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Crítica Militante

Espaço e tempo da arte e da política

21.6.2016  |  por Francis Wilker

Foto de capa: Ocupação Funarte SP

Os últimos seis anos de nosso jovem século XXI apresentam elementos para reflexões profundas sobre as transformações sociais em curso. O fenômeno das ocupações de espaços públicos, muitas vezes articuladas pelas redes sociais, é um símbolo importante desse tempo de desestabilização, de crise de modelos políticos, econômicos, educacionais, midiáticos e sociais. A primeira década deste século, talvez, se assemelhe a uma parede com uma rachadura incontornável e que vai ao chão a qualquer momento. O que virá depois da ruína? Ainda não somos capazes de responder, todavia, somos nós que aqui estamos tecendo este tempo, cada um a seu modo, movidos por algum desejo. Se as redes sociais criadas com o advento da internet redesenharam os modos de convívio, resta torcer para que os pontos de conexão entre tantas alteridades seja o bem comum sustentados nos ideais democráticos e nos direitos humanos.

A poeta Wislawa Szymborska ocupa agora este texto:

Somos filhos da época

e a época é política.

Todas as tuas, nossas, vossas coisas

Diurnas e noturnas

São políticas.

Muitos são os pontos de vista que permitem analisar parte dos acontecimentos icônicos deste século. A tentativa aqui empreendida procurará articular algumas conexões entre movimentos sociais (práticas políticas) e as artes da cena na contemporaneidade (práticas artísticas) levando em consideração dois aspectos: dimensão performativa e especificidade do espaço. Se, por um lado, os movimentos sociais ganharam ao longo dos tempos forte estetização, por outro, nos aproximando da ocupação artística de ruas, praças e edificações da cidade, poderemos notar que a discussão se encaminha para uma zona de neblina em que se contaminam traços estéticos, operações formais, ativismo político e social. Sobretudo, são produções que se lançam no tecido urbano e buscam uma forte relação com o real no endereçamento de questões bastante concretas, seja um protesto, seja um espetáculo ou uma performance.

É como se a tomada de um espaço do Estado devolvesse a ele a sua legítima face e vocação pública, muitas vezes negligenciada no cotidiano em que medidas governamentais são tomadas a partir de pressões de grupos políticos e econômicos ou mesmo de projetos de governo que fazem sucumbir os interesses efetivamente públicos

Para iniciarmos essa reflexão, convoquemos algumas imagens:

Pense num distrito comercial importante de uma cidade muito famosa, com seus prédios, suas operações comerciais, a correria dos investimentos.

Imagine um parque com árvores plantadas, um ambiente favorável ao encontro, pessoas caminham, conversam, tiram fotos.

Uma rua importante da cidade com o intenso tráfego de carros, semáforos que abrem e fecham. Cada automóvel movido por um objetivo, cada pedestre disputando espaço com a máquina de quatro rodas.

Recuperemos de nossa memória a imagem de uma escola pública com suas carteiras enfileiradas, uma mesa para o professor, uma lousa ou quadro branco, as reuniões de coordenação, aplicação de provas, disciplinas distribuídas num horário semanal, um sinal para avisar a troca de aula, um porteiro para conferir sua entrada.

Um reduto comercial, como a famosa Rua 25 de março em São Paulo, em perfeito funcionamento. Pessoas caminham de um lado para o outro, apressadas com suas muitas sacolas. Vendedores anunciam promoções. Os verbos vender e comprar dão a tônica do lugar.

Por fim, uma autarquia pública com a recepção onde você deve se identificar para acessar o local, seus arquivos, computadores e seu rito cotidiano de reuniões, despacho de processos, licitações.

Para estancar esse quadro de imagens do urbano, terminamos lembrando o modo como o espaço público a partir da década de 1960 vem, paulatinamente, se tornando cada vez mais degradado, violento, privatizado e reinado hegemônico dos carros.  A cidade como um grande tabuleiro que opera na lógica das leis mercantis que a tudo e todos enquadra como mercadoria em detrimento da urbe como locus do encontro, da socialização, do jogo de afetos que constitui as relações humanas.

