Menu

Reportagem

Escuta e ficção de si

29.10.2015  |  por Michele Rolim

Foto de capa: Fernando Pires

O exercício de escuta na contemporaneidade nunca foi tão necessário, pois vive-se em uma sociedade no qual os problemas de comunicação têm desastrosas consequências para todas as relações. De olho neste dilema, a atriz Luciana Paz (ex-integrante do grupo Falos & Stercus) realiza o projeto Três direções para escuta – 10 anos de CPTA: Centro de Pesquisa Teatral do Ator. O projeto consiste na realização de três trabalhos cênicos tendo a escuta, de maneira distinta, como tema de criação e pesquisa. Para cada atividade foram convidados três diretores diferentes: Alexandre Vargas (RS), André Carreira (SC) e Matteo Bonfitto (SP).

“Depois da minha saída do Falos & Stercus, queria me voltar para um tipo de trabalho mais íntimo, no qual eu pudesse ter uma relação com o espectador que não colocasse ele na condição somente de público, e também não me colocasse em uma posição de artista detentor do saber”, conta Luciana, que completa: “Gostaria de inverter um pouco o papel, trabalhar com a ideia do estrangeiro diante dos procedimentos de criação e diante da minha própria cultura, e pensei em fazer isso brincando com jogos de escutas”.

De 27 a 31 de outubro ocorre a última etapa do projeto: o espetáculo Ouvir/devir, com direção de Vargas (também ex-integrante do Falos & Stercus, coordenador do Festival Internacional de Teatro de Rua e marido da atriz), tem duas sessões vespertinas na Fundação Ecarta.

Atualmente, conseguimos nos ficcionar em outros artefatos ‘culturais’ como Facebook – a timeline é uma edição do eu

Baseado em relatos pessoais da atriz e em textos de três autoras – a psicanalista Lou Andreas-Salome (1861-1937), a dramaturga Susan Giaspell (1876-1948) e a escritora Virginia Woolf (1882-1941) -, o espetáculo trabalha com a escuta e a ficção de si mesma. “Utilizamos o conceito de autoficção. Sempre tu escolhes coisas e constrói uma ficção de si mesmo. Atualmente, conseguimos nos ficcionar em outros artefatos ‘culturais’ como Facebook – a timeline é uma edição do eu”, opina a performer.

A primeira etapa, Ouvidoria, consistiu em uma performance com direção de Matteo Bonfitto, na qual a atriz criou situações para a escuta do outro. No início, Luciana levava para locais públicos um banco, duas cadeiras e um cartaz, em que convidava o público a falar com ela. Depois, passou a desenvolver ações para possibilitar uma escuta não normativa. “Conseguimos organizar dispositivos com elementos teatrais que tornavam disponível a escuta do outro potencializando uma relação mais diferenciada com a pessoa, uma vez que ela não falava coisas esperando eu dizer se ela estava certa ou não”, conta ela, exemplificando que uma das ações incluiu um escalda-pés no Largo Glênio Peres.

Luciana Paz em 'El juego de Antonia', direção de CarreiraFernando Pires

Luciana Paz em ‘El juego de Antonia’, direção de Carreira

O outro espetáculo aconteceu na Travessa dos Cataventos da Casa de Cultura Mario Quintana, com direção de André Carreira, livremente inspirado no texto Dos viejos pánicos (1967), do cubano Virgilio Piñera (1912-1979). Em El juego de Antonia, a escuta foi abordada a partir da questão: até que ponto os nossos desejos são pautados pelos nossos medos?

Em espanhol, Alexandre Vargas e Luciana partem de uma cena do texto dramatúrgico de Piñera que aborda “o jogo da morta”. A brincadeira consiste em um matar o outro dentro do jogo, e o falecido pode falar o que bem entender sem sofrer consequências, pois está morto. “Há uma estrutura de jogos entre eles, e esse jogo é mais um que eles fazem para poder lidar com os seus medos e dizer coisas um para o outro”, comenta.

O projeto foi contemplado no concurso Pró-Cultura FAC/RS Desenvolvimento da Economia da Cultura e comemora os 10 anos do Centro de Pesquisa Teatral do Ator (CPTA). Segundo Vargas, fundador do CPTA, este espaço oferece trocas conceituais e de pesquisa, tendo como eixo a reflexão sobre conceitos fundamentais da teoria e da prática no teatro, sem separá-las. “Podemos supor que a importância para a cidade do CPTA está associada a uma oportunidade criada para que todos colocássemos em dúvida algumas certezas, pois teatro não é só espetáculo”, completa.

.:. Publicado originalmente no Jornal do Comércio, caderno Panorama, p. 1, em 27/10/2015.

Serviço:
Onde:Fundação Ecarta (Avenida João Pessoa, 943, Cidade Baixa, Porto Alegre, telefone para contato com a produção, 51 9119-8472)
Quando: De 27 a 31/10, às 14h30 e às 16h
Quanto: entrada franca

Ficha técnica:
Direção: Alexandre Vargas
Atuação: Luciana Paz
Texto: Alexandre Vargas e Luciana Paz
Cenografia: Pablo Oliveira
Assistente de cenografia: Rodrigo Chalako
Figurino: Itiana Passetti
Preparação vocal: Marlene Goidanich
Direção de movimento: Bia Diamante
Criação de luz: Mauricio Moura
Fotografia: Fernando Pires
Música: Christian Benvenuti

Jornalista e mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Desenvolve pesquisa em torno do tema curadoria em festivais de artes cênicas. É a repórter responsável pelo setor de artes cênicas do Jornal do Comércio, em Porto Alegre (desde 2010). Participou dos júris do Prêmio Açorianos de Teatro, do Troféu Tibicuera de Teatro Infantil (ambos da Prefeitura de Porto Alegre) e do Prêmio Braskem em Cena no festival internacional Porto Alegre Em Cena. É crítica e coeditora do site nacional Agora Crítica Teatral e membro da Associação Internacional de Críticos de Teatro, AICT-IACT (www.aict-iatc.org), filiada à Unesco). Por seu trabalho profissional e sua atuação jornalística, foi agraciada com o Prêmio Açorianos de Dança (2015), categoria mídia, da Secretaria de Cultura da Prefeitura de Porto Alegre (2014), e Prêmio Ari de Jornalismo, categoria reportagem cultural, da Associação Rio Grandense de Imprensa (2010, 2011, 2014).

Relacionados

‘De mãos dadas com minha irmã’, direção de Aysha Nascimento e direção artística e dramaturgia de Lucelia Sergio [em cena, Lucelia Sergio ao lado de dançarinas Jazu Weda e Brenda Regio]