Crítica
Intrínseca à linguagem do teatro desde sempre, a instabilidade entre artifício e realidade é cada vez mais tornada matéria de trabalho na cena contemporânea. Nessa vertente, claramente alinhada com as experimentações que vêm tomando os palcos nos últimos tempos, o diretor da Companhia de Teatro Heliópolis, Miguel Rocha, cria o espetáculo Medo como experiência de trânsito em um espaço labiríntico e difuso entre o falso e o verdadeiro.
Itinerante, a montagem-instalação com texto assinado por Gustavo Guimarães, e escrito em processo colaborativo, ocupa todos os cômodos e também o palco da Casa de Teatro Maria José de Carvalho, espaço público situado no Ipiranga, zona sul de São Paulo, vinculado à Secretaria de Cultura do Estado e, desde 2010, administrado pelo grupo. Com 16 anos de existência, a trupe nasceu com a estreia de A queda para o alto, dirigido por Miguel Rocha e integrado por jovens da comunidade de Heliópolis.
Atualmente o núcleo duro é composto pelos atores Dalma Régia, David Guimarães, Donizete Bonfim e Klaviany Costa, além de Rocha, todos moradores de Heliópolis. A informação tem relevância porque pode afetar criação e recepção. Na abordagem de Medo, o recorte escolhido é o sentimento de terror experimentado cotidianamente no espaço urbano, em especial nas áreas periféricas das cidades brasileiras. Ao menos potencialmente, são vozes que carregam o atributo da credibilidade ao tratar do tema, uma vez que, deduz-se, trabalham com matéria-prima da vivência em meio cultural propício à intensificação desse sentimento.
A mescla de experiência e temática justifica a escolha, nesta montagem, de uma linguagem não logocêntrica, ou seja, cuja chave de acesso depende menos da palavra e mais de imagens e situações direcionadas para afetar o corpo-carne do espectador, sem que isso se traduza em desprezo pela elaboração do texto.
A casa-instalação não oferece abrigo, as paredes não protegem e o piso não permite o repouso; sem que o sentido de moradia seja apagado do sobrado, situações são criadas para que a sensação de insegurança seja compartilhada pelo espectador
Como observa o historiador britânico Eric Hobsbawn, o termo comunidade nunca foi utilizado tantas vezes e de modo tão vazio de significado como na época atual em que a existência delas, no sentido sociológico de pertencimento e espaço de proteção, passou a ser praticamente impossível. A questão também é objeto de análise do sociólogo polonês Zygmunt Bauman em um estudo não por acaso intitulado Comunidade, a busca por segurança no mundo atual. Em síntese, ele defende que certa noção de “identidade” brota entre os túmulos da ideia de comunidade, mas se apoia justamente na promessa de sua ressurreição.
No Brasil, esse termo, na mesma linha contraditória apontada pelo sociólogo, é usado para designar territórios violentos desde sua gênese porque ocupados por deslocamento involuntário e devido ao alijamento das pessoas com relação ao locus de poder e de concentração de riqueza. Quando artistas originários dessas regiões produzem e compartilham bens simbólicos, tal “identidade” cultural pode ou não ser matéria de sua arte e da recepção.
Salvo engano, os artistas do Teatro de Heliópolis não buscam apagar esse lugar de origem, mas também não fazem dele base de apoio para um tipo de (por vezes cômodo) discurso de identidade. A busca parece ser a de transformar esse solo em plataforma de salto poético, como já foi possível observar no trabalho anterior, A inocência do que eu (não) sei, que problematizava o sistema educacional por meio de imagens cuja síntese crítica era fruto de elaboração sobre a carga simbólica de alguns elementos-chave como giz, maçã e livros. Com dramaturgia de Evill Rebouças, resultou de um longo processo de pesquisa em escolas públicas intitulado “Onde o percurso começa? Princípios de identidade e alteridade no campo da educação”, apoiado pela 25ª edição do Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo.