Manifestação do Comitê de Escolas Independentes em Porto AlegreGuilherme Santos

Manifestação do Comitê de Escolas Independentes em Porto Alegre

Ao tecer comparações entre linguagem e espaço, o filósofo e historiador francês Michel de Certeau adotará a noção de que nós “praticamos o espaço”. Ao observar o caminhante, cada escolha de trajeto, cada jogo que estabelecemos com obstáculos encontrados e toda a rede de significações envolvida naquilo que não se deixa ver, imediatamente, na superfície construída da cidade configuram nosso modo de praticar o espaço.

Michel de Certeau ocupa agora este texto:

(…) praticar o espaço é portanto repetir a experiência jubilatória e silenciosa da infância. É, no lugar, ser outro e passar ao outro. (…) A infância que determina as práticas do espaço desenvolve a seguir os seus efeitos, prolifera, inunda os espaços privados e públicos, desfaz as suas superfícies legíveis e cria na cidade planejada uma cidade “metafórica” ou em deslocamento.

Levando em consideração esse ponto de vista, estamos, a todo o momento, praticando o espaço e, a partir de nossas experiências, atribuindo-lhe valor, sentido e uma dimensão simbólica ou talvez mítica. É nessa perspectiva que gostaríamos de lançar um olhar para práticas artísticas no espaço urbano e ocupações de espaços públicos efetivadas por movimentos sociais.

A partir de dezembro de 2010 acompanhamos uma série de eventos sociais que criaram novas dinâmicas na organização da sociedade na luta por direitos e nos seus modos de relação com o espaço. Expressão que procurou denominar a sequência de protestos iniciados na Tunísia e se espalhando por Argélia, Jordânia, Egito e Iêmen, a Primavera Árabe  resultou na queda de vários chefes de Estado mantidos no poder havia décadas. Movimentos que lutavam pela democracia e fortemente motivados pelo desejo de maior liberdade. Um vetor novo nesse quadro foi a articulação por meio das redes sociais, uma potência de comunicação sem hierarquias, bastante ampla e com efeitos de multiplicação exponenciais de uma imagem, uma fala, um vídeo, um discurso que é instantaneamente acessado em qualquer parte do planeta Terra.

Já em setembro de 2011 uma nova onda de protestos chama a atenção nos Estados Unidos. O movimento Ocupe Wall Street levou milhares de pessoas a Manhattan, importante distrito financeiro na cidade de Nova York, motivados pela luta contra as desigualdades econômica e social. Entre as contradições que o movimento atacou estava a proporção de detenção de riquezas no mundo: 1% de pessoas detém boa parte dos recursos financeiros. Desse modo, aqueles que ocuparam Wall Street se colocam como uma imagem dos 99% dessa balança de uma economia tão desigual.

Nesses dois casos apontados de maneira breve, espaços públicos da cidade, especialmente ruas e parques, são ocupados por movimentos sociais de “centro vazio”, ou seja, não possuem uma liderança definida e se articulam de maneira massiva através das múltiplas conexões das redes sociais. Em 2013, a Turquia ganha os olhos do mundo na medida em que um protesto de ambientalistas e jovens contra a derrubada de árvores no Parque Taksim Gezi, em Istambul, é repreendido violentamente pela polícia. A partir dali, os protestos ganham enorme apelo popular e transformam-se numa luta também contra o governo vigente que teria na ocupação do parque uma grande simbologia.

Fachada da ocupação do MinC no RecifeOcupa MinC PE

Fachada da representação do MinC no Recife

Em junho de 2013, o Brasil viveu uma intensa onda de manifestações populares em diversas cidades. Segundo a imprensa, desde 1992, quando houve o impeachment do então presidente Fernando Collor de Mello, o país não via suas ruas tão fortemente tomadas pela população. Aparentemente, o gatilho detonador desses protestos tinha como causa o aumento dos preços das passagens de ônibus urbano. Como as manifestações iniciais foram duramente reprimidas pela polícia, especialmente em São Paulo e Rio de Janeiro, os protestos ganharam enorme apoio popular e se alastraram por todo o país. Da motivação inicial vinculada ao aumento das tarifas, as ruas ganharam múltiplas demandas, em alguns casos até opostas, e se converteram em forte expressão de descontentamento com os governos e políticos, habitualmente envolvidos em escândalos de corrupção.

