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Crítica

Máscara expressionista

14.12.2015  |  por Beth Néspoli

Foto de capa: Suewellyn Cassimiro

A participação do artista cearense Ricardo Guilherme na II Bienal Internacional de Teatro da USP com um trio de solos – Bravíssimo, Flor de obsessão e Ramadança – faz pensar na insistente validade dos versos “o Brazil não conhece o Brasil/o Brasil nunca foi ao Brazil” que abre a canção Querela do Brasil, de Aldir Blanc e Maurício Tapajós, eternizada por Elis Regina no álbum Transversal do Tempo, de 1978. Em diálogo crítico e irônico com o samba exaltação Aquarela do Brasil, de Ari Barroso, na poesia de Querela os autores “cantam” aspectos negados ou invisíveis da “terra de samba e pandeiro” citando, por exemplo, um bairro como Cabuçu, situado na Baixada Fluminense, região conhecida não exatamente por suas fontes murmurantes. De lá para cá, pouco mudou na escala de valores que desenha uma cartografia de claros e escuros na geografia do país.

No que diz respeito ao intercâmbio e à valorização de obras no panorama das artes o vetor continua apontando na direção da região Sudeste. Em outras palavras, se já é possível manter sedes de criação nas demais regiões, a visibilidade, tomada aqui no sentido do necessário reconhecimento da condição de artista para seguir criando,permanece muito dependente da validação do eixo Rio-São Paulo. Salvo engano, porém, Ricardo Guilherme abriu uma linha de fuga nessa trilha, pois seu trabalho atraiu atenção a partir do local de origem, ainda que tenha viajado para muitas cidades do Brasil e do exterior.

Valorizada pelo recorte da luz, a diversidade de expressões do rosto de Ricardo Guilherme se dá em estreita articulação com o recorte dramatúrgico escolhido

A decisão de manter na terra natal a plataforma de criação certamente implica aspectos negativos e positivos que dificilmente poderiam ser analisados por quem não acompanha a trajetória desse artista múltiplo – ator, dramaturgo, diretor, professor e um dos fundadores do curso de artes cênicas da Universidade Federal do Ceará. Essa longa introdução e a insistência no tema pode parecer desvio ao objetivo deste texto que é o de dialogar criticamente com o solo Flor de obsessão. Porém a tentativa de compreender o contexto da escolha curatorial pode ser importante, em especial nesse caso, em que a participação se dá no âmbito de uma mostra internacional e não apenas com um trabalho, mas com repertório.

Para quem só agora faz o primeiro contato com a arte de Ricardo Guilherme um dos aspectos de interesse parece ser o modo como a questão centro/periferia perpassa a dramaturgia de Bravíssimo, primeiro do trio de solos apresentado no evento e já comentado em texto publicado no Teatrojornal. Bravíssimo problematiza o contraponto Brazil/Brasil por meio da apropriação poética de duas figuras extraídas das crônicas de Nelson Rodrigues, “a grã-fina das narinas de cadáver”, símbolo da elite econômica de imaginário colonizado, e a “vizinha gorda e cheia de varizes”, representando a parcela de brasileiros econômica e culturalmente marginalizados.

O segundo trabalho trazido ao evento também se baseia na obra de Nelson Rodrigues. Mas enquanto Bravíssimos e articula ao campo social, Flor de obsessão se volta para as pulsões de vida e morte que podem irromper no cotidiano mais prosaico provocando deformações de comportamento em escala que vai do grotesco ao sublime. Desta vez Ricardo Guilherme parece concentrar sua atuação nos traços expressionistas do universo rodriguiano.

Num estudo sobre a obra de Nelson Rodrigues, Eudinyr Fraga observa que o autor de Álbum de família não é um expressionista na acepção estrita do termo, mas sua visão de mundo fundamenta-se nessa concepção existencial. Em um mundo no qual os valores que sustentavam a vida social se desmoronam a abordagem expressionista se dá pela via da subjetividade. Em termos de linguagem teatral, ainda de acordo com Fraga, o palco torna-se “o espaço interno da consciência” no qual as personagens perdem sua identidade civil tornando-se meras projeções distorcidas de sentimentos recônditos.

A morte atravessa toda a dramaturgia de Flor de obsessão integrada por prólogo, epílogo e um núcleo central de três contos da série A vida como ela é: Morte pela boca (uma mulher abandonada pelo amante confessa o adultério ao marido, é perdoada e, em seguida, exige que o esposo mate o outro com um tiro na boca); Missa de sangue (o marido descobre que a mulher é adúltera quando ela adoece e passa a dizer o nome do amante nos delírios da febre, mas ele só irá encontrar o tal sujeito na missa de sétimo dia da falecida); e Unidos na vida e na morte (sobre um homem que se sente irremediavelmente atado a uma mulher possessiva, a quem ele não ama).

