Crítica
Em Brasília
Em Lírios d’água (1987), coreografia inspirada na série em óleo sobre tela de Claude Monet (Les nymphéas), o dançarino Kazuo Ohno flutuava com seu corpo, então octogenário, parar dar a ver as paisagens d’água que capturaram o pintor expressionista no jardim de sua casa. Naquela apresentação de junho de 1992, no palco do Teatro Ouro Verde, dentro do Festival Internacional de Londrina, a base corpórea bastava para o imaginário projetar o lago florido. Não havia cenário ou movimentos de luz, apenas uma trilha suave. Eram o homem e o meio compondo uma face da natureza.
As duas criações em formas breves de Fabrice Lambert permitem conexões com os traços essenciais da dança butô. Nos dias atuais, em que a mediação da vida pelas telinhas tornou-se onipresente, uma extensão físico-mental, o intérprete, coreógrafo e cofundador do coletivo francês L’Expérience Harmaat (desde 1996) propõe novos enquadramentos.
D’Eux #2 e Gravité funcionam como um díptico pelas espacialidades dilatadas e pela adesão do corpo à noite estrelada e enluarada fora do edifício, na primeira ação, e na caixa preta do teatro, na segunda. Em ambas, nos deparamos com a relativização da condição bípede da espécie e a busca permanente de alicerces em outras partes do corpo, redimensionando as percepções e os sentidos.
Em D’Eux #2, o breu também cobre Lambert dos pés à cabeça, em figurino colado à pele. No campo de visão do círculo de espectadores, a paisagem noturna e o corpo se justapõem ou contrastam a arquitetura dos prédios, carros, iluminação pública, inclusive a lua crescente. Em paralelo, ele constrói outra escala de relação com a escultura do jardim da Caixa Cultural, forjada em ferro e desenhada em “s”.
Nesse passeio abstrato pelo chão e pelo entorno concretos, sua sombra dançando na fachada lateral de um prédio, agigantada em contraluz, resume bem a totalidade sugerida – e, por extensão, a ambiguidade do vazio
Da posição inicial, sentado no suporte da obra de Omar Franco, de costas para o semicírculo do público, não vemos sua cabeça, abaixada. As sequências performativas vão expor esse corpo em vibração existencial e multiforme, espiralado e tensionado pela trilha musical que chega a pontuar a psicodelia da fase inicial do Led Zeppelin.
Lambert impregna-se da vastidão da cidade. Nesse passeio abstrato pelo chão e pelo entorno concretos, sua sombra dançando na fachada lateral de um prédio, agigantada em contraluz, resume bem a totalidade sugerida – e, por extensão, a ambiguidade do vazio. O título D’Eux pode ser visto como uma contração do duplo, de Deus, da figura do eu e até da água na expressão francesa “eau”, basilar no segundo solo, Gravité.
Lá dentro, no palco, a experiência é de contemplar um corpo em instalação, apesar da disposição frontal do público. Submergimos em paisagens sonoras e ópticas que criam um campo sensorial. As soluções soam espirituosamente prosaicas. Movimentos sutis de pés, cabeça, tronco e mãos sobre um filete de água em quadrado cenográfico de 5m² são refletidos numa tela ao fundo. Aquela imagem “sem cabeça” de Gravité é reintroduzida, insistindo em desbastar as conceitiuações e voar livremente pelos traços físicos. Um bocado de acaso e de cálculo desenham ou borram figuras geométricas definidas aos olhos e conforme o repertório de cada espectador – como os desenhos sinalizados pelas nuvens.O procedimento lembra a câmara escura de orifício que ressignifica a imagem de um objeto invertendo-o. Não importa como se dá. Há coerência nessas escolhas, em vez da mera reprodução audiovisual da cartilha tecnológica.
A sensibilidade é aflorada em Gravité. O corpo do homem urbano contemporâneo toca o fio d’água, em diferentes posturas minimalistas, e as silhuetas sobre as ondulações – imagine-se o tremeluzir do curso d’água no interior de uma caverna – remetem ao sujeito no olho do redemoinho ou banhado em líquido amniótico na posição fetal, duas imagens que nos ocorrem em meio tantas leituras possíveis.
Com cerca de 20 minutos cada uma, as criações resultam complementares pela imanência do ser. Lambert valoriza a subjetividade e convida o interlocutor a deslocar-se dos lugares presumidos, a borrar as telinhas. O corpo artesão trilha seus mistérios entre o céu e a terra nesses momentos de transe e ascese, como na troca com o saudoso Kazuo Ohno.
.:. Escrito no âmbito do 16º Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília, de 18 a 30/8, em ação da DocumentaCena – Plataforma de Crítica. O jornalista viajou e trabalhou a convite da organização do evento.
Ficha técnica:
D’Eux #2
Concepção e interpretação: Fabrice Lambert
Direção de luz: Ivan Mathis
Direção de som: Marek Havlicek
Produção e difusão: Olivier Stora
Produção: L’Expérience Harmaat
Fabrice Lambert esteve em residência no Centre National de la Danse, em parceria com o Département de la Seine-Saint-Denis. L’Expérience Harmaat é patrocinado por DRAC Île de France, Département de la Seine Saint-Denis e l’Institut Français para turnês internacionais
Gravité
Concepção, dispositivo e interpretação: Fabrice Lambert
Dispositivo: Guillaume Cousin
Direção de luz: Ivan Mathis
Direção de som: Marek Havlicek
Produção: L’Expérience Harmaat
Coprodução: Le Manège, Scène Nationale de la Roche sur Yon, Scène Nationale de Reims, Festival Uzès Danse, com o apoio da direção regional de cultura da Île-de-France – Ministério da Cultura e da Comunicação da França
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.