Como pano de fundo de tantos cartazes empunhados por manifestantes, é inegável a presença de uma questão cara à população: a mobilidade. Mobilidade no sentido de ter um serviço de transporte urbano eficaz, com preços justos e que efetivamente possibilite o ir e vir de qualquer cidadão pela urbe. Mobilidade também na perspectiva do direito à ocupação dos espaços públicos, já que, desde o regime militar, não se viam cenas de repressão tão fortes à ocupação das ruas, como as veiculadas pela imprensa quando se iniciou a onda de protestos. De algum modo, a sociedade estava dizendo que a rua é um direito social, um espaço expressivo da luta política.

No final de 2015, o Estado de São Paulo presenciará um novo movimento, dessa vez, estudantes secundaristas ocupam mais de 200 escolas em oposição ao plano de reorganização da rede pública de ensino do governador Geraldo Alckmin (PSDB), que previa fechamento de escolas e transferências de alunos para localidades sem nenhuma discussão prévia com os interessados nas políticas públicas de educação. Um movimento que teve como ícone o Colégio Fernão Dias Paes, no bairro de Pinheiros. O modo como as ocupações dos secundaristas se efetivou, driblando interesses partidários, distorções da mídia e dispensando a velha noção de liderança,  chamou a atenção de todo o país e ganhou o apoio de artistas e intelectuais, culminando na exoneração do secretário de educação e na interrupção do plano de reorganização.

O filósofo Peter Pál Pelbart ocupa agora este texto:

Independente do desfecho concreto do movimento, foi um momento em que a imaginação política se destravou. A imaginação política não é uma esfera sonhadora e desconectada da realidade, ao contrário, é precisamente a capacidade de se conectar com as forças reais que estão presentes numa situação dada, as forças do entorno, mas também as forças vossas. As ocupações desencadearam um processo imprevisível cujo caráter ao mesmo tempo disruptivo e instituinte deixou a todos estupefatos.

Por fim, em maio de 2016, após tomar posse, o presidente interino Michel Temer decide extinguir, já nos seus primeiros dias de mandato,  o Ministério da Cultura (MinC), anexando-o como uma secretaria do Ministério da Educação, além de dar fim a outros ministérios e representações voltadas para a defesa da igualdade racial, mulheres e direitos humanos. Em resposta, movimentos culturais e sociais dão início a uma inédita onda de ocupações de representações do MinC em todo o Brasil, como sedes do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e da Fundação Nacional das Artes (Funarte). A pressão popular gerada pelas ocupações resultará no recuo do presidente e na recriação do Ministério da Cultura.

Artista se apresenta ao ar livre no entorno do Iphan de FortalezaOcupa MinC CE

Artista se apresenta ao ar livre no entorno do Iphan de Fortaleza

A cantora Ava Rocha ocupa e canta agora neste texto:

Mate você

Mesmo

Coma do seu morto

Desalinhe o corpo

Fique louco

Tome espaço do Estado, da polícia, da NSA

Da mulher maravilha

E meta um grelo na geopolítica

(Auto das bacantes, composição de Negro Leo)

Nos dois últimos casos, o movimento de ocupações reverteu o quadro de ameaça a espaços que simbolizam políticas públicas no campo da educação e da cultura, ou seja, não se trata de causas individuais, de foro privado, são demandas que respondem às necessidades coletivas e asseguradas constitucionalmente. É interessante notar, nos exemplos citados, como a ocupação de um espaço da cidade por um grupo social ganha forte contorno político, ativando discussões nas mais diversas esferas da polis, revertendo medidas autoritárias, provocando a queda de chefes de Estado e de secretários. É como se a tomada de um espaço do Estado devolvesse a ele a sua legítima face e vocação pública, muitas vezes negligenciada no cotidiano em que medidas governamentais são tomadas a partir de pressões de grupos políticos e econômicos ou mesmo de projetos de governo que fazem sucumbir os interesses efetivamente públicos.

Agora, visualizemos esses mesmos espaços (autarquia pública e a escola) diante de uma ocupação em que outros modos de “praticar o espaço” são colocados em ação. Pessoas estabelecendo outros ritos; novas atividades tomam conta do local; outros discursos são ali articulados e outras experiências de gestão das ações e do próprio lugar. Quando a Funarte SP teria ao redor de uma fogueira o hasteamento da bandeira do movimento LGBT e de outras minorias? Quando a roda seria formato hegemônico nas escolas públicas e aulas-encontro ministradas por artistas e intelectuais, como ocorreu na escola Fernão Dias?

Assim como uma manifestação cria novos sentidos para as ruas e espaços vinculados ao Estado, redimensionar a ideia da relação do cidadão com o espaço urbano parece ser também um vetor fundamental em muitos trabalhos artísticos que buscam o tecido urbano.

