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Artigo

A Guanabara de Gonzalo

14.4.2016  |  por Fernando Marques

Foto de capa: Miramax Films

As relações entre o dramaturgo inglês William Shakespeare (1564-1616) e o pensador francês Michel de Montaigne (1533-1592), autor dos Ensaios, evidenciam-se em passagem breve, mas significativa, da comédia A tempestade, uma das últimas obras de Shakespeare, datada de 1611.[i] Os dois escritores prefiguram uma consciência política moderna, com os valores éticos a ela associados.

As falas em que o dramaturgo parafraseia o filósofo acham-se na primeira cena do segundo ato, ditas por Gonzalo, “um velho e honesto conselheiro”. Conforme o argumento, Gonzalo encontrava-se no navio em que viajavam Alonso, rei de Nápoles, e outros nobres. O barco naufraga e vem bater na ilha onde vive Próspero, dono de poderes mágicos. Tempos antes, Alonso havia colaborado na deposição de Próspero, “o legítimo duque de Milão”, protagonista e narrador de A tempestade.

Os dois primeiros dos três volumes dos Ensaios haviam sido publicados em 1580, em Paris; a íntegra saiu postumamente, em 1595. O livro de Montaigne elabora os assuntos mais diversos – sentimentos, costumes, fatos e conceitos políticos, a própria condição humana –, mas parece haver um eixo, ou método, a partir do qual giram os comentários: a atitude não dogmática, dubitativa, inquiridora.

Delineia-se na peça, com clareza inequívoca, o tema do governo legítimo e justo, assaltado por gente gananciosa, desprovida de quaisquer escrúpulos – tema trabalhado por Shakespeare em diversos textos

O trecho em causa pertence a “Dos canibais”, capítulo XXXI dos Ensaios: trata-se ali de pôr em questão a ideia muito disseminada de que os europeus são civilizados, enquanto os povos primitivos não o seriam; ou, por outra, a ideia de que a maneira de viver desses povos é grosseira, inferior à dos colonizadores.[ii]

Montaigne discorda, baseando-se não apenas em relatos, mas em contatos pessoais, segundo conta no início do capítulo: “Durante muito tempo tive a meu lado um homem que permanecera dez ou doze anos nessa parte do Novo Mundo descoberto neste século, em que tomou pé Villegaignon e a que deu o nome de ‘França Antártica’”. A colônia por ele liderada manteve-se na Baía de Guanabara de 1555 a 1560; os índios mencionados pelo filósofo eram, portanto, brasileiros (índios Tupinambás, aliados dos franceses contra os portugueses).

A obra de Montaigne foi vertida para o inglês alguns anos depois de sua edição póstuma, como assinala a nota introdutória à tradução de A tempestade que utilizamos, devida a Carlos Alberto Nunes. Nunes escreve: “A república ideal bosquejada por Gonzalo na cena I do ato II é inspirada nos Ensaios de Montaigne, traduzidos para o inglês por Florio, em 1603. No Museu Britânico conserva-se um exemplar dessa obra, que passa por ter pertencido a Shakespeare”.

Michel de Montaigne Domínio Público

Michel de Montaigne

Quando, guiados pela informação de Nunes, voltamos à peça, à primeira vista podemos nos decepcionar. Sim, porque se trata de falas breves – e de imediato ridicularizadas pelos interlocutores, companheiros de Gonzalo no naufrágio que os levou à ilha aparentemente deserta, habitada por Próspero e sua filha Miranda. Adiante notaremos, contudo, o sentido maior que essas réplicas ajudam a construir.

Próspero conta com poderes extraordinários, assimilados nos livros que guardou consigo quando foi expulso de Milão; ele deve a posse desses livros e de outros objetos à generosidade de Gonzalo. Os sortilégios lhe permitem promover a tempestade que faz naufragar o navio com Alonso e seu irmão Sebastião, nobres de Nápoles, e Antônio, irmão de Próspero, de Milão. Antônio havia traído Próspero, roubando-lhe o trono, para isso submetendo o ducado a Nápoles; Alonso e Sebastião foram cúmplices do usurpador.

O objetivo de Próspero, ao produzir a tormenta e com ela o naufrágio, foi reunir na ilha os que o depuseram, não para maltratá-los, mas para lhes dar uma lição. O final feliz garante-se também com o casamento de Ferdinando, filho de Alonso, e Miranda, ligando-se com isso os dois reinos. Os jovens se apaixonam ao primeiro olhar, com direito aos melhores lugares-comuns do lirismo amoroso.

