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Crítica Militante

Diálogos interamericanos

7.6.2016  |  por Afonso Nilson

Foto de capa: Fabrício Porto

O afastamento cultural entre o Brasil e os outros países da América Latina é bem maior do que a distância geográfica, principalmente quando se trata de acesso recíproco ao que se produz nos países do continente. Falando especificamente sobre publicações de dramaturgia, vertente que atinge um público bastante restrito, menor do que o de literaturas não dramáticas, como romances, teoria ou poesia, por exemplo, esse afastamento é ainda maior. Raros autores latino-americanos de língua espanhola são publicados no Brasil, e desse conjunto, os dramaturgos acabam sendo escassos. O mesmo se dá com autores brasileiros e suas parcas participações no mercado editorial de língua hispânica na América Latina.

Nesse sentido, uma iniciativa marcante de tradução e publicação é a coleção P.E.R.I.F.É.R.I.C.O, que através da Escola Sesc de Ensino Médio, a Esem, no Rio de Janeiro, publica sistematicamente dramaturgia de países latinos de língua hispânica. O projeto já está em sua 4ª edição, tendo lançado até agora 15 autores em traduções inéditas.

Os livros da coleção P.E.R.I.F.É.R.I.C.O são distribuídos gratuitamente a instituições de ensino ou culturais, mediante contato com o departamento de cultura da Esem

É muito mais comum o público brasileiro ter acesso a publicações da cena de Espanha, como a já esgotada Nova dramaturgia espanhola, da 7Letras, ou a coleção de novos autores espanhóis recentemente publicada pela Cobogó. Mas textos teatrais argentinos, uruguaios ou mexicanos são raridade absoluta entre as editoras nacionais. Isso não quer dizer que encenações desses autores sejam inéditas no Brasil. Montagens de textos latino-americanos podem não ser tão frequentes quanto às de autores de língua inglesa ou francesa. Entretanto, dramaturgos como Daniel Veronese, Gustavo Ott, Eduardo Pavlovsky e Griselda Gambaro, entre outros latino-americanos, acabam por ter também sua participação na cena contemporânea brasileira.

Em um rápido panorama, apenas sobre encenações catarinenses de autores latino-americanos, teremos o argentino Eduardo Pavlovsky, com Pavlov, encenado pelo Grupo Teatro em Trâmite em 2013; Daniel Veronese, que teve encenados Álbum sistemático da infância, Líquido tátil e Women’s pela Cia. Experiência Subterrânea, respectivamente em 1997, 2002 e 2009; a importantíssima e ainda inédita em português Griselda Gambaro, com  A ingênua, Cia. Téspis, em 2008; e o venezuelano Gustavo Ott,  com Dois amores e um bicho, pela Cia. Experimentus Teatrais, em 2010; e Passport, pela Cia. Rústico Teatral, em 2011, apenas para citar algumas peças de maior circulação e relevância. Acontece, salvo engano, que apesar das traduções originais, à época das encenações, nenhum desses autores havia sido publicado em português.

É nesse sentido que a coleção P.E.R.I.F.É.R.I.C.O. supre uma lacuna importante no acesso à literatura dramática latino-americana publicada no Brasil. Em sua primeira edição, de 2012, foram traduzidos os textos Dois amores e um bicho, de Gustavo Ott (Venezuela, tradução de Carlito Azevedo); Daniel e os leões, de Maikel Rodrígues de la Cruz (Cuba, tradução de Pedro Freire); Desaparecidos, de Claudia Eid Asbún (Bolívia, tradução de Ieda Magri) e Papai está na Atlântida, de Javier Malpica (México, tradução de Cláudia Sampaio). Interessante notar a inserção de alguns autores na cena brasileira contemporânea a partir dessas traduções. O texto Dois amores e um bicho, por exemplo, teve pelo menos duas montagens diferentes nos últimos anos, a do grupo Tentáculos Espetáculos (RJ), em 2014, e a do Clowns Shakespeare (RN), em 2015, ambas utilizando a tradução de Carlito Azevedo.