Na cidade do Rio de Janeiro, entre 2014 e 2015, a performer Eleonora Fabião encheu um copo d’água até o limite e caminhou pelo Saara, tradicional reduto comercial de ambulantes e lojas de toda natureza. De copo cheio ela caminhou pelas Ruas da Alfândega, Buenos Aires e Senhor dos Passos. O seu programa de performance previa, ainda, que a caminhada deveria ser com o braço estendido, sem derramar uma gota e, no caso de derramar, deveria encher novamente até o limite e prosseguir. Essa ação foi intitulada “Brasil: o momento em que o copo está cheio e já não dá mais pra engolir – nosso caso de amor é uma porta entreaberta”. No bojo de sua ação uma pergunta: o que um corpo pode mover? Para ela, trata-se de uma questão performativa.

Eleonora Fabião ocupa agora este texto:

Performances são composições atípicas de velocidades e operações afetivas extra-ordinárias que enfatizam a politicidade corpórea do mundo e das relações.

Nessa perspectiva performativa apontada pela artista, tanto a ação intencional de um performer em determinado espaço como a ação dos estudantes secundaristas e movimentos sociais nos espaços públicos ou vinculados ao governo operam de modo “extra-ordinário” e suas presenças e ações enfatizam a “politicidade” do corpo, alterando a prática daquele espaço, movendo o tecido cristalizado dos ritos cotidianos desses lugares, decompondo suas lógicas pré-estabelecidas e construindo outras relações. Operam efetivando uma espécie de performação desses e nesses espaços.

Essa dimensão performativa se sustenta no entendimento da performance para além do campo artístico, envolvendo as práticas culturais de modo mais amplo, conforme proposto pelo diretor e teórico norte-americano Richard Schechner. Desse modo, a ação do corpo no espaço parece se colocar como questão central.

A pesquisadora francesa Josette Féral ocupa agora este texto:

(…) quando Schechner menciona a importância da “execução de uma ação” na noção de ‘performer’, ele, na realidade, não faz senão insistir neste ponto nevrálgico de toda performance cênica, do ‘fazer’. É evidente que esse fazer está presente em toda forma teatral que se dá em cena. A diferença aqui – no teatro performativo – vem do fato de que esse ‘fazer’ se torna primordial e um dos aspectos fundamentais pressupostos na performance(FÉRAL, 2008, p. 201)

João Pedro Stedle, um dos coordenadores do MST, na Ocupa Funarte MGFunarte MG Ocupada

João Pedro Stédile, do MST, na Ocupa Funarte MG

Insistindo um pouco mais na dimensão performativa que pode estar presente nas ações de ocupação dos movimentos sociais, um dos aspectos apontados por Féral diz respeito ao que a pesquisadora chama de “engajamento total do artista”. Para ela, esse engajamento está relacionado a uma qualidade de presença tão fortemente afirmada que pode ir até uma situação de risco real. Embora um manifestante não atue como um performer, intencionalmente vinculado ao campo artístico, sua atuação, inegavelmente, parece estar fortemente imbuída de grande engajamento, uma vez que sua ação prática está diretamente associada à causas que possuem extremo valor ético e respondem a um projeto de sociedade e de país no qual acreditam. Evidência desse alto engajamento de um manifestante que, assim como o performer, se coloca num jogo arriscado com o real, no Brasil e em outros países, é comum presenciar situações de intenso risco a que os manifestantes estão submetidos, geralmente pela ação truculenta de uma polícia mal dirigida e mal preparada.

Do ponto de vista da relação com o espaço e sua especificidade, podemos identificar nas escolhas de espaços para a realização de montagens cênicas que desejam estabelecer um diálogo com a cidade, endereçamentos bastante precisos entre espaço e temática pesquisada pelos artistas. No campo artístico, é conhecida como site-specific essa vinculação entre projeto artístico e espaço.

Essa noção caracteriza exatamente projetos artísticos fortemente vinculados a um local específico, o que está em jogo na proposição é a especificidade do lugar, a sua gramática e características singulares. A pesquisadora sul-coreana Miwon Kwon localiza essa produção nos Estados Unidos num período que considera o início do minimalismo, entre o final da década de 1960 e início da seguinte. Essa noção vai se transformando ao longo dos anos e se encaminhando rumo à vida pública, à trama urbana, suas potências sociais, históricas, políticas, etc. Um percurso que amplia a construção de sentido da ação para além da dimensão física do espaço, mas, também pelas especificidades que essa espacialidade, praticada pelos atores sociais, esconde e revela em diferentes camadas de discurso.