Delineia-se na peça, com clareza inequívoca, o tema do governo legítimo e justo, assaltado por gente gananciosa, desprovida de quaisquer escrúpulos – tema trabalhado por Shakespeare em diversos textos, a exemplo de Ricardo III, Hamlet e Macbeth. Se, nessas tragédias, as possíveis simpatias do autor permanecem implícitas – mas, a meu ver, nem por isso menos nítidas –, na comédia A tempestade tais simpatias, correspondentes a valores éticos e políticos, surgem com clareza quase didática.

Vamos então a Montaigne e sua reaparição, praticamente literal, nas falas de Gonzalo. Cito o parágrafo do texto francês, em tradução de Sérgio Milliet:

  Esses povos não me parecem, pois, merecer o qualificativo de selvagens somente por não terem sido senão muito pouco modificados pela ingerência do espírito humano e não haverem quase nada perdido de sua simplicidade primitiva. As leis da natureza, não ainda pervertidas pela imisção [intromissão] dos nossos, regem-nos até agora e mantiveram-se tão puras que lamento por vezes não as tenha o nosso mundo conhecido antes, quando havia homens capazes de apreciá-las. Lamento que Licurgo e Platão não tenham ouvido falar delas, pois sou de opinião que o que vemos praticarem esses povos não somente ultrapassa as magníficas descrições que nos deu a poesia da idade de ouro, e tudo o que imaginou como suscetível de realizar a felicidade perfeita sobre a terra, mas também as concepções e aspirações da filosofia. Ninguém concebeu jamais uma simplicidade natural elevada a tal grau, nem ninguém jamais acreditou pudesse a sociedade subsistir com tão poucos artifícios.

Ainda no mesmo parágrafo, aparecem a seguir as palavras que mais nos interessam agora, porque aproveitadas por Shakespeare:

É um país, diria eu a Platão, onde não há comércio de qualquer natureza, nem literatura, nem matemáticas; onde não se conhece sequer de nome um magistrado; onde não existe hierarquia política, nem domesticidade, nem ricos e pobres. Contratos, sucessão, partilhas aí são desconhecidos; em matéria de trabalho só sabem da ociosidade; o respeito aos parentes é o mesmo que dedicam a todos; o vestuário, a agricultura, o trabalho dos metais aí se ignoram; não usam vinho nem trigo; as próprias palavras que exprimem a mentira, a traição, a dissimulação, a avareza, a inveja, a calúnia, o perdão, só excepcionalmente se ouvem. Quanto a República que [Platão] imaginava lhe pareceria longe de tamanha perfeição! “São homens que saem das mãos dos deuses [Sêneca].” “Como essas, foram as primeiras leis da natureza [Virgílio]”.

William ShakespeareDomínio Público

William Shakespeare

Vejamos a passagem na qual Shakespeare acusa ter lido Montaigne, incorporando algo de suas ideias. A descrição, no texto francês, da vida nas comunidades indígenas transforma-se, na comédia, em imagem da utopia – com a qual se criticam os valores da Europa de seu tempo:

GONZALO – Se eu tivesse

nesta ilha, meu senhor, uma lavoura…

ANTÔNIO – Urtiga plantaria.

SEBASTIÃO – Ou malva e grama.

GONZALO – E eu, que faria, se rei dela fosse?

SEBASTIÃO – Não vos embriagaríeis, por não terdes

vinho para beber.

GONZALO – Não; na república

faria tudo pelos seus contrários,

pois não admitiria espécie alguma

de comércio; de magistrados, nada,

nem mesmo o nome; o estudo ficaria

ignorado de todo; suprimira,

de vez, ricos e pobres e os serviços;

contratos, sucessões, questões de terra,

demarcações, cuidados da lavoura,

plantação de vinhedos, nada, nada.

Nenhum uso, também, de óleo e de vinho,

trigo e metal. Ocupação, nenhuma.

Todos os homens, ociosos, todos.

E as mulheres, também; mas inocentes

e puras. Faltaria, de igual modo,

soberania…

SEBASTIÃO – Mas o rei era ele.

ANTÔNIO – Da república o fim esquece o início.

GONZALO – Todas as coisas em comum seriam,

sem suor nem esforço, produzidas

pela natura. Espadas, espingardas,

facas, chuços, traições e felonias,

eu não admitiria. A natureza

produziria tudo por si mesma,

só para alimentar meu povo ingênuo.

