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Crítica

Massa corporal crítica

3.6.2015  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Aurore Biry

Sabemos que a estética é uma das noções que distinguem a humanidade das outras espécies animais. Por outro lado, os fenômenos artísticos e as áreas do conhecimento vivem fundindo tais naturezas. Em Kafka, Picasso, Darwin, Freud e outros desbravadores de signos constam a recorrência às figuras do animal e do homem absorvidas uma na outra. Eles contribuíram, a seu modo, para a anatomia poética aflorar sem, necessariamente, sucumbir à caracterização psicológica ou física. Nesse sentido, a experiência de Cherepaka é lapidar.

O solo da performer canadense Andréane Leclerc tem como pretexto a condição da tartaruga, estampada no título em russo. Deseja refletir sobre a precariedade do ser. Propõe uma dialética para a estrutura óssea do réptil, considerada eterna, mas envolvida pela carne finita. O homem é obcecado em vestir a carapaça material e descuida do reconhecimento limites.

Para uma analogia, os orientais e os antigos cristãos consideravam a tartaruga a personificação do mal e da heresia, por viver no lodo, em oposição ao galo, tido como símbolo do espírito, da luz, do bem. Tal maniqueísmo não tem vez aqui, mas a perspectiva espiritual se instaura pela convicção da inventividade cênica.

a performer expande o campo de forças na relação pictórica com o espaço cênico

Os contorcionistas costumam mesmo ser comparados a animais, dada a flexibilidade das imagens que obtêm: antropoformes, animalizadas. Mas entre esse rastro conceitual e a cena nada é codificado enquanto fábula, mensagem. Ao contrário. O observador frui um sistema sensorial de corporeidade, visualidade e sonoridade tão multiformes como as articulações dobradas de modo incomum.

A criação da companhia canadense Nadère Arts Vivants, de 2011, amplia radicalmente os procedimentos e percepções quanto à técnica do contorcionismo. Reafirma o devido grau de complexidade e sofisticação dessa prática que remonta à antiguidade, como tudo na esfera do circo, e frequentemente se vê banalizada pelo liquidificador espetacular da sociedade que dela se apropria até para anúncio de empreendimentos imobiliários, aí sim uma violenta distorção.

Andréane Leclerc encontra no livro Francis Bacon: lógica da sensação (2002), do filósofo Gilles Deleuze, fundamentos para conceber um trabalho coerente com sua pesquisa continuada focada na linguagem do circo. Instaura estranhamentos para uma intimidade com a cultura que, no caso dela, vem desde os nove anos por influência familiar.

Tomando seu corpo e aura vertebrais, exímia na contorção e na rotação que põem omoplatas, ancas, troncos, cabeça e membros em outros lugares inimagináveis, a performer expande o campo de forças na relação pictórica com o espaço cênico. Aos gestos e movimentos pausados e qualificados pela respiração e plasticidade somam-se o palco branco redondo, em primeiro plano, e a projeção intermitente de uma tela de pintura, ainda imaculada, ao fundo. O olhar é constantemente convidado a enquadrar a massa corporal e a rastrear o seu entorno. Um rumor lento da pele e, de repente, irrompe as omoplatas, pontiagudas, feito asas angelicais.

Jogo claro-escuro redimensiona as posições esculturais de Andréane LeclercAurore Biry

Jogo claro-escuro esculpe Andréane Leclerc

É essa paisagem que a artista ocupa – no caso da sala multiuso do Sesc Belenzinho, o pé-direito acentuou o vazio dilatado, tornando o encontro mais sublime em sua ritualização. Os desenhos de luz e de som (por Alexis Bowles) compõem efeitos agregadores ou dissonantes no reflexo das sombras na parede lateral relativa ao ponto de vista do espectador. Há uma poderosa aplicação narrativa de claro-escuro que redimensiona as posições esculturais de Andréane Leclerc, sua beleza radiante em figurino que a descama feito sereia, flanando por um hipotético lado escuro da lua.

Cherepaka desmoldura, transcende. Em sua primeira incursão pela América do Sul, em seis anos de atividade, a companhia Nadère Arts Vivants demonstra, por meio dessa obra, como concretiza um percurso óptico entre estalos tenebrosos sobre as vicissitudes humanas e alguns rasgos solares. Um exercício de pensamento crítico que dá pistas para intuir porque Bacon se ateve mais ao grito que ao horror.

.:. Publicado originalmente no site do Circos – Festival Internacional Sesc de Circo, aqui. A instituição contratou um grupo de profissionais para uma ação da prática da crítica durante o evento, de 28/5 a 7/6/2015.

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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