Guilherme: rigor técnico no domínio da máscara facial Divulgação

Guilherme: domínio da máscara facial

Um morto no velório é a primeira imagem de Flor de obsessão. Quando o público entra no teatro Ricardo Guilherme já está em cena, imóvel e vestido de preto, deitado sobre um suporte de madeira cujo formato remete ao de um caixão. Quando o suposto defunto inicia a narrativa essa escolha formal remete a peças como Vestido de noiva ou Valsa nº 6 nas quais as personagens agonizam e as figuras em cena são projeções do inconsciente.

Já nas primeiras palavras o ator assume a alcunha de ‘flor de obsessão’ como se fosse Nelson Rodrigues reencarnado sussurra em tom grave – “a mim só interessam o amor e a morte, mais nada”– ao mesmo tempo em que com as mãos move os músculos do rosto para baixo e para cima. Na sinopse do espetáculo o ator explica o gesto como alusão às máscaras trágica e cômica que simbolizam o teatro, mas a imagem resultante também pode ser apreendida como a mimetização da pintura O grito, do artista expressionista Edward Munch.

Mais do que Bravíssimo, de 2000, que se destina mais ao intelecto do que às emoções, Flor de obsessão, criação de 1993, permite compreender a qualidade atribuída a esse artista, de cujo trabalha a crítica especializada destaca a ampla gama de recursos técnicos, vocais e corporais (em especial na década de 1980, quando a circulação parece ter sido mais intensa, e seu trabalho foi analisado por críticos como Yan Michalski e Macksen Luiz).

É evidente o rigor técnico no domínio da máscara facial, cuja expressividade, colocada a serviço da polifonia da obra rodriguiana, empresta vida pulsante às personagens dos contos escolhidos que, desenhadas pelo autor com economia de traços, nem por isso são pouco complexas. Valorizada pelo recorte da luz, a diversidade de expressões de seu rosto se dá em estreita articulação com o recorte dramatúrgico escolhido. O objetivo, plenamente alcançado, é dar corporeidade à matéria difusa que por vezes não chega nem mesmo ao plano da consciência dos personagens. Sentimentos tão reconhecíveis quanto inconfessáveis são desvelados ao espectador, ora sutis, como a inveja dissimulada da felicidade alheia; ora selvagens como a súbita irrupção do desejo de matar.

Para os que apreciam a arte de atuar Flor de obsessão pode oferecer dupla fruição: da investigação da alma humana, intrínseca ao universo rodriguiano, e da expressão dessa matéria no corpo de um ator.

.:. Escrito no contexto da II Bienal Internacional de Teatro da USP (27/11 a 18/12), em ação da DocumentaCena – Plataforma de Crítica.

.:. Leia as críticas de Daniele Avila Small e Beth Néspoli ao solo Bravíssimo, de Ricardo Guilherme.

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A DocumentaCena – Plataforma de Crítica articula ideias e ações do site Horizonte da Cena, do blog Satisfeita, Yolanda?, da Questão de Crítica – Revista Eletrônica de Críticas e Estudos Teatrais e do site Teatrojornal – Leituras de Cena. Esses espaços digitais reflexivos e singulares foram consolidados por jornalistas, críticos ou pesquisadores atuantes em Belo Horizonte, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo. A DocumentaCena realizou cobertura da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, a MITsp (2014 e 2015); do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília (2014 e 2015); da Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, em São Paulo (2014 e 2015); e do Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto, em Belo Horizonte (2013).

Solo rodriguiano: pulsões de vida e morteSuewellyn Cassimiro

Solo tem pulsões de vida e morte

Ficha técnica:
Texto, direção e atuação: Ricardo Guilherme
Produtora executiva: Elisa Gonçalves de Alencar
Assistente de produção: Suewellyn Cassimiro Sales

Jornalista, crítica e doutora em artes cênicas pela USP. Edita o site Teatrojornal - Leituras de Cena. Tem artigos publicados nas revistas Cult, Sala Preta e no livro O ato do espectador (Hucitec, 2017). Durante 15 anos, de 1995 a 2010, atuou como repórter e crítica no jornal O Estado de S.Paulo. Entre 2003 e 2008, foi comentarista de teatro na Rádio Eldorado. Realizou a cobertura de mostras nacionais e internacionais, como a Quadrienal de Praga: Espaço e Design Cênico (2007) e o Festival Internacional A. P. Tchéchov (Moscou, 2005). Foi jurada dos prêmios Governador do Estado de São Paulo, Shell, Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e Prêmio Itaú Cultural 30 anos.

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