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Artigo

O ator impuro

19.9.2015  |  por Afonso Nilson

Foto de capa: Félix_Nadar

Um comentário mais comum sobre grandes atores do que sobre grandes atuações é o de que mesmo um excelente ator conserva alguns vícios, ou lugares-comuns que sempre revisita. Podemos dizer que faz parte de seu estilo, mas a dúvida de onde termina o estilo para dar início ao vício ainda permanece.  E mais, como definir vício, lugar-comum e estilo em atuação? A partir daí talvez possamos pensar mais objetivamente sobre  a possibilidade de “pureza” na atuação, ou seja, de uma atuação sem vícios, que seja ou se aproxime de termos como “técnica limpa”, ou “pura”, como por vezes são descritos trabalhos de grande rigor técnico.

Desde os primórdios, ou mais especificamente, desde os primórdios da era cristã, se vive certa compulsão pela pureza. É algo que toca o sexual e o místico essa obsessão pelo puro como categoria de valor. E o que é o puro? É o limpo, o sem mácula, sem mancha. Água pura é água sem outros elementos que não os da constituição da própria água; o ouro puro é o de maior valor, embora seja mole demais para qualquer utilidade; o homem puro é considerado um bom homem, apesar de lhe pairar uma aura de inocência ou ingenuidade. Os exemplos multiplicam-se ao infinito, assim como a especificidade de cada tipo e definição de pureza. E nesse caminho impreciso, também pode ser pensada a definição de uma técnica pura.

Podemos pensar que água pura é água eficientemente tratada (não mais totalmente pura, portanto), com cloro, com fogo ou qualquer outro processo que a torne potável, uma água sem germes, asséptica, inodora, insípida.  Não sei até que ponto é desejável um ator assim. Uma cor sem matizes, um bloco constituído de um único material, uma peça sólida de aço, a escuridão total ou a luz total, ambas nos deixando cegos em meio a uma pureza acachapante. Água sem germes, sem cloro, sem calcário, sem minerais, sem materiais quaisquer que a intoxiquem em prol de sua pureza só é possível em laboratório, para testes químicos. Será que a atuação ou qualquer procedimento artístico pode ser constituído inteiramente em laboratório? Muito dificilmente um ator, ou outro artista, é fruto inteiramente de sua técnica, ou pior, de uma única técnica.  A técnica, para grandes artistas, assim entendo, é um dos instrumentos para expressão, nem mais importante que o que precisa ser expresso, nem maior do que a necessidade de expressar-se.

Sempre me pareceu que um ator de laboratório, fruto ou discípulo de uma única técnica, está mais próximo de um experimento científico ou de uma tradição religiosa do que de uma obra de arte. É também um tanto quanto desestimulante perceber que a admiração por seus mestres acaba tomando ares de religiosidade, de fanatismo até, principalmente nos atores que acabam se transformando em professores das técnicas que exercem. Muitas escolas se fundamentam na observância cega de suas regras, conceitos e procedimentos físicos. Um ator que se submeta inteiramente pode ser considerado por seus mestres, de acordo com seu potencial, tecnicamente perfeito, puro em determinado tipo de rigor. Mas quantos artistas tecnicamente exímios e tão anódinos, sem graça, embebidos de um trabalho tão árduo que ultrapassa qualquer faísca de algo inesperado, criativo, vivo que possa acontecer em cena.  É muito mais comum, na minha experiência, ficar impressionado com a técnica de um ator do que com sua atuação em si.

Obviamente é preferível antes um ator com uma boa técnica do que um sem nenhuma. Mas de qualquer forma, há algo de tão inexplicável em algumas atuações e em alguns atores que essa impressionabilidade se transforma em emoção, em contato com o espectador, e o leva para dentro de um universo coerente e inescapável, que o absorve. O que deveras dificilmente acontece quando uma determinada técnica ou procedimento é mais visível, ou se sobrepõe a atuação, ou a obra a qual ela deveria prestar serviço.

Acredito que quando um ator se camufla e cerceia em determinada técnica, em determinada zona de conforto, algo de extraordinário se perde. E não há pureza, e não há perfeição técnica que justifique isso.

Mas o quê significa ser tecnicamente exímio? Significa dominar a técnica até o limite da própria técnica. Ou seja, somente até certo limite. Será que a manifestação artística consegue atingir sua plenitude somente até certo limite? Se assim fosse nenhum músico seria superior a Bach em volume e qualidade de composição, mas quantos bethovens nos mostram que os limites não estão predeterminados!