A título de exemplo dessa relação, em 2012, o Teatro da Vertigem (SP) criou nas ruas do bairro paulistano Bom Retiro, referência no comércio de roupas, o espetáculo Bom Retiro 958m, que discute a questão do consumo. A encenação de Orgía ou de como os corpos podem substituir as ideias (2015), do grupo Kunyn (SP), inspirada no livro Orgia – Os diários de Tulio Carella, Recife 1960, publicado originalmente em 1968, em que descreve suas experiências na capital pernambucana entre os anos de 1960 e 1962. Uma narrativa que revela uma relação afetiva e homoerótica do intelectual argentino com a cidade. A encenação do grupo Kunyn escolhe o Parque Trianon, na região da Avenida Paulista, para propor ao espectador uma relação desestabilizada entre a narrativa de Tulio, aquela dos atores, e a rotina cotidiana do parque, espaço também associado ao universo marginal gay. Nos dois casos, a questão do consumo e a relação homoerótica são tratadas em espaços que carregam uma especificidade capaz de ampliar potencialmente os aspectos que se deseja discutir, num entrecruzamento com o real.

A escolha de determinado espaço pode ampliar as leituras de uma cena e sua consequente construção de sentido. Isso porque nessa operação estética há diferentes camadas de discurso que podem compor, se atritar, se justapor, se complementar. Se escolhermos um parque e não um teatro ou uma praça para determinada cena ou performance, é porque há, nesse espaço específico, elementos que interessam na elaboração desse discurso e no jogo que se deseja estabelecer com os transeuntes ou espectadores. Cada espaço está impregnado de determinados ritos e funcionalidades estabelecidas, conforma ainda uma carga semântica, suas paredes, sua arquitetura. Seus objetos traduzem discursos, são por si mesmos uma espécie de dramaturgia.

Chama a atenção como o espaço público, sobretudo a rua, seja nos protestos ou em intervenções artísticas, amplia as possibilidades de leitura e construção de sentido de uma prática. O sociólogo Roberto DaMatta nos propõe uma interessante leitura da sociedade brasileira motivada por espaços, entre eles a casa e a rua, que contribui para essa discussão quanto ao plano simbólico e político da ocupação desse espaço.

Roberto DaMatta ocupa agora este texto:

(…) na esfera da rua minha visão de Brasil é muito diferente. Aqui eu estou em “plena luta” e a vida é um combate entre estranhos. Estou também sujeito às leis impessoais do mercado e da cidadania que frequentemente dizem que eu “não sou ninguém”. (…). Se no universo da casa sou um supercidadão, pois ali só tenho direitos e nenhum dever, no mundo da rua sou um subcidadão, já que as regras universais da cidadania sempre me definem por minhas determinações negativas: pelos meus deveres e obrigações, pela lógica do “não pode” e do “não deve”…

Se tomarmos o espaço da rua como simbologia da lei, do poder, do governo, de nossa condição de “subcidadão”, conforme sugere DaMatta, a tomada desse espaço pela população ou pelos artistas, na sua imensa diversidade, está demarcada de aspectos políticos. E se mirarmos, a partir desse mesmo ponto de vista, os casos de violência expressa por manifestantes através da depredação de edifícios públicos e instituições bancárias, essas ações assinalam, com contornos ainda mais expressivos, a própria violência com que esses cidadãos se sentem ultrajados nos seus direitos, daí encontrarem na ação violenta uma resposta à violência legitimada e legislada.

A transgressão amorosa em frente ao Iphan de Fortaleza

O contexto atual parece ainda tingir de outros matizes a relação simbólica com esses espaços públicos. Notamos que em alguns casos, a rua, talvez, represente um espaço difuso onde não se fala com exatidão com aquela esfera do poder público que precisa ser contestado. Daí, as ocupações efetivarem uma escolha tão radical dos espaços a serem ocupados, numa lógica que se aproxima da noção artística de site-specific. Exemplo ainda mais categórico foi a ocupação da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, em maio de 2016, por estudantes secundaristas. Eles cobravam a instauração de uma CPI da Merenda que deveria investigar irregularidades e corrupção na verba destinada às escolas públicas. Nesse sentido, a especificidade do lugar parece oferecer maior possibilidade de eficácia na escuta das demandas sociais, como aconteceu no exemplo das escolas e também das representações do Ministério da Cultura, comentadas anteriormente. De algum modo, um pensamento dramatúrgico parece operar na escolha desses espaços, tal como ocorre quando um encenador ou grupo define qual espaço melhor responde às questões e experiência que desejam instaurar com um espetáculo.

