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Crítica

Plumas, paetês e serragem

25.6.2015  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Celina Germer

Atuar sob paradigmas das expressões de massa sem abrir mão do caráter performativo central no trabalho da Cia. Rústica (RS) é a aparente incongruência que Heinz Limaverde enfrenta para organizá-la, transformá-la e superá-la com originalidade no solo O fantástico circo-teatro de um homem só. A serragem que cobre o picadeiro e as plumas e paetês do tablado no teatro de revista são as bases imaginárias e materiais dessa epopeia travestida de biografia e ficção.

O trabalho do ator nascido no Crato (CE) e radicado em Porto Alegre transmite a centelha da presença de Antônio Nóbrega na obra-prima Brincante (1992), em que a musicalidade e a dança trançavam as partituras física e vocal do artista pernambucano na sua visão translúcida da cultura popular.

Limaverde fia-se na memória e na predestinação. Seu lugar é o da chegada, de quem se apropria cênica e afetivamente do acervo pessoal para estruturar uma história feita mais da convivência do que de trânsitos literais (a transitoriedade se dá nas linguagens). Em vez da carroça referencial do saltimbanco Tonheta, a realidade do ônibus real que percorreu cerca de três dias entre o nordeste e o sul, viajem resumida em breve anedota recheada de imprevistos tragicômicos.

A diretora Patrícia Fagundes é generosa e astuta ao relacionar-se com as tradições na mesma toada do talentoso comediante. A encenação não dissimula as raízes culturais revisitada: a contemporaneidade está em deixá-las fluir com a verdade do seu idealizador. Limarverde é gordo, de rosto resplandecente até quando parece retraído por timidez. Um tipo “fofo”, digamos, que tem o público nas mãos desde os primeiros minutos, mas precisa sustentar a que veio, como o faz.

A vedete, o palhaço e a mulher barbada são algumas das figuras esculpidas por meio das lembranças do ator e da pesquisa documental sem rarefazer as transições

Direção e atuação equilibram-se nos tempos do circo e da revista. Na reconstituição de adereços e objetos de época. Nas luzes multicoloridas da ribalta ao espelho no camarim. Nas passagens em que o discurso narrativo é quebrado pela performatividade aludida nos gestos, cantos, figurinos e relação direta permanente com o público.

A vedete, o palhaço e a mulher barbada são algumas das figuras esculpidas por meio das lembranças do ator e da pesquisa documental sem rarefazer as transições, escapando à sedução do truque das ligeiras trocas de roupa – pertinente à prestidigitação, mas cujo efeito soaria deslocado aqui.

O tempo de que é feito o espetáculo convida o espectador a preenchê-lo com a consciência do passado. O vivido diante da experiência do presente vívido. Do primeiro ao último instante, Limaverde garante o estado de presença: uma intimidade distanciada pela sublimação permanente dos recursos teatrais sempre expostos em sentidos poéticos e nos artefatos que montam e desmontam a teatralidade a olhos nus e pausados.

Limaverde canaliza para o solo 20 anos de carreiraCelina Germer

Limaverde canaliza 20 anos de carreira para o solo

Conhecido de montagens em palcos ou em intervenções da Cia. Rústica nos espaços públicos da capital gaúcha, o idealizador e protagonista de O fantástico circo-teatro de um homem só consegue parodiar e ao mesmo tempo reverenciar a arte do transformista. E a transcende. A peça é mutação permanente regulada à base de saudosismo desacanhado.

Quando Nóbrega estreou Brincante , no início da década de 1990, a rede mundial de computadores dava os primeiros passos. Comediante diligente, Heinz Limaverde navega com suavidade pela disputa de atenção nesses dias velozes. E desempenha com primazia as aventuras e fatos familiares e comunitários que capturam os espectadores situados também quanto às superações e desafios do artista contemporâneo (e popular) confrontado ao perpétuo desprezo dos governos e suas políticas públicas mínimas e descontinuadas.

Em seu 11º ano de atividade, a Cia. Rústica reafirma disposição para a pluralidade formal e temática do que pesquisa, sob o prisma da inquietude da diretora e pedagoga vinculada à UFRGS.

Serviço:
Onde: Espaço Parlapatões (Praça Franklin Roosevelt, 158, Consolação, SP, tel. 11 3258-4449)
Quando: Quinta, às 21h. Até 25/6.
Quanto: R$ 40

Ficha técnica:
Dramaturgia: Heinz Limaverde e Patrícia Fagundes
Direção: Patrícia Fagundes
Com: Heinz Limaverde
Trilha sonora e preparação vocal: Simone Rasslan
Cenografia: Juliano Rossi
Adereços, pintura de cenografia e programação visual: Paloma Hernandez
Figurino: Daniel Lion
Preparação corporal: Cibele Sastre
Iluminação: Lucca Simas
Produção executiva: Rochele Sa e Priscilla Colombi
Direção de produção: Patrícia Fagundes
Assessoria de imprensa: Leo Sant’Anna

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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