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Crítica

A dialética política de Pommerat

18.3.2016  |  por Ferdinando Martins

Foto de capa: Elisabeth Carecchio

A Revolução Francesa e a industrial estabeleceram as bases estruturais do mundo contemporâneo. Tendo como fundamento teórico o pensamento iluminista, esses dois eventos singulares da História baseavam-se na então suposta capacidade da Razão colocar ordem no mundo e de iniciar uma era de progresso que levaria bem-estar e justiça para todos. O fracasso dessa crença foi evidente em todo o século XX e, hoje, vivemos suas consequências mais indesejáveis. É nessa longa duração de um mesmo processo histórico que se desenvolve Ça ira, do francês Joël Pommerat com a companhia Louis Brouillard, parte da programação da 3ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo.

 Ça ira (“tudo vai dar certo”, em francês) era o nome de uma música cantada pelo povo na Revolução Francesa (confira aqui a interpretação de Edith Piaf em cena do filme Se Versailles falasse, direção de Sacha Guitry, 1954). Na peça, o título da canção vira uma ironia pois as promessas do final do século XVIII não se cumpriram. Liberdade, igualdade e fraternidade nunca foram uma realidade de fato. O Iluminismo tornou-se Positivismo, com sua fé na ciência legitimando e justificando novas formas de exploração. Para o povo, a única liberdade possível foi a de vender sua força de trabalho. A ignorância ampliou-se e o maniqueísmo virou regra. Como consequência mais devastadora, no mundo contemporâneo a capacidade de pensar criticamente está enfraquecida, gerando polarizações como a que se passa agora com a opinião pública brasileira, reduzindo qualquer discussão política ao embate entre “petralhas” e “coxinhas”, expressões pejorativas para quem diverge do Outro.

A peça vai criando uma imagem caleidoscópica, na qual as alianças são quebradas e destruídas. As falas tornam-se incoerentes, levianas, não coincidindo com o ideal que os sujeitos intentam expressar

É justamente esse o ponto central de Ça ira. Ao acabar com os privilégios da aristocracia, os novos cidadãos não tiveram êxito em criar as bases de uma sociedade justa e pensante. Ao chegar ao poder, a burguesia submeteu o povo às condições de trabalho por ela oferecidas como proprietária dos meios de produção. Não por acaso, apesar de tratar da revolução já ocorrida, Pommerat trabalhou um tempo anacrônico, misturando diferentes épocas históricas. O resultado não é um pastiche, mas sim um todo coerente que tem como elemento aglutinante os fracassos dos ímpetos revolucionários do século XVIII. Nesse sentido, o diretor afirma no catálogo da MITsp que não é uma peça política, mas sim sobre política. Sendo o teatro, etimologicamente, um “lugar para olhar”, Ça ira é um observatório da política contemporânea que não se satisfaz com interpretações pontuais, mas busca causas mais profundas da conjuntura contemporânea.

Ao mesmo tempo, Ça ira destaca múltiplas contradições e nuances, revelando que as polaridades são imaginárias. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, documento mais conhecido da Revolução Francesa, propunha uma universalidade inexistente. Ignorou que o particular cindiria os planos. Dessa forma, não há na peça uma lógica aristotélica, mas sim uma dialética manifesta nas muitas guinados das personagens. Conforme destaca Daniel Schenker em crítica aqui no Teatrojornal, há em Cinderela, outro trabalho de Pommerat apresentado na MITsp, e Ça ira uma “desconexão entre fala e escuta”, que na segunda se manifesta nas reações contundentes e passionais geradas pelo pronunciamento público.

Dividida em três partes, com dois intervalos entre elas, Ça ira é uma peça longa e que exige atenção vigilante. Em muitas cenas os atores atuam da plateia, transformando o público em participantes de sessões da Assembleia Nacional francesa ou em figurantes da vida na corte. Esse envolvimento torna a experiência viva, tirando os espectadores do estado de contemplação. Com isso, estimula a crítica e a tomada de posição. Mais ainda, torna todos os presentes em cúmplices de um estado de coisas que necessita urgentemente ser modificado.

Tendo a democracia como projeto inquestionável, Ça ira nos pergunta se o “governo do povo” pode deixar de ser discursivo para concretizar-se no Real. De um lado, está Luis XVI e seu séquito, acreditando que de Versalhes, distante de Paris, conseguirá governar. Essa distância não é somente geográfica, como ficará evidente na terceira parte da peça. De outro lado, o povo exige em suas falas mudanças rápidas e uma política que de fato dialogue com a população. Entre um extremo e outro estão os acólitos do rei, a Igreja, as Forças Armadas, os deputados, os líderes dos bairros. A peça vai criando uma imagem caleidoscópica, na qual as alianças são quebradas e destruídas. As falas tornam-se incoerentes, levianas, não coincidindo com o ideal que os sujeitos intentam expressar.

O encenador francês Jöel PommeratElisabeth Carecchio

O encenador francês Jöel Pommerat e as vozes clivadas

Quando os filósofos frankfurtianos Theodor Adorno e Max Horkheimer escreveram o livro Dialética do Iluminismo, mostraram que o germe do fracasso do ideal iluminista e da democracia estava já presente em seu projeto. O antissemitismo e a indústria cultural valeram-se das fragilidades humanas para dominar. Em larga medida, Ça ira coloca em cena sujeitos clivados, divididos entre previsões que contavam com a racionalidade supostamente humana, mas traídos por suas próprias pulsões contraditórias e inexplicáveis. Nessa linha, uma mesma mulher que exige mudanças sociais e o fim de privilégios da monarquia fica deslumbrada diante de Luis XVI. Ou o militante de bairro, negro, empunha uma metralhadora e revela-se mais autoritário que o próprio rei. São eles, portanto, expressões da dialética de um projeto de modernidade que precisa dar conta de seu oposto.

As opções formais de Ça ira são expressivas. Nos cenários e nos figurinos, predominam tons neutros. A simplicidade cenográfica conduz o espectador para a atuação dos atores, obrigando-o a se concentrar no texto. Este, por sua vez, esbarra nos limites do dramático e do épico, ambos gêneros mostrando-se insuficientes para a narrativa que Pommerat quer construir. Daí a necessidade de sua dramaturgia ser construída junto com o espetáculo, com imagens cênicas e palavras formando um único signo.

Em tempos sombrios, Ça ira abre brechas para se pensar uma política possível.

.:. Ça Ira teve três apresentações na 3ª Mostra Internacional de Teatro, nos dias 4, 5 e 6 de março de 2016.

.:. Leia a crítica de Beth Néspoli para Cinderela, outra direão de Pommerat na MITsp.

Sociólogo, jornalista e professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Líder da linha Estudos da Performance e Processos de Subjetivação do Grupo de Pesquisa Alteridade, Subjetividades, Estudos de Gênero e Performances nas Comunicações e Artes. Desenvolve pesquisas nas áreas de história da arte, teorias do teatro, estudos da performance, psicanálise e produção cultural. É, também, jurado dos prêmios Shell SP, Bibi Ferreira e da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA).

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