Em 2016, as categorias elencadas por DaMatta podem inspirar novos questionamentos. Será que ao ocupar a rua e os diferentes espaços símbolo do Estado  esses jovens não estão invertendo a lógica da rua ser um lugar só de deveres e a casa só de direitos? Não estariam fazendo desses lugares o seu lugar público? No sentido de que ali há direitos e deveres. Não é a divisão tão bem percebida por DaMatta que sofre uma ruptura? Esfinges lançadas pelas novas dinâmicas sociais à espera de reflexões aprofundadas.

Sabemos que a ação de ocupar um espaço não é atributo exclusivo de nosso século, porém, é inegável seus novos contornos e impactos nas primeiras décadas deste século XXI. No Brasil, caberia ainda um estudo mais aprofundado da noção de ocupação a partir do acúmulo de experiências do MST (Movimento dos Trabalhadores sem Terra) que, inclusive, operam uma relação bastante diferenciada com as escolas nos assentamentos. Sabemos que estamos tecendo os fios de nosso tempo e que as categorias de análise, talvez, não sejam as mais apropriadas para fenômenos em movimento. Porém, nessa mirada inicial experimentada neste texto, parece ser possível notar pontos de conexão entre arte e vida que ajudam a pensar nossas práticas artísticas e sociais, cada vez mais entrelaçadas, como uma nuvem de tags na tentativa de desenhar outros mundos possíveis.

Ocupação

Arte

Protesto

Espaço

Movimento Social

Performance

Experiência

Precariedade

Risco

Política

Encontro

 

.:. Em interlocução com o pesquisador e professor Glauber Coradesqui, em Brasília, e a jornalista e crítica Beth Néspoli, em São Paulo.

.:. Escrito no contexto do projeto Crítica Militante, iniciativa do site Teatrojornal – Leituras de Cena contemplada no edital ProAC de “Publicação de Conteúdo Cultural”, da Secretaria do Estado de São Paulo.

Referências:

CARVALHO, Francis Wilker de. Teatro do concreto no concreto de Brasília: cartografias da encenação no espaço urbano. 2014. Dissertação (Mestrado em Teoria e Prática do Teatro) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014. Disponível aqui.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano 1: Artes de fazer. 19ª ed. Tradução de Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 2012.

DAMATTA, Roberto. A casa & a rua. 5ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

FABIÃO, Eleonora. Performance e Teatro: poéticas e políticas da cena contemporânea.

In: ARAÚJO et. al. (ORG). Próximo Ato: Teatro de Grupo. São Paulo: Itaú Cultural, 2011.

________________. Ações: Eleonora Fabião; ensaios Adrian Heathfield…[et al.]; organizadores Eleonora Fabião, André Lepecki – Rio de Janeiro: Tamanduá Arte, 2015.

FÉRAL, Josette. Por uma poética da performatividade: o teatro performativo. In: Revista Sala Preta. São Paulo: PPGAC/USP, v. 9, n. 1, 2009. pp. 197-210.

PELBART, Peter Pál. Carta aberta aos secundaristas. Disponível aqui:

KWON, Miwon. One place after another: notes on site specificity. Revista October 80. Spring, 1997: 85-110. TraduçãoJorge Menna Barreto. Disponível aqui.

Diretor, performer, pesquisador e professor de teatro. Mestre em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo (ECA-USP). Licenciado em Artes Cênicas pela UnB. Fundador e diretor do grupo brasiliense Teatro do Concreto. Atuou como docente na Faculdade de Artes Dulcina de Moraes (2004 a 2011). Tem artigo publicado na revista Sala Preta (ECA-USP); Subtexto (Galpão Cine Horto-MG); Textos do Brasil (Ministério das Relações Exteriores-DF). Consultor da série Linguagem teatral e práticas pedagógicas, da TV Escola. Além disso, colabora com alguns festivais como debatedor.

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