Em Medo, a maneira como a direção articula narrativa e escritura cênica já pode ser percebida no primeiro movimento, acompanhado pelo público ainda na rua, e perpassará todo o espetáculo. Mulheres (Klaviany Costa e Janete Rodrigues) chegam apressadas e aflitas em busca de um filho, um menino supostamente cativo que pode ser visto diante de uma porta aberta, mas não alcançado. Simultaneamente, nas janelas superiores do sobrado, fumaça e iluminação em tons de vermelho embaçam a imagem do que o grupo designa como “carcarás”, vultos mascarados (Lucas Ramos e Walmir Bess) em atitude agressiva. Pouco depois, no térreo, a porta se fecha com brusquidão impedindo o contato das mães com o garoto. A atmosfera sugestiva é trunfo perseguido não apenas nessa cena de abertura, mas em todo o percurso, pois se fica claro que há algum processo de crueldade em andamento, os agentes não são explicitados, nem as motivações, e assim a encenação busca ampliar para o espectador as possibilidades de leitura e o interesse pelo que irá ocorrer.
Ao longo de todo o percurso, procedimentos como ruídos súbitos, passagem por degraus molhados, assim como o uso de máscaras, fumaça ou cortinas plásticas que nublam a visão são formalizações criadas com o intuito de deixar o público em estado de alerta e provocar a sensação de medo que penetra corpos em situação de desamparo. Não sendo obviamente escolha aleatória, o efeito crítico buscado é o da similaridade: em Medo, a exemplo do que ocorre com determinadas residências em estado de precariedade, a casa-instalação não oferece abrigo, as paredes não protegem e o piso não permite o repouso. Sem que o sentido de moradia seja apagado do sobrado, situações diversas são criadas para que a sensação de risco e insegurança, apenas sugerida de início e sublinhada na cena final, seja (fisicamente) compartilhada também pelo espectador.
Assim a encenação busca instaurar no espaço da casa-sede alguns desses territórios “fora da lei”, ou seja, fora da proteção jurídica, onde policiais ou traficantes se sentem autorizados a chutar portas e invadir casas e corpos a qualquer momento para realizar “justiça”. Há também referência a locais nos quais a ordem pode ser esgarçada a qualquer momento e a multidão explodir suas tensões em fúria, como estações de metrô ou mesmo a calçada de uma grande avenida.
Se por um lado a tessitura dramatúrgica pede dos atores uma linha de trabalho sobre estados emocionais, por outro, os intérpretes tendem a desdobrar as ações em gestos excessivos e a optar por modulações vocais carregadas de sentimentalismo
Vale ressaltar a capacidade do grupo para moldar diferentes materiais em composições significativas, como a criada pela junção de elementos como folhas secas que recobrem todo o piso de um dos cômodos e impregnam o ambiente de um odor forte, uma criança (Gustavo Rocha) sobre um velocípede e uma mulher que olha para o vazio. O quadro ganha movimento quando o menino lê em voz alta uma inscrição na parede enquanto a mulher (Janete Rodrigues) passa a falar um texto no qual critica em tom de espanto uma mãe-pássaro que permite ao filhote o arriscado voo do ninho. Há outras composições fortes como na cena final do espetáculo quando um líquido negro escorre do corpo de uma criança (de novo Gustavo) e o texto da mãe (Dalma Régia) faz referência a sangue, saco preto, e à solidão no café da manhã do dia seguinte ao assassinato do filho.