Quantos críticos e teóricos insistem em apontar falhas técnicas nas obras de Shakespeare, Schiller, Ibsen… (Como se Titus Andrônicus pudesse ser excluído das obras completas de Shakespeare[1], as temáticas sociais de Ibsen já não justificassem suas construções dramáticas[2] ou a atuação ética de Schiller fosse superior a sua poética). Mas não foram eles, apesar das falhas técnicas pretensamente apontadas, muito além de qualquer técnica preestabelecida, de parâmetro que encarcere suas obras em padrões definidos de análise? Acredito que quando um ator se camufla e cerceia em determinada técnica, em determinada zona de conforto, algo de extraordinário se perde. E não há pureza, e não há perfeição técnica que justifique isso.

A atriz italiana Eleonora Duse (1858-1924)Reprodução

A atriz italiana Eleonora Duse (1858-1924)

Mas há uma razão para que um ator se “proteja” utilizando determinada técnica: a convicção de que, mesmo com todas as possíveis insuficiências de clareza na emissão de signos e significados, e outros problemas que venham a comprometer sua atuação, suas escolhas estão justificadas por um trabalho teórico/prático capaz de sustentar pelo método sua performance criativa. Ora, os métodos se justificam pela eficiência na realização de uma tarefa a partir de seu uso. Mas como saber quais os critérios para medir se determinada técnica ou metodologia de atuação é eficiente?  Será pela reação do público, pela quantidade de aplausos e críticas favoráveis, pela qualidade da admiração que determinada técnica proporciona, ou satisfação do artista com sua própria performance? Como diferenciar a convicção de que determinada técnica funciona da sua funcionabilidade em si?

Para argumentar mais claramente sobre a diferença entre convicção e o saber será útil recorrer, mesmo que muito rápida e superficialmente, à distinção que Kant traça na Crítica da razão pura sobre os três graus de crença ou assentimento: a opinião, que tem consciência de ser insuficiente tanto objetiva quanto subjetivamente; a fé, que só é suficiente subjetivamente, mas não objetivamente; e enfim o saber, que é suficiente tanto subjetiva quanto objetivamente[3].

E como poderíamos classificar a eficiência de nossas técnicas de atuação: uma fé, uma convicção ou um saber?  O fato de determinada técnica, como os métodos de canto (Rubini ou Belting  por exemplo[4]) conseguirem que através de determinado exercício um ator consiga definitivamente atingir tal nota, tal impulso vocal ou objetivo sonoro o colocam como um conhecimento que é suficiente tanto objetiva como subjetivamente, pois  trata de dados físicos tão evidentes como a hipertrofia a partir da musculação ou o aumento da capacidade respiratória através de exercícios aeróbicos.

Assim, podemos argumentar que um ator que se utilize apropriadamente das técnicas de Etiènne Decroux conseguirá manipular seu corpo apropriadamente como mímico, terá os signos e movimentos adequados para provocar no público o tipo de ilusão que caracteriza a técnica. Da mesma maneira, quem estudar a biomecânica, o mimo corpóreo e a infinidade de escolas e técnicas de atuação que propõe atingir o espectador através de um condicionamento físico capaz de aproximar as técnicas de atuação às técnicas da ginástica, ou do esporte, conseguirá atingir o resultado proposto pelos exercícios. Mas será que um corpo bem preparado é suficientemente bem preparado para se tornar uma obra de arte? Ou será que novamente ficaremos mais admirados com o corpo, com a técnica evidente do que com algo que ultrapassa a visualidade e a beleza de um corpo capaz de feitos notáveis?

Kant, em outro livro, nos fala de uma definição bastante estudada de obra de arte. Ele diz que o “belo é ao mesmo tempo fruto de uma satisfação necessária e desinteressada, que manifesta uma finalidade sem a manifestação de um fim, e que agrada universalmente e sem conceito[5]”. Obviamente é problemática uma definição que contemple um agradar universal, ainda mais em se tratando de teatro. Entretanto, quando se fala em uma manifestação necessária e desinteressada, podemos intuir, e é a apenas isso que me proponho neste texto, algo de útil que talvez possa nos ajudar nessa busca por uma utilização das técnicas de atuação capaz de não se confundir com uma subdivisão de categoria esportiva, e despertar, mesmo sem a possibilidade de uma avaliação objetiva de seu funcionamento, algo que poderíamos chamar de emoção.