Marlon Zé em Penas e alegrias de um transformistaJoão Ricardo

Marlon Zé em Eusebio Ramírez, penas e alegrias de um transformista, Cia. Vai, de Joinville

Em 2013, foram publicados Atribulações de um autor desconcertado, ou a saga do espelho constante, de José Félix Assad Cuéllar (Colômbia, tradução de Livia Lira e Leonardo Munk); Rua de mão única, de Sara Joffré (Peru, tradução de Ieda Magri), O último tango – Musical de câmara em um ato, de Álvaro Ahunchain (Uruguai, tradução de Carolina dos Santos, Josefina Mastropaolo e Rodrigo Ferreyra) e A ilha deserta, de Roberto Arlt, (Argentina, tradução de Carlito Azevedo). Arlt, um dos mais importantes escritores argentinos da primeira metade do século XX, com raros textos publicados no Brasil, como a coletânea de contos A armadilha mortal, publicada pela L&PM em 1997, e a de crônicas Águas-fortes cariocas, pela Rocco em 2013, era inédito como dramaturgo no Brasil até a publicação do texto A ilha deserta.

Aula dura, de Luís Barrales (Chile, tradução de Karen Basaure); Eusebio Ramírez, penas e alegrias de um transformista, de Mariano Moro (Argentina, tradução de Lucas Feres); Morrerei em Paris, de Juan Rivera Saavedra (Peru, tradução de Carlito Azevedo) e Ninguém pertence a este lugar mais do que você, de Mariana Gándara (México, tradução de Claudia Sampaio), foram os textos publicados em 2014. Temas contemporâneos estão em evidência no volume, que aborda desde contradições e violências da educação formal, em Aula dura; a sensibilidade transexual no bem humorado Eusébio Ramirez, penas e alegrias de um transformista; o teatro da memória e a participação dos espectadores em Ninguém pertence a este lugar mais do que você e o engajamento político e poético da ficção biográfica Morrerei em Paris.

Em sua edição mais recente, de 2015, a coleção traz os textos Mulher de Juan, de Claudia Eid (Bolívia, tradução de Lucas Feres); Passport, de Gustavo Ott (Venezuela, tradução de Carolina Santos); Morte parcial, de Juan Villloro (México, tradução de Claudia Sampaio e Francisco Kochen) e, As histórias que se contam os irmãos siameses, de Luis Mario Moncada e Martín Acosta (México, tradução de Leonardo Munk e Livia Lira). Passaport, segundo texto de Ott publicado pela coleção, já havia sido montado em 2011, pela Cia. Rústico Teatral, de Joinville (SC), com tradução de Mônica Bonetti. O texto aborda justamente o conflito de fronteiras, onde mesmo falando a mesma língua, guardas e civis não se compreendem, exceto quando falam em inglês a palavra passport. Além de Ott, com exceção de Juan Villoro, que publicou o romance Arrecife, pela Cia. das Letras em 2014, os outros autores são inéditos em língua portuguesa.

Os livros da coleção são distribuídos gratuitamente a instituições de ensino ou culturais, mediante contato com o departamento de cultura da Esem. Além disso, vários projetos de leitura encenada de textos dramatúrgicos são incentivados pela escola e por unidades do Sesc espalhadas pelo país, como o projeto Dramaturgia – Leituras em Cena, que em 2015 promoveu a leitura encenada de textos publicados pela coleção em 16 cidades de Santa Catarina.

Iniciativas como a coleção P.E.R.I.F.É.R.I.C.O., que visam aumentar o diálogo entre nações vizinhas através de edições bilíngues e do incentivo a leituras públicas de importantes dramaturgos do continente, não apenas contribuem para ampliar o repertório de textos contemporâneos disponíveis para encenação nos países do continente, mas também estabelecem diálogos capazes de criar um fluxo de cooperação com potência para fortalecer laços artísticos que jamais deveriam ter ficado em segundo plano.

.:. Escrito no contexto do projeto Crítica Militante, iniciativa do site Teatrojornal – Leituras de Cena contemplada no edital ProAC de “Publicação de Conteúdo Cultural”, da Secretaria do Estado de São Paulo.

Serviço:
Para solicitar os livros da coleção P.E.R.I.F.É.R.I.C.O.: tel. 21 3214-7404 (Gerência de Cultura da Escola Sesc de Ensino Médio, a Esem, em Jacarepaguá, Rio de Janeiro).

Gestor de cultura em Santa Catarina, crítico e dramaturgo. Escreve ocasionalmente para os jornais Notícias do Dia e Diário Catarinense. Participa regularmente de curadorias para mostras e festivais nacionais de artes cênicas. Publicou em 2014 o livro Pequenos monólogos para mulheres (Chiado Editora/Portugal), coletânea de textos teatrais curtos. Doutorando em teatro pela Udesc com pesquisa sobre crítica teatral brasileira.

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