Menu

Resenha

A inconformação nos ‘Jogos’ de Boal

23.11.2015  |  por Patricia Freitas

Foto de capa: Jonathan McIntosh/Wikimedia Commons

 Quando Dante andava por Verona, o povo o apontava e murmurava que ele estava no inferno. Teria ele podido, sem isto, descrever todos os seus tormentos? Ele não os tirou de sua imaginação, ele os viveu, sofreu, viu, sentiu. Ele estava verdadeiramente no inferno, a cidade dos condenados: ele estava no exílio.

Heinrich Heine

 Jogos para atores e não atores é, ao lado de O teatro do oprimido e outras poéticas políticas, o livro mais traduzido e reeditado de Augusto Boal. Desde sua primeira publicação na Argentina em 1973, ainda com o título Ejercicios y juegos para el actor y el no actor con ganas de decir algo a través del teatro, a obra passou por múltiplas revisões e teve seu conteúdo significativamente ampliado: para termos uma ideia dos acréscimos inseridos ora por Boal, ora pelos próprios editores, a versão mais atual da obra conta com cerca de 410 páginas, ao passo que a original possuía menos de 200 exercícios distribuídos em exatas 79 páginas.

De fato, é no mínimo curioso observar o percurso de Jogos para atores e não atores, principalmente quando em uma mesma edição podemos compreender o processo de criação da obra, seus principais interlocutores e seu grau de manifesto não só estético, mas político. Essa contribuição é oferecida pela nova versão do livro publicada este ano pela Cosac Naify em parceria com as Edições Sesc. Já na capa, como também é observado nos outros títulos de Boal publicados recentemente pela Cosac, o carimbo em vermelho com o nome do autor revela o espaço da falha, da imprecisão, da fragilidade da tinta e da mão que pressiona o carimbo (sim, cada carimbada é feita artesanalmente, sem que exista uma marcação padrão). O contraste da cor rubra com o fundo cinza gélido não deixa de sugestionar o lugar de destaque de Boal, assim como o incômodo gerado por seu trabalho frente ao contexto frio e paralisante da época.

E nas quatrocentas e outras tantas páginas do volume, Augusto Boal é revelado como um diretor de teatro, dramaturgo, ensaísta e teórico dos que mais incomodaram e perturbaram nossa história tão repleta de acidentes de percurso. O próprio título da obra já deixa entrever o caráter tautológico do termo “teatro político”, ao problematizar a divisão social entre o trabalho intelectual/artístico e o braçal. Afinal, se o teatro é tratado como uma atividade especializada e, portanto, compartilhada por poucos que detêm seus meios de produção, não seria ele também uma forma de expressão de classe? Ou um lugar de demonstração e de reposição do poder hegemônico?

É a busca pela desmistificação e democratização do trabalho do ator que une os mais de 300 exercícios detalhados no livro. A proposta vinha complementar o pensamento estético-ideológico presente em Técnicas latino-americanas de teatro popular e Teatro do oprimido e outras poéticas políticas. Se neste Boal estabelece como eixo gravitacional de sua teoria o fio histórico que ligava a superação do drama burguês por Brecht à trajetória do Teatro de Arena, em Jogos o que encontramos é a preocupação pragmática com a pedagogia e o esforço da concreção dialética entre teoria e prática.

Para Boal, seria necessário criar uma língua comum capaz de engendrar condições para que os artistas fossem parte integrante e testemunhas da realidade social, e não mais porta-vozes das classes populares

Trata-se de uma compilação de jogos interpretativos surgidos desde o momento em que Boal inicia sua carreira como diretor do Teatro de Arena de São Paulo, em 1956, até a efetiva solidificação das técnicas de teatro do oprimido. No entanto, ainda que a obra estabeleça um ponto de vista histórico sobre diversos processos de trabalho para investigar questões pertinentes da época, seu percurso de análise parece tangenciar uma perigosa teleologia do teatro político no Brasil, fator que desafia, e muito, a leitura contemporânea da obra. E é justamente por conceber o teatro do oprimido como ápice produtivo de um teatro capaz de conciliar estética, pedagogia e engajamento político, que se faz necessário um leitor atento ao subtexto e, sobretudo, curioso com relação aos ponteiros do relógio, que aparentavam apontar a meia-noite.

Jogos foi inicialmente publicado durante o conturbado período em que Boal permaneceu exilado em Buenos Aires (1971-1976), assim como outras de suas obras teóricas amplamente difundidas. O momento, que segundo o autor, era marcado pela sensação de meia-morte, parecia esmagar qualquer projeto de futuro na mesma esteira que limitava o caminho sombrio e solitário do exilado. Assim, a sistematização de formas possíveis de atuação social através do teatro só consegue ganhar impulso por meio da escrita teórica, ao passo que o sufocante estado de coisas na América Latina impedia qualquer prática artística mais à esquerda. O rigor da teorização de métodos teatrais pautou-se, portanto, por uma tentativa de continuar um trabalho comprometido com os mais pobres que pudesse superar, a um só tempo, a distância geográfica do Brasil e os entraves político-ideológicos nos países da América Latina, notavelmente no pós-73.

