A dança e a música integradas aos números circenses delineiam a cultura popular urbana. Justamente o universo pulsante dos jovens artistas da trupe formada há nove anos como desdobramento profissional para meninas e meninos vindos da escola nacional Circo para Todos, implantada na cidade de Cali em 1995.

Desafios e superações enfrentados em contextos de vulnerabilidade dentro de casa, na vizinhança, na rua, na escola, na cidade, em suma, subsidiam a afirmação e o orgulho de pertencimento. Atitudes, gestualidades, ritmos, imagens e palavras estabelecem correlação com a identidade e a cultura negra. Como na saudação do punho cerrado e braço erguido, à maneira “black power” dos Panteras Negras nos EUA ou mesmo de cunho socialista.

Nesse sentido, a cultura hip hop é referendada com os elementos do break e do MC, o mestre de cerimônia ao microfone que, aqui, surge empoderado pelas presenças de duas mulheres em contraste à hegemonia viril do elenco (nas intervenções das cantoras, eles parecem a serviço da narrativa de um videoclipe ancorado pelas mesmas). Em tempo: a base musical da obra é sempre pré-gravada, como se sincronizada por um DJ.

(…) pontes com experiências como o fenômeno do bailes da black music nos centros e periferias dos idos de 1970 e 1980

Aliás, uma recepção brasileira a Acelere! permite, inevitavelmente, estabelecer pontes com experiências como o fenômeno do bailes da black music nos centros e periferias dos idos de 1970 e 1980 (assim Adirley Queirós expôs no filme Branco sai, preto fica, de 2014) e as pesquisas dos grupos Bando de Teatro Olodum (BA) e Núcleo Bartolomeu de Depoimentos (SP) em seus sincretismos formais e temáticos em diálogo com a ancestralidade africana.

De volta ao trabalho da Circolombia, a identidade é desenhada sob contornos realistas com brechas para a contemplação, como abordaremos adiante. A vibração dos corpos no espaço aéreo ou no tablado dá pouca margem para metáforas. O público prende a respiração diante do abismo, da ascensão ou da queda. E os artistas colam figurinos, falas e movimentos corais como eles mesmos encarnam no espaço público, lá fora.

A urbanidade impregna as evoluções circenses também cruas, sem rede, com direito apenas a um colchão amortecedor em certas passagens. As acrobacias que tomam a maior parte da apresentação refletem a química dos rapazes de rua para dançar break ou montar pirâmides equilibrando seus corpos – cena plausível em semáforos daqui. Os saltos em gangorras ou balanços, alguns deles em giros duplos ou triplos no ar, acontecem sob luz branca e expõem como a virtuose emana naturalmente do jogo instaurado pelos artistas bastante à vontade, e não decorrem do mero domínio técnico. Isso explica também a empatia do conjunto na comunicação com o público, o olho direto e a exaltação na sequência de cada número, uma das premissas dos homens e das mulheres do picadeiro.

'Acelere', da cia. Circolombia, é codirigido por uma inglesa e um brasileiroRafael Pimenta

‘Acelere!’, da cia. Circolombia, é codirigido por uma inglesa e um brasileiro

Retomando a contemplação citada há pouco, os diretores Felicity Simpson (inglesa) e Renato Rocha (brasileiro) intercalam momentos de subjetividade em meio à tensão do espectador diante da contundência das performances acrobáticas. Esses lampejos aparecem nos números em cordas que precipitam do céu e servem para deslizar ou balançar os artistas em dupla ou solo. Vislumbramos dramaturgias visuais e corporais, inclusive com direito a textos breves (na primeira sessão, a tecnologia do microfone falhou no solo feminino e incorporou ruídos à sintonia fina do seu bailado suspenso).

Outra circunstância na noite de abertura do Festival Internacional Sesc de Circo foi o modo como a companhia lidou com o erro durante uma execução. Na primeira tentativa, não foi possível completar um dos saltos mais ousados, em que um acrobata voa de um balanço para assentar nos ombros de outro parceiro que, por sua vez, apoia seus pés sobre os ombros de um terceiro – novamente a pirâmide. Sob aplausos, eles retomaram a movimentação com êxito após falharem melhor ainda, como a flexibilidade que a vida pede.

.:. Publicado originalmente no site do Circos – Festival Internacional Sesc de Circo, aqui. A instituição contratou um grupo de profissionais para uma ação da prática da crítica durante o evento, de 28/5 a 7/6/2015.

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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