Copeau, em seus registros fala de um ator que diante um papel  que ele ama e compreende, numa primeira leitura impressiona o autor com sua naturalidade e verdade, mas que “não se engana” com essa sua primeira leitura, e começa a trabalhar tenazmente sobre seu papel, decora-o, digere-o, racionaliza os movimentos, classifica seus gestos, conserta suas entonações, se olha, se julga, se ouve, se abandona, propõe modificações na cena, no texto, no ritmo, trabalha arduamente sobre as emoções da personagem, suas motivações, seu mecanismo psicológico, se atém a detalhes irrisórios como se fossem tão fundamentais como toda estrutura de seu trabalho até que o autor, excessivamente polido o pega pelo braço e diz “Mas, caro amigo, por que não mantém o que fez no primeiro dia? Estava perfeito. Seja você mesmo[6]”,.

Talvez essa falta de frescor, de naturalidade, de improvisação, de jogo presente em muitas demonstrações técnicas esteja no cerne de uma  certa aridez que encontro em muito da produção contemporânea profissional de teatro que tenho acompanhado. Não posso dizer que sejam maus atores, pelo contrário, são grandes profissionais em sua arte; não posso dizer que são tecnicamente imperfeitos, pois vão ou tentam ir aos limites de suas possibilidades; mas sinto, e isto como uma opinião consciente de sua insuficiência tanto subjetiva quanto objetiva, que algo se perde no excessivo preparo. Ou o que pode ser pior, que o excessivo preparo ainda não é suficiente.

Cito um exemplo de outra área, para tentar me fazer entender por analogia. Existe um concerto para violoncelo e orquestra, o concerto de E. Elgar em Mi menor, opus 85, que é um dos clássicos para o instrumento. Praticamente todos os bacharelados em violoncelo exigem sua execução para conclusão do curso, e o  fato de uma execução pública desta obra junto com uma boa orquestra consolida a reputação de um solista. Assim, os maiores nomes do instrumento já solaram a obra com as melhores orquestras do planeta. De Fornier a Rostropóvitch, de Yo Yo Ma a Antônio Meneses, muitos grandes intérpretes fizeram memoráveis execuções do concerto. Entretanto, quando se fala em uma interpretação histórica, fundamental, é a de Jacqueline du Pré que se cita[7]. Por quê? Não eram todos os solistas absolutamente exímios em sua técnica, tanto quanto Jacqueline du Pré? A partitura do concerto, com seus tempos e pausas, com suas indicações de dinâmicas, exatamente a mesma executada pelos artistas? O que faz com que a execução do concerto pela jovem solista inglesa tenha um  vigor e uma força capaz de se destacar perante os melhores solistas do século XX? E o que é mais intrigante, como interpretações de artistas com capacidades técnicas semelhantes podem ser tão díspares?

Seria então a hora de começarmos a falar de um estilo de representação? Será o estilo que diferencia capacidades técnicas semelhantes? O que vem a ser um estilo senão o modo pelo qual uma escola ou um indivíduo se distingue? Convenhamos que atuar à lá Stanislavski é bem diferente de à lá Tarcísio Meira, desde que estejamos nos referindo à escola e técnicas de atuação de um, e o modo de atuação e personalidade de outro. Mas isso também não nos leva a um desenvolvimento coerente do problema. O estilo de determinada época só nos importa como referência histórica para nossa. Eleonora Duse, o estilo de atuar de Eleonora Duse, tão aclamado e citado por homens de teatro tão importantes como Craig e Appia, seria um estilo eficiente nos dias de hoje? Ou um João Caetano, seria hoje o grande ator de outrora com as técnicas e estilos que dispunha? Acredito que não.

O ator fluminense João Caetano  (1808-1863)Reprodução

O fluminense João Caetano (1808-1863)

A maneira, o jeito, o estilo de uma época ou de alguém não é suficiente para construir uma atuação consistente. Talvez uma técnica sim, mas até que ponto? Tanto a segurança de uma técnica embasada quanto a de um estilo que agrade ao público acabam se tornando bengalas que volta e meia resvalam, dando tombos memoráveis nos atores que as utilizam.

Não seria o caso de um sonambulismo atoral proposto por Schiller, onde o ator está tão imerso em seu sonho que parece não ter consciência de estar em cena[8]? E  tampouco o tropeço de um embaixador Poyet, que segundo a narrativa de Montaigne, encarregado pelo Rei Francisco I de pronunciar um discurso de recepção ao Papa Clemente, preparou o texto com tanto comprometimento, que na hora, solicitado pelo Rei para mudar o tema a fim de não ofender um príncipe presente, incapaz de mudar o que já estava planejado, teve que ceder a palavra ao Cardeal Du Bellay[9]?