Foram, ao todo, seis anos de exílio no Cone Sul divididos por Boal entre cuidar de seu filho recém-nascido, Julián, escrever cerca de nove livros financiados pela bolsa Fullbright e, logo no início da década, enquanto ainda possuía seu passaporte, ministrar cursos de atuação e dramaturgia nos mais diversos países, como Argentina, Venezuela, Estados Unidos e Peru.

7ª edição, 1988, pela Civilização BrasileiraReprodução

Capa de 1988, pela Civilização Brasileira

A explosão do espaço cênico amparada no movimento de democratização dos meios de produção aos “não atores” foi germinada concomitantemente ao desenvolvimento do teatro-jornal, ainda no Brasil. Tal modalidade vinculava-se a uma proposta em que a pedagogia antecedia e possibilitava a própria prática, rearticulando noções fundamentais sobre o lugar privilegiado do artista e do intelectual. Dialogava, assim, com uma perspectiva anticapitalista, mas também antipopulista, em um embate que envolvia contradições estruturais de nosso desenvolvimentismo. Para Boal, seria necessário criar uma língua comum capaz de engendrar condições para que os artistas fossem parte integrante e testemunhas da realidade social, e não mais porta-vozes das classes populares – pensamento que, em certa medida, já havia mobilizado nos anos 60 a prática dos Centros Populares de Cultura e, inclusive, do Teatro de Arena em suas excursões pelo Nordeste do país.

Talvez tenha sido o sentimento melancólico de perder algo que nem ao menos chegou a se concretizar que catalisou a inflexão de seu trabalho por uma via não-ortodoxa, que flertava, por sua vez, com o multiculturalismo e com os estudos culturais, sem perder sua base marxista – o interesse de Boal pelo assunto resultou em peças singulares, como As mulheres de Atenas e A tempestade. É dessa forma que o autor enfatiza, no capítulo inicial de Jogos, o protagonismo popular oferecido pelo teatro do oprimido: “Quando, no Peru, a situação melhorou, começamos a desenvolver várias formas de Teatro-Fórum, para que o espectador reassumisse plenamente sua função de protagonista; nós acreditávamos, naquela época, que o povo não estava longe de ter um papel a desempenhar no futuro”. (página 60)

De fato, a base ideológica de Jogos inspira à concreção de células multiplicadoras de teatro popular que permitissem aos desvalidos compreender e organizar o mundo através do reconhecimento do outro em si, das palavras por trás de cada palavra, do véu ideológico que encobre cada imagem e dos múltiplos significados apartados de seus arbitrários significantes. Por isso, os exercícios elaborados ainda no Arena, quando o estudo de Stanislavski era entremeado à leitura da dialética clássica hegeliana, adquirem na obra sua feição produtiva: vistos em conjunto, eles despertavam nos atores e não atores a busca pela dinâmica entre vontade e contra-vontade dos personagens, contribuindo para o distanciamento crítico, a desmecanização dos gestos e a tomada de posição frente às situações de impasse, assim como os outros exercícios voltados para o teatro-invisível, o teatro-imagem e o teatro-fórum.

Em síntese, Jogos para atores e não atores perfila a urgência da criação de um método de trabalho que sempre manteve como norte a resistência aos ditames militares e o enfrentamento às desigualdades e injustiças sociais. Junto a outras obras do período, o livro sinaliza seu revolucionário objetivo de democratização e multiplicação do fazer teatral pela via prática, quando o único caminho que restava ao autor exilado era a passividade da escrita solitária. A tarefa, então, não se baseava somente em um desconforto nascido do lugar hierárquico ocupado pelo artista ou da via de mão única que transmitia uma corrente de consciência ao povo, tomado de antemão como alienado; ela nascia também da necessidade de lidar com uma situação em que o desencontro do autor com seu público, potencializado pelas condicionantes geográficas e políticas do exílio, impulsionavam a constituição de uma arte de resistência de ampla circulação, que superasse os limites materiais e fugazes do teatro. Daí, a preocupação em estabelecer um aporte teórico bem sistematizado ou, ainda, em enveredar pela escrita de romances e crônicas, sempre em um registro documental (fazem parte desse mesmo período a criação de crônicas publicadas no Pasquim e dos romances Jane Spitfire e Milagre no Brasil)

E justo por obedecer a um critério quantitativo – curiosamente, similar à lógica de produção capitalista – esse mesmo conjunto de jogos é facilmente desvinculado de sua matéria histórica e praticado atualmente por grupos não muito comprometidos com a transformação da realidade. Não raro, como apontado por Sérgio de Carvalho em posfácio à nova edição, encontramos empresas das mais competitivas utilizando as técnicas de teatro do oprimido para encontrar possíveis saídas a crises de ordem econômica. Será esse o preço que a ambição do empreendimento de Boal deve pagar?

