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Crítica

O Bartleby do século 21

7.11.2015  |  por Maria Eugênia de Menezes

Foto de capa: Festival Arte de Rua de Ribeirão Preto

É como se o escriturário descrito por Herman Melville, em Bartleby, tivesse mudado de nome, de época, de país. Em Página 469, o Grupo Engasga Gato, de Ribeirão Preto, quer falar sobre a história – e os dilemas – de um homem, funcionário público, que se vê confrontado com o absurdo de sua rotina e “enlouquece”. Tal qual o personagem de Melville, o funcionário Getúlio era responsável por fazer cópias. Tal qual Akáki, o personagem de Nikolai Gogol em O capote.

Getúlio destoa desses personagens da literatura por decidir não apenas romper com o sistema que o aprisionava, mas escapar. Bartleby permanece no escritório. Passa a morar lá. Não reage às regras que lhe eram impostas. Não as questiona. Apenas decide não mais tomar parte na máquina na qual funcionava como mera engrenagem. Getúlio, ao contrário, foge. Não consegue construir pra si outra vida, para além da repartição pública. Mas busca a rua como espaço livre e claro contraponto aos muros que o aprisionavam.

Apenas delineados, cada um desses personagens falha em expor ao público suas motivações

A dramaturgia de André Felipe trabalha com contrastes entre o passado do personagem, que o espectador conhece gradativamente, por meio de relatos, e o seu presente. O homem que vestia paletó e gravata agora traja andrajos. Antes sufocado pelo ar-condicionado, quer estar constantemente ao ar livre. Escravizado por um sistema nonsense, no qual se alienava copiando palavras alheias, decide romper com todos os signos da vida anterior: precisa abandonar não só o escritório, mas também a casa, a família, a mulher, os filhos. Não se trata de um caso de insatisfação com um emprego. Getúlio estava aprisionado ao seu papel social. Constrangido por ele.

Não por acaso, portanto, toda essa trama é encenada na rua. Infiltrada por incidentes cotidianos e imprevisíveis que só a rua pode oferecer. A estupefação de quem não se sabe diante de uma obra ficcional. Interferências que podem ser absorvidas pelo corpo do espetáculo. Três agentes cegos participam da missão de reencontrar Getúlio e reinseri-lo no corpo social. Fazem parte de um grupo intitulado Liga Pública do Bem. Cumprem uma função no drama. Sua cegueira serve à criação de certo desenho cênico, e um chamado à participação da plateia. Caminham trôpegos pelas calçadas. Pedem ajuda para vencer os pequenos obstáculos, para atravessar a rua, para reconhecer seus interlocutores. A cegueira desses personagens é também nitidamente metafórica. A ideia de promover o bem público enquadrando os cidadãos dissidentes em um esquema programático de vida só pode advir de criaturas incapazes de enxergar. E há gradações nessa falta de visão. Há aquela que permanece firme em seus propósitos mesmo se confrontada com o real. Há aquela que reflete e reage à descoberta. O homem que escapou da rede da burocracia não é necessariamente um louco. Mas um dissidente.

Cena do espetáculo de rua 'Página 469', do Engasga GatoFestival Arte de Rua de Ribeirão Preto

Cena de ‘Página 469’, do Engasga Gato

Apenas delineados, cada um desses personagens falha em expor ao público suas motivações. O homem que foi para a rua e decidiu trocar as palavras copiadas pela ambição de encontrar as próprias palavras se ampara em um discurso sem matizes ou força dramática. Tudo é esquemático. Poder-se-ia ponderar que não é esse o partido estético dessa criação. Não há, contudo, outra força que prepondere. O performativo surge igualmente enfraquecido. E o espetáculo parece apenas uma ilustração de uma tese formulada a priori.

.:. Escrito no âmbito da 10ª Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, em ação da DocumentaCena – Plataforma de Crítica.

Ficha técnica:
Direção: André Carreira
Dramaturgia: André Felipe
Com: Douglas Pires, Fausto Ribeiro, Fernanda Soto, Gabriel Galhardo, Monalisa Machado e Poliana Savegnago.
Ator convidado: Alvaro Cherubini
Cenografia: Grupo Engasga Gato e André Carreira
Figurinos: Grupo Engasga Gato e Zezé Cherubini
Bonecos: Rúbia Campos
Assessoria de imprensa: Priscila Soares Prado

Crítica teatral, formada em jornalismo pela USP, com especialização em crítica literária e literatura comparada pela mesma universidade. É colaboradora de O Estado de S.Paulo, jornal onde trabalhou como repórter e editora, entre 2010 e 2016. Escreveu para Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas, como o Circuito Cultural Paulista, e jurada dos prêmios Bravo! de Cultura, APCA e Governador do Estado. Autora da pesquisa “Breve Mapa do Teatro Brasileiro” e de capítulos de livros, como Jogo de corpo.

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