Nem o extremo da inconsciência, nem a limitação de um planejamento  imutável. Mas, talvez, o jogo acima de qualquer improviso ou forma fixa. Tal como propõe Denis  Guénoun em A exibição das palavras, onde define a atuação como a atividade que conduz o texto ao visível, a passagem que conduz ao jogo, e que este jogo não é um domínio próprio, definido, circunscrito no âmbito do qual seria possível se colocar por um savoir-faire, o jogo seria o pôr em jogo[10]. E esse pôr em jogo, como fazê-lo?

Seria estar à vontade com seu colega de cena e com o público ao ponto de envolvê-los em seu trabalho, ou seja, entretê-los? Seria estar tão entretido em seu  próprio papel, em sua própria atuação até que se estabeleça uma espécie de contato íntimo com o público, ao ponto de respirar junto, sentir junto, chorar junto?

O que diferencia um ator ruim de um bom? Esqueçamos por um instante a técnica. Um técnico inexpressivo não passa de um pedante, e um ator sem técnica não passa de um amador. Qual a diferença entre um homem que leva, sem sair do lugar, uma multidão a lugares inesperados, e outro, que apesar de uma parafernália teórica, às vezes dezenas de anos de “experiências”, faz o público se sentir enganado? Seria, em uma palavra, a imaginação?  Jogar e propor o jogo a tal ponto que não se consiga fugir do universo proposto pela imaginação do ator, em outras palavras, contaminar o próximo com o espírito de sua criação, divertir-se e divertir o público falando sobre o que for, a meu ver, é um destino, um objetivo, não o caminho.

De qualquer maneira, ninguém atua para passar o tempo, para se divertir unicamente, mas para salvar a própria pele.  Atuamos, fazemos teatro porque é uma necessidade, e se não é assim, é melhor mudar de profissão. Ser ator não é para acomodados. Não estamos falando de funcionários públicos que batem cartão e saem umas horinhas antes todos os dias, mas de pessoas que mesmo sabendo de todas as dificuldades, e do risco que é ser ator, insistem em atuar e em pensar sobre o que fazem. Muitos já pensaram em profundidade sobre o ofício de atuar e qualquer ator que tenha tido interesse em ler este texto  até aqui, acredito, deve saber citar uma relação enorme de técnicas e teóricos, profissionais de cena e grandes atores que nos vêm com suas sugestões.

Obviamente esse ator que me acompanha até aqui deve ter consciência que essa infinidade de direções e opiniões, e de fato, podemos sim classificar como opiniões, embora sofisticadas, só serão úteis em parte. Voltamos ao assunto: um especialista em determinada técnica é um bom ator, ou um bom ator apenas na técnica em que se especializa? E mais importante, a quem isso interessa?

Como no budismo, que considera sua doutrina como uma balsa, que depois de atravessado o rio pode servir apenas para outros, talvez todas essas grandes teorias de atuação sirvam apenas durante determinado momento, o da travessia de uma pequena para uma grande arte, e depois pode ser revisitada e emprestada para outros. O que percebo em vários profissionais super-especializados em suas técnicas de atuação é que o mais importante parece ser antes o rigor da técnica, ser exímio prática e bibliograficamente em determinada coerência teórica, do que necessariamente a finalidade a que essa coerência se destina. É como se depois de atravessar o rio insistíssemos em levar a balsa nas costas, ou resolvêssemos morar dentro dela à margem do rio atravessado[11].

Não tenho a pretensão, como deve ter ficado evidente pela quantidade de interrogações, de dar respostas definitivas ou ao menos apontar em alguma direção objetiva no que diz respeito ao que é um bom ator, ou como se consegue chegar a esse patamar de capacidade técnica a que os atores almejam para serem artistas notáveis. Não tenho esse conhecimento ou capacidade. O que posso é refletir sobre o que sinto ao ver atuações que me fazem pensar se o que estou vendo está mais próximo de uma exibição técnica, como um exercício de escola,  ou se realmente terei a possibilidade de usar a batida expressão “obra de arte” ao sair do teatro.