Edição atual, via Sesc/CosacReprodução

Capa atual, via Sesc/Cosac

Já do outro lado da moeda, há o esforço crítico daqueles entusiasmados em recuperar historicamente a produção de Augusto Boal, iluminando sua obra como a de um artista inconformado, sempre em buscada superação dialética e da saída prática à aporia paralisante da época. Nesse caso, a inclusão de quatro anexos finais ao livro, textos que até este ano se mantiveram inéditos e sem tradução para o português, auxilia, e muito, na construção de leitores afinados à abordagem crítica do trabalho de Boal, capazes de reconhecer o ato revolucionário que implicou a construção de cada exercício. Em um dos anexos, o autor relata as dificuldades materiais de atuação artística, que deveriam ser enfrentadas pelo viés da militância política: “fazer teatro na América Latina, quando se faz tal teatro para o povo, já implica praticar um ato revolucionário, independente da forma assumida.” (página 329).

Não à toa, os jogos destinam-se a atores e não atores. Porque o teatro continua sendo uma atividade especializada. Porque os gestos não deixaram de ser naturalizados, muito menos a barbárie cotidiana, que reiteradamente deixa de ser encoberta e assume na realidade sensível a sua feição cínica. Assim o é. Mas poderia não ser. Afinal, como disse o próprio Boal, o negativo em si já não contém o positivo? É dessa maneira que Jogos para atores e não atores funciona como um arsenal que instiga nos leitores a possibilidade de, irritados com a hora, alvejarem os relógios para suspender o dia.

Serviço:
Jogos para atores e não atores (416 páginas, R$ 49)
Autor: Augusto Boal
Posfácio: Sérgio de Carvalho
Editoras: Edições Sesc São Paulo e Cosac Naify

Trecho:
Entre os textos inéditos anexados à nova edição, citamos trecho de relato de Augusto Boal sobre cultura popular, já influenciado pelo filósofo italiano Antonio Gramsci (1891-1937). Um dos fios da meada em Jogos para atores e não atores justamente por lidar com questões que ainda nos rodeiam:

“Pensei em organizar na Argentina um festival. Eu tinha assistido a concertos de música folclórica latino-americana. Ali encontrava pessoas com smokings, eles ouviam religiosamente uma música tocada em pianos de cauda. Onde é que o povo possui pianos de cauda? O povo não tem piano. O povo possui um tesouro musical, sim, que a burguesia recupera para seus pianos de cauda. Bem, ela pensa que a cultura, o conhecimento, a experiência do povo são folclore, e a cultura da classe dominante é a verdadeira cultura, ao passo que muitas vezes ela não fez mais que traduzir para sua linguagem os tesouros do povo. Planejei, então, outro tipo de festival: imaginei o primeiro festival argentino de burg-lore, a cultura da burguesia, assim como existe o folk-lore; o primeiro festival de oligo-lore, da oligarquia: quais são os tesouros da burguesia, da oligarquia? A cultura popular deturpada segundo seus interesses, digerida. Integrá-la à burguesia é manter o mundo tal como ele é. Infelizmente, o projeto não pôde ser realizado: a burguesia provocou um novo golpe de Estado!

Se Shakespeare e suas obras são um tesouro cultural, não são o tesouro da humanidade inteira, somente de regiões, de países precisos. Para ser universais, eles têm de ser transformados.”

(Jogos para atores e não atores, páginas 362 e 363)

.:. Mais informações sobre o autor no Instituto Augusto Boal.

Doutoranda pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Mestra em Artes Cênicas e bacharela em Letras com habilitação em português e inglês pela USP. Desenvolve pesquisa sobre o trabalho teatral de Augusto Boal no período de exílio latino-americano, atuando principalmente nas áreas: estudos culturais, teoria crítica, história do teatro brasileiro e teatro político.

Relacionados

Esparrela (2009), atuação, direção e texto de Fernando Teixeira, artista paraibano que lança a autobiografia ‘Trás ontonte’
Gravura de Lerrouge e Bernard a partir do artista francês Jacques Etienne Arago (1790-1854) mostra o movimento de pessoas e o Teatro São João no Rio de Janeiro, sob regime imperial, então principal sala do século 19 no país; detalhe da imagem estampa a capa do livro ‘Teatro e escravidão no Brasil’, de João Roberto Faria