SEBASTIÃO – E casamentos, haveria entre eles?

ANTÔNIO – Não, meu caro senhor, vadios todos:

vilãos e prostitutas.

GONZALO – De tal modo

governaria, que deitara sombra

à própria idade de ouro.

SEBASTIÃO – Deus vos guarde,

majestade!

ANTÔNIO – Gonzalo viva! Viva!

Diga-se que a citação literal ou a paráfrase sem referência à fonte – pela qual o poeta, na prática, tomava posse do alheio – era procedimento comum em sua época, segundo informa o biógrafo Bill Bryson, autor de Shakespeare – O mundo é um palco. Lembrem-se ainda as indicações feitas pelo crítico Anatol Rosenfeld no artigo “Shakespeare e o pensamento renascentista”, que consta de Texto/contexto: as ideias renovadoras então formuladas por filósofos como o italiano Giordano Bruno (1548-1600), que esteve na Inglaterra de 1583 a 1585, eram de seu provável conhecimento. A obra de Montaigne, conforme se sabe, foi com certeza lida ou compulsada pelo dramaturgo.

Se as palavras de Gonzalo são alvo da ironia de Sebastião e Antônio, que as depreciam, os sinais vão se alterar no decorrer da história. Vamos ver Sebastião e Antônio a combinarem o assassinato de Alonso, enquanto o rei dormia, crime frustrado pela intervenção mágica de Ariel, “espírito do ar” a serviço de Próspero.[iii] Veremos ainda as qualidades de Gonzalo, afirmadas por Próspero já no começo da peça, serem reafirmadas por ele ao final.

No início, o deposto duque de Milão, ao recordar a maneira casual por que Miranda e ele chegaram à ilha, diz: “Conosco tínhamos/ alimentos alguns e um pouco de água/ potável que Gonzalo, da nobreza/ napolitana, e que incumbido fora/ da execução de todo esse projeto,/ por piedade, tão só, nos concedera,/ além de ricas vestes, linho, panos/ e muitas outras coisas, que têm sido/ de grande utilidade”.

Próspero continua com palavras que, além de assinalarem a gentileza de Gonzalo, reiteram o poder que o estudo das “ciências secretas” lhe havia conferido (a dedicação às “artes liberais” é mencionada por ele pouco antes, nesse longo relato feito a Miranda): “Assim, por pura/ gentileza, sabendo quanto apego/ eu tinha aos livros, trouxe-me de minha/ biblioteca volumes que eu prezava/ mais do que meu ducado”.[iv]

Celso Frateschi é Próspero na encenação de Gabriel Villela em 2015João Caldas Fº

Celso Frateschi é Próspero na encenação de Gabriel Villela de 2015

O esboço de república ideal, desacreditado por interlocutores hostis, se revalida quando sabemos quem é Gonzalo e quais são as suas qualidades – ainda que se aponte alguma ingenuidade em seu discurso. Em contrapartida, sempre atendendo à economia de significados proposta na peça, desqualifica-se o sarcasmo com que os criminosos Antônio e Sebastião recebem a descrição da ordem social inspirada em Montaigne. (É certo que o clima cômico, na sua leveza irresponsável, nesse momento consegue tornar quase simpáticas essas duas personagens – de resto, sombrias.)

Embora esse não seja o tema central da comédia, que consiste na legitimidade dos governos (além dos motivos paralelos, como o encarnado em Calibã), de todo modo o dramaturgo empresta razão a Gonzalo quando Próspero faz o elogio deste mais uma vez, no desfecho: “Impecável Gonzalo, homem honrado;/ meus olhos, compassivos com a atitude/ dos teus, deixam cair gotas amigas”. O mote da república utópica, dado no segundo ato, adiciona-se por afinidade ao assunto mais amplo do governo digno.

Os sentimentos generosos, conciliatórios, afinal prevalecem nessa profissão de boa-fé política legada por Shakespeare em uma de suas últimas obras.[v] Se alguns heróis do autor (Ricardo III, Macbeth) se assemelham ao príncipe amoral de Maquiavel, o protagonista desta comédia ambígua, em contraste, pensa em “perdão” e “entendimento”. Na mesma fala, temos os seguintes versos:

PRÓSPERO – Meu salvador sincero, bom Gonzalo,

servidor dedicado de teu amo,

hei de pagar-te em casa os benefícios

com palavras e obras. Por maneira

crudelíssima, Alonso, procedeste

comigo e minha filha. Foste nisso

levado por teu mano. Esse o motivo,

Sebastião, de sofreres tantas dores

e vós aí, meu sangue e minha carne,

meu irmão, que à ambição deste acolhida,

expulsando o remorso e a natureza –

razão de serem muito mais intensas

as compunções internas – planejastes

assassinar aqui vosso monarca.