O ator e mímico Jacques Lecoq (1921-1999)Michaël Callaway

O francês Jacques Lecoq (1921-1999)

Um ator puro, uma atuação que seja pura técnica, é a meu ver tão inverossímil como uma atuação inteiramente sem deslizes, sem algo que o próprio ator, e o público, como não poderia deixar de ser, não se questionasse sobre a qualidade na execução. Não se questionar, não ter dúvidas, acreditar que uma técnica possa ser infalível é sim o grande risco que se corre ao ser exímio em determinada técnica. Milhares de outros riscos são possíveis, e desejáveis até, para que não estejamos seguros ao ir e ao fazer teatro. Mas esse, o risco de estar absolutamente confiante em seu treinamento, suas teorias e capacidades, na minha experiência e opinião consciente de sua refutabilidade, tende ao pretensioso, ao pedante, a uma ilusória e perigosa auto-suficiência.

A dúvida, o não saber, pode sim ser de grande valia para construir uma cena ou uma carreira. Conhecer várias técnicas, ter feito diversos tipos de treinamento, ter tido vários mestres e buscar caminhos alternativos para criar um papel é o mínimo que se espera de um ator. A certeza de que se está fazendo de maneira correta, às vezes, é o que leva de mal a pior uma atuação que poderia ser razoável. Mas então, o que fazer? Não saber? Caminhar às cegas? Em que acreditar?

Talvez esse acreditar não seja o termo mais adequado para uma pesquisa de algo como atuação ou criação. Acreditar significa crer por provas ou por fé. Como provar resultados positivos em qualidade de execução interpretativa? Que tipo de demonstração seria mais adequada a uma técnica eficiente? Se todas as soluções fossem passíveis de demonstrações objetivas,  certamente teríamos uma metodologia única e comprovada. Mas que enorme tédio seria ver sempre o mesmo método posto em prática. Não ter um caminho definido não significa que não existam caminhos a serem percorridos. É absolutamente imprescindível percorrer esses caminhos já traçados, até o fim se possível, mas não devemos, sob risco de estagnação, construir nossa casa no fim dele, ou à beira da estrada.

Se perder, em uma analogia a Walter Benjamin[12], pode ser uma forma eficiente de se conhecer um lugar, ou algo. Podemos escolher entre nos perder dentro do próprio quarto, da própria cidade ou no mundo todo. Cada um tem o direito de escolher o tamanho do risco que quer correr. Eu, como público, também posso escolher entre o que já conheço, e talvez já não suporte mais, ou arriscar ver alguém correr riscos. O acaso, o caminho não traçado, o variável, o imprevisto não estão tão distantes do rigor de um plano, ou de um estudo. Caminhar a esmo, ou caminhar a esmo até determinada distância ou trajeto não necessariamente exclui que se tenha ao se perder um destino pré-estabelecido. Ou não. Isso vai da coragem que cada criador tem quando ao se perder, seguir adiante, e arriscar a pureza de seu trabalho em prol de algo tão impuro, tão imperfeito e  imprevisível quanto o mundo real.

.:. Publicado originalmente na Revista Teatro/CELCIT, número 40, páginas. 8-15,  segunda época, ano 23, 2015, editada pelo Centro Latinoamericano de Creación e Investigación Teatral. Artigo vencedor do Concurso Iberoamericano de Ensayos sobre Teatro CELCIT.

Notas:

[1] Segundo Harold Bloom, em Shakespeare, a invenção do humano, citado no prefácio à tradução brasileira do texto por Beatriz Viégas-Faria, L&PM, São Paulo, 2009, pág. 15.

[2] Apontado e refutado por Otto Maria Carpaux, em Ensaio sobre Ibsen, contido no volume  Seis dramas de Henrik Ibsen, Editora Globo, Rio de Janeiro, 1960, pág. 33.

[3] Utilizei a eficiente simplificação do conceito usada por André Comte-Sponville em O espírito do ateísmo, introdução a uma espiritualidade sem deus.  Martins fontes, 2007, SP, pág 55. Obviamente, não me omitirei de fazer referência à reflexão original de Kant, contida em Crítica da razão pura, seção terceira do cânone da razão pura – do opinar, do saber e do crer (coleção Os pensadores, São Paulo, Editora Nova Cultural, 1988, pág 229 – 235).

[4] Convém justificar que estes métodos aplicados ao canto lírico são  também utilizados, em parte, em exercícios de formação de atores de teatro, e são instrumentos que equipam não apenas musicistas e atores líricos para ópera, mas atores para musicais e outros espetáculos de teatro que necessitem do canto. Não haveria, portanto, objeção em colocar o método Belting como técnica de atuação, e Giovani Batista Rubini como teórico da atuação, cuja produção técnica tem sido útil tanto para cantores líricos como para profissionais de teatro.