Só ameaça e medo, mais ou menos velados, vinculam as cenas, uma vez que a dramaturgia, em chave lírica, não se estrutura por encadeamento claro de causa e efeito até um desfecho. Sendo assim, seria de se esperar algum grau de diferença de intensidades entre as diversas cenas. Porém, há oscilações e esgarçamentos de tensão fortes o suficiente para provocar a ruptura da atenção do espectador. Um dos possíveis problemas detectados para essa ocorrência é a aposta em um estado de denegação permanente, ou seja, naquele desarmamento de defesas necessário para o pacto de adesão ao artifício de ilusão ocorra. Diferentemente do parque de diversões, onde o objetivo é mesmo de algum grau de infantilização e de entrega às sensações, a proposta da Companhia de Teatro Heliópolis é de outra ordem. A trajetória do grupo permite afirmar que busca-se abrir um campo de tensão entre o aqui e agora dos corpos e da materialidade e o lá e além da narrativa de modo a potencializar criticamente a abordagem temática.
Em Medo, as regras do jogo entre falso e verdadeiro só podem ser pactuadas com base em cumplicidade entre adultos. A análise deve resistir à prescrição, mas é inevitável não sentir falta de algumas quebras de representação durante as quais atores e espectadores assumissem a presença compartilhada e uma relação igualitária de encontro no mesmo espaço e tempo. Se adotado, tal procedimento talvez provocasse um efeito salutar no campo da recepção porque poderia agir como momento de repactuação da denegação necessária à sustentação da atmosfera estabelecida.
Outro possível problema detectado para o afrouxamento da densidade está no modo de interpretação escolhido. Se por um lado a tessitura dramatúrgica pede atuações elaboradas sobre estados emocionais, por outro, os intérpretes, em maior ou menor grau, tendem a desdobrar as ações em gestos excessivos e a optar por modulações vocais carregadas de sentimentalismo, cuja resultante é dispersar atenção e energia. Há muitos momentos em que as situações propostas teriam a ganhar em intensidade expressiva se houvesse maior concentração de movimentos, como na cena em que uma atriz escava a terra com as mãos, ação tátil que reverbera no corpo do espectador, mas cuja potência se dilui por excesso de movimentação. Se a percepção tiver alguma validade, e não for fruto de equívoco, são ajustes que podem ser feitos durante a temporada, problemas que não retiram o desejo de seguir acompanhando o trabalho do grupo.
Serviço:
Medo
Onde: Casa de Teatro Maria José de Carvalho (Rua Silva Bueno, 1533, Ipiranga, São Paulo, tel. 11 2060-0318)
Quando: sábados e domingos, às 20h. Até 8/5
Quanto: R$ 20
Duração: 70 minutos
Capacidade: 15 lugares Agendamento: ctheliopolis@ig.com.br
Não possui acessibilidade, pagamento só em dinheiro
Ficha técnica:
Concepção e encenação: Miguel Rocha
Autor: Gustavo Guimarães
Com: Alex Mendes, Dalma Régia, Francyne Teixeira, Gustavo Rocha, Janete Rodrigues, Klaviany Costa, Lucas Ramos e Walmir Bess
Instalação cênica: Samara Costa e pinturas de Isabelle Benard Figurinos: Samara Costa
Iluminação: Toninho Rodrigues, Rodrigo Alves e Miguel Rocha
Sonoplastia: Giovani Breissanin
Sonorização: Giovani Breissanin e Lucas Breissanin
Assessoria de imprensa: Eliane Verbena
Designer gráfico: Camila Teixeira
Fotos: Geovanna Gelan
Realização: Companhia de Teatro Heliópolis
Jornalista, crítica e doutora em artes cênicas pela USP. Edita o site Teatrojornal - Leituras de Cena. Tem artigos publicados nas revistas Cult, Sala Preta e no livro O ato do espectador (Hucitec, 2017). Durante 15 anos, de 1995 a 2010, atuou como repórter e crítica no jornal O Estado de S.Paulo. Entre 2003 e 2008, foi comentarista de teatro na Rádio Eldorado. Realizou a cobertura de mostras nacionais e internacionais, como a Quadrienal de Praga: Espaço e Design Cênico (2007) e o Festival Internacional A. P. Tchéchov (Moscou, 2005). Foi jurada dos prêmios Governador do Estado de São Paulo, Shell, Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e Prêmio Itaú Cultural 30 anos.