Embora sejas um desnaturado,

recebe o meu perdão. – O entendimento

já começa a crescer e a maré próxima

dentro de pouco cobrirá a praia

da razão, que ainda está cheia de lama.

A defesa feita por Montaigne dos povos naturais, lida e utilizada por Shakespeare nesse testamento que é A tempestade, relaciona os dois autores à corrente humanista que, projetando-se a partir do século XVI, alcança o nosso tempo.

Citações:

[i] O leitor poderá localizar sem dificuldade, na internet, trabalhos de pesquisadores que abordam ou mencionam a apropriação criadora feita por Shakespeare do texto de Montaigne.

[ii] No que toca à prática do canibalismo, referida já no título da seção, Montaigne lembra que “Crísipo e Zenão, chefes da escola estoica, admitiam não haver mal em tirar partido de nossos cadáveres se necessário, nem mesmo em nos alimentarmos deles como o fizeram nossos antepassados que, assediados por César em Alésia, resolveram, a fim de prosseguir resistindo, matar a fome comendo os velhos, as mulheres e todos os que não fossem úteis ao combate”, algo inimaginável para nós hoje. Contudo, ele pondera: “Mas não se ouviu jamais ninguém que tivesse o julgamento moral assaz pervertido para desculpar a traição, a deslealdade, a tirania, a crueldade, nossos defeitos habituais. Podemos portanto qualificar esses povos como bárbaros em dando apenas ouvidos à inteligência, mas nunca se os compararmos a nós mesmos, que os excedemos em toda sorte de barbaridades”.

[iii] Outra criatura ligada a Próspero chama-se Calibã, nome que é “evidente anagrama de canibal”, lembra Carlos Alberto Nunes. Figura cômico-grotesca, estranhamente próxima dos animais, Calibã não chega a ser mau de fato (no que acompanho a opinião de Nunes). No desfecho, afirma querer mostrar-se “mais razoável” e se penitencia por ter sido ingênuo, “tomando por um deus este bêbado”, como diz referindo-se ao funcionário Estéfano.

[iv] A falha trágica de Próspero parece ter sido a de devotar todo o seu tempo ao estudo de artes e ciências. Ele admite: “o peso do governo/ transferi a meu mano, assim tornando-me/ cada vez mais estranho à minha terra,/ porque às ciências secretas dedicado”. Seu irmão valeu-se da ausência, derrubando-o. Neste contexto, talvez se deva falar em falha tragicômica, não fatal.

[v] Shakespeare afirma a paz como um valor em si. Montaigne, embora lamente o pendor humano para a guerra, “essa doença da humanidade”, não deixa de admirar a coragem para o conflito armado e o destemor frente à morte, traços que se verificariam entre os chamados primitivos.

Referências:

BRYSON, Bill. Shakespeare – O mundo é um palco: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. Tradução de Sérgio Milliet. Em dois volumes. 4ª. edição. Coleção Os pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1987.

______. Os ensaios. Organização de Michael A. Screech. Tradução e notas de Rosa Freire d’Aguiar. Introdução de Erich Auerbach. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

ROSENFELD, Anatol. “Shakespeare e o pensamento renascentista”, em: Texto/contexto. São Paulo: Perspectiva/INL, 1973.

SHAKESPEARE, William. Comédias. Tradução e comentários de Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.

______. A tempestade. Tradução e introdução de Barbara Heliodora. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.

 

Professor do departamento de artes cênicas da Universidade de Brasília (UnB), na área de teoria teatral, escritor e compositor. Autor, entre outros, de ‘Zé: peça em um ato’ (adaptação do ‘Woyzeck’, de Georg Büchner); ‘Últimos: comédia musical’ (livro-CD); ‘Com os séculos nos olhos: teatro musical e político no Brasil dos anos 1960 e 1970’ e ‘A província dos diamantes: ensaios sobre teatro’. Também escreveu a comédia ‘A quatro’ (2008) e a comédia musical ‘Vivendo de brisa’ (2019), encenadas em Brasília.

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