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Reportagem

Palavra amplia noção de mímesis no Lume

9.6.2015  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Arthur Amaral

Uma das linhas de pesquisa mais candentes nos 30 anos do Grupo Lume Teatro, a mímesis corpórea ganha novas camadas de procedimentos técnicos e de construção de presença em Alphonsus (2013). O solo da atriz Raquel Scotti Hirson ocupa hoje, 9/6, o palco da sala principal do Itaú Cultural, em São Paulo, dentro do projeto Terça Tem Teatro, que dedica este junho ao núcleo de Campinas, vinculado à Unicamp.

Segundo os atores-criadores do Lume, a mímesis corpórea consiste na codificação de ações físicas e vocais do cotidiano, obtidas pelo ator através de sua observação e posterior imitação. A maneira como este material é transposto para a cena é que são elas.

Já na Poética, estudo seminal de Aristóteles (384-322 a.C.) sobre a tragédia, o filósofo grego associava a mímesis ao recurso da imitação como captura da vida interior dos homens.

No caso do Lume, a apropriação e recriação passa pela ênfase na expressividade física, como em Café com queijo (1999) ou em O que seria de nós sem as coisas que não existem (2006), montagem que esgarçou a “fotografia documental” para elaborar uma mediação fictícia por meio da memória de operários de uma fábrica de chapéu – espetáculo sobre o qual falaremos mais adiante e também compõe a curta mostra de repertório no espaço da avenida Paulista, sempre com apresentações gratuitas (e tradução em Libras no caso de Alphonsus).

Para o ator Carlos Simioni, cofundador do Lume em 11 de março de 1985, ao lado do mímico, diretor e pesquisador Luís Otávio Burnier (1956-1995), Alphonsus representa um salto no campo da mímesis corpórea porque centrado na poesia imanente da palavra.

Lá pelos 20, 25 anos, nos demos conta de que não precisávamos provar mais nada em relação ao que funciona com a técnica

Raquel Scotti Hirson foi buscar em seu DNA, por assim dizer, a inspiração para avançar no processo laboratorial continuado. Notadamente na obra do bisavô e escritor mineiro Alphonsus de Guimaraens (1870-1921). A relação ancestral com o poeta simbolista gerou um mergulho dentro de si para esculpir as recriações experimentadas no corpo, procurando assimilar a memória como plataforma ficcional.

“A palavra em ação pode conter todas as dimensões das conexões de imagens que detona e, ainda, as dimensões do corpo, jogando com espaço e tempo”, diz Raquel, no material distribuído à imprensa. A direção é de Ana Cristina Colla, também integrante do Lume, e a trilha sonora original vem assinada pelo músico Marcelo Onofri.

Em O que seria de nós sem as coisas que não existem, cartaz da próxima terça, 16/6, Raquel se junta aos colegas Ana Cristina Colla, Jesser de Souza e Renato Ferracini, o mesmo quarteto de Café com queijo, mais calcado na realidade de moradores conforme testemunharam os criadores-pesquisadores em circulações por vilarejos do norte, nordeste, centro-oeste e sudeste do Brasil.

Espetáculo de 2006 ficcionaliza realidade de chapeleirosTina Coêlho

Obra inspirada na lida de chapeleiros

Dessa vez, o desafio é criar uma onírica fábrica de realidades emprestadas, preenchida pela memória de três aposentados. Chico, Dante e Rouca, três chapeleiros-cientistas, se reúnem na madrugada silenciosa de uma antiga fábrica com o objetivo de construir o “chapéu perfeito”, ajudados por um jovem aprendiz, Pao.

A dramaturgia costura esses personagens aparentemente fantásticos tomando como inspiração, em parte, o documentário O chapéu do meu avô (2004), de Julia Zákia, sobre as memórias do dono da última fábrica de chapéus do Brasil, a Cury, aberta em Campinas em 1920, entre outras fontes e reinvenções. A criação é dirigida por Norberto Presta, argentino atualmente radicado no Brasil.

Programado para a última terça-feira do mês, 30/6, Sopro (2006) é um solo de Carlos Simioni e segunda parceria do grupo com o diretor japonês Tadashi Endo, dançarino de butô – o mesmo que conduziu Shi-zen 7 cuias (2004), espetáculo inaugural da mostra do Lume no Itaú Cultural na noite de 2/6.

Simioni conta que, inicialmente, cogitava uma criação em torno do romance O idiota, de Dostoiévski, sem delinear personagem ou dramaturgia propriamente dita. Mas a simbiose com Endo e a prospecção de sua dança pessoal resultou uma obra impregnada de sutileza e densidade orientais, sob colaboração da musicista Denise Garcia.

Vide a sugestão do fluxo da natureza em movimentos minimalistas com alusões a nascimento (folha em branco do ser, do que vai ser), morte (folha em branco, do não ser, do que não vai ser) e sopro (momento de passagem de um estado para outro). Por isso a autodefinição de uma “experiência sensorial” em que o tempo e a ação são extracotidianos e dariam ao espectador a oportunidade de mergulhar no vazio e no desconhecido.

De acordo com Simioni, 52 anos, o Lume deixou para trás a necessidade atávica de se afirmar artisticamente por meio da técnica em sentido estrito, natural num período de afirmação – boa parte dos outros seis integrantes soma mais de duas décadas no mesmo barco. “Lá pelos 20, 25 anos, nos demos conta de que não precisávamos provar mais nada em relação ao que funciona com a técnica. Penso que foi um avanço relaxar, no bom sentido. A técnica em si mesma fica estéril. Usufruímos dela como um trampolim para as alturas e os mergulhos mais reveladores”, diz.

Carlos Simioni no solo de 2006 dirigido por Tadashi EndoTina Coêlho/Terra Imagem

Carlos Simioni no solo de 2006 dirigido por Tadashi Endo

Além das terças do mês, o Lume comparece a outros dois projetos do espaço: Fim de Semana em Família, no sábado, 27/6, às 14h30, com vivência de jogos interativos pelo ator Jesser de Souza; e Se Essa Rua Fosse Nossa, no domingo, 28/6, às 11h e às 15h, com apresentações do solo de clown La Scarpetta, protagonizado pelo ator Ricardo Puccetti e seu palhaço Teotônio, dirigido pelo italiano Nani Colombaioni. E, por fim, no mesmo dia 28, às 13h, acontece a oficina Famílias em roda: corpo e expressão com Lume Teatro, também a cargo de Jesser de Souza.

Serviço:
Alphonsus
Quando: terça, 9/6, às 20h
Onde: Itaú Cultural (Avenida Paulista, 149, Estação Brigadeiro do Metrô, tel. 11 2168-1776)
Quanto: grátis

O que seria de nós sem as coisas que não existem
Quando: terça, 16/6, às 20h
Onde: Itaú Cultural
Quanto: grátis

La scarpetta
Quando: domingo, 28/6, às 11h e às 15h30
Onde: Itaú Cultural
Quanto: grátis

Sopro
Quando: terça, 30/6, às 20h
Onde: Itaú Cultural
Quanto: grátis

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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