[5] Immanuel Kant, Critica da faculdade de julgar, §46, citado por André Comte-Sponville em A filosofia, capítulo 5 – Filosofia da arte, Ed. Martins Fontes, 2005, São Paulo, pág. 106.

[6] COPEAU, Jacques. Aos atores, in Registro e Apelos I [Textos coletados e estabelecidos por Marie-Hélène Dasté e Suzanne Maistre Saint-Denis. Notas de Claude Sicard]. Paris, Gallimard, 1974. Tradução inédita de José Ronaldo Faleiro.

[7] Ver documentário Jacqueline du Pré in portrait, de Christopher Nupen. Londres, BBC – Opus Arte/Allegro Films, 2004.

[8] In. Estética teatral, textos de Platão a Brecht. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1996. pág. 232.

[9] In. Ensaios, de Michel de Montaigne. Ed. Abril Cultural, Coleção os Pensadores, 1972. pág. 28.

[10] In. GUÉNOUN, Denis. A exibição das palavras – uma idéia (política) do teatro. Rio de Janeiro: Teatro do Pequeno Gesto, 2003; páginas 58 a 60.

[11] Em O amor a solidão, André de Comte-Sponville faz alusão à metáfora budista de carregar o barco nas costas quando cita os exageros teóricos que se perdem em minúcias em se tratando de filosofia. Julguei coerente aproveitar a metáfora ao tratar das não raras minúcias inúteis presentes em várias teorizações sobre a prática do ator comuns nas academias, e em seguidores de grandes “doutrinas” de atuação. In. COMTE-SPONVILLE . O amor a solidão. São Paulo: Martins Fontes, 2006

[12] “Perder-se, no entanto, numa cidade, tal como é possível acontecer num bosque, requer instrução” In. BENJAMIN, Walter. Rua de mão única. Tradução: Rubens Rodrigues Torres Filho, Jose Carlos Martins Barbosa: São Paulo, Brasiliense, 1995.

Bibliografia:

BENJAMIN, Walter. Rua de mão única. Tradução: Rubens Rodrigues Torres Filho, Jose Carlos Martins Barbosa: São Paulo, Brasiliense, 1995.

CARPAUX, Otto Maria. Ensaio sobre Henrik Ibsen. In: IBSEN, Henrik. Seis dramas. São Paulo: Editora Globo, 1960.

COMTE-SPONVILLE, André. A filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2005,

___________  O espírito do ateísmo, introdução a uma espiritualidade sem deus.  São Paulo: Martins fontes, 2007.

___________  O amor a solidão. São Paulo: Martins fontes, 2006.

COPEAU, Jacques. Aos atores, in Registro e apelos I [Textos coletados e estabelecidos por Marie-Hélène Dasté e Suzanne Maistre Saint-Denis. Notas de Claude Sicard]. Paris, Gallimard, 1974. Tradução inédita de José Ronaldo FALEIRO.

GUÉNOUN, Denis. A exibição das palavras – uma idéia (política) do teatro. Rio de Janeiro: Teatro do Pequeno Gesto, 2003.

Jacqueline Du Pré in portrait. De Christopher Nupen. Londres, BBC – Opus Arte/Allegro Films, 2004. DVD, (155 minutos), PB/Color, 35 mm.

KANT, Imannuel. Crítica da razão pura.  São Paulo, Editora Nova Cultural, 1988. (coleção Os pensadores).

MONTAINGNE, Michel de. Ensaios. São Paulo: Abril Cultural, 1972. (coleção Os pensadores, v. XI)

VIÉGAS-FARIA, Beatriz. Titus Andronicus- Uma obra violenta, um texto controverso. IN. SHAKESPEARE, William. Tito Andrônico. Porto Alegre: L&PM Editores, 2008.

SCHILLER, Friedrich. O actor sonâmbulo. In. BORIE, Monique; ROUGEMONT, Martine; SCHERER, Jacques. Estética teatral, textos de Platão a Brecht. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1996.

Gestor de cultura em Santa Catarina, crítico e dramaturgo. Escreve ocasionalmente para os jornais Notícias do Dia e Diário Catarinense. Participa regularmente de curadorias para mostras e festivais nacionais de artes cênicas. Publicou em 2014 o livro Pequenos monólogos para mulheres (Chiado Editora/Portugal), coletânea de textos teatrais curtos. Doutorando em teatro pela Udesc com pesquisa sobre crítica teatral brasileira.

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