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Crítica Militante

A presença nas fotos de Lenise Pinheiro

19.7.2016  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Lenise Pinheiro

O segundo volume de Fotografia de palco absorve o campo molecular da cena. A escala das fisionomias e das materialidades recua um bocado no caráter espetacular, hegemônico no volume inicial, de 2008, e dota a nova antologia de imagens de Lenise Pinheiro de generosas doses de sinestesia.

A impregnação absoluta é pelos corpos, nunca vai deixar de ser. Identidades femininas e masculinas são pilares nessa arte. Folhear as páginas suscita, em muitos casos, sensações de contato com a pele, a boca, o cabelo, o tecido, a madeira, o colar.

Porosidades como vistas no rosto semicabisbaixo do ator César Ferrario em O capitão e a sereia (2009), do Grupo Clowns de Shakespeare, de Natal. Notam-se texturas no suor escorrendo e misturado à maquiagem. Na gola de palhaço e na boina, cenicamente puídas. Outro exemplo, e eles são muitos entre as 602 imagens, vem do registro de Antonio Edson e os pares do Grupo Galpão, de Belo Horizonte, durante o ritual de transformação diante do espelho em Till, a saga de um herói torto (2010).

Talvez a prática artesanal seja a distinção mais flagrante na saga documental de Lenise Pinheiro. O princípio que torna a efemeridade perene. A consciência da manufatura em tempos digitais

A instância do bastidor é expandida ao ínfimo, valorizando elementos cênicos nem sempre perceptíveis ao espectador da arte viva. Na narrativa do livro, o protagonismo é compartilhado com as mãos de quem concebe/encarna/opera a luz, o som, a cenografia e os figurinos – gesto dialógico com o trabalho do ator, do performer. Ou de quem simplesmente fotografa. Fixa-se a compreensão de que a matéria transcende a presunção de concretude e alça outros signos no plano do texto e da voz, por exemplo. Da mesma forma que Pinheiro produz presença por meio da fotografia.

Também responsável pelo projeto gráfico, a autora exerce uma espécie de distanciamento crítico na hora de compor as páginas e dar autonomia ao discurso visual no suporte da publicação que nos endereça. Inventariante do que capturou em 32 anos de ofício, compõe ou contrapõe luzes verdes de fundo, vestidos estampados, pincel e lápis de maquiar, charuto e cigarro, carros, máscaras, sinfonias de mãos, dignidade nos olhos dos atores negros Luís Miranda e Guilherme Sant’Anna, o sangue artificial espargindo na face da atriz Juliana Galdino e na testa do ator Flavio Tolezani ou as submersões em tanques d’água dos atores João Paulo Lorenzo e Leandro Menezes.

O ator Antonio Edson, do Galpão, em 2010Lenise Pinheiro

O ator Antonio Edson, do Grupo Galpão, em 2010

Um dos traços de Lenise Pinheiro é a desenvoltura, para não dizer intimidade, que estabelece ao incitar os interlocutores a estados alterados diante da câmara. Como quando faz o diretor Eduardo Tolentino de Araújo e o ator Zecarlos Machado se atracarem com as mãos nas cabeças um do outro, no camarim do Grupo Tapa. Ou convence o diretor mineiro Eid Ribeiro a deitar-se à mesa do cenário e deixar-se “servir” aos atores do Grupo Armatrux. Jogo de sedução mediado pela máquina e a contrastar a característica pessoal introvertida da fotógrafa em seus primeiros contatos sociais.

Curioso: mesmo o ator fora de cena, investido da condição de espectador, a visão de 180º de Pinheiro o alcança. Fotografa um Roney Facchini entretido na plateia de A megera domada, em 2008.

A militância profissional, de fato, tornou-se a razão de viver. Um trabalho em mão dupla. Paradigmático o título da peça-gênese em Laços (1993), direção de Odavlas Petti (1929-1997), com formandos da Escola de Arte Dramática (EAD-USP).

Significativo ainda o relato do desenhista de luz Guilherme Bonfanti, do Teatro da Vertigem, ao lembrar o quanto vê-la usando o rebatedor na sessão de fotos de Rancor (1993), direção de Jayme Compri (1963-1996), o influenciou na construção de traquitanas para iluminar a cena. Pertence a essa obra uma das mais vigorosas sequências em preto-e-branco na tradução da aridez do texto de Otavio Frias Filho para a angústia da influência no ato de criar.

A Cia. Dos à Deux em Irmãos de sangue (2014)Lenise Pinheiro

A Cia. Dos à Deux em Irmãos de sangue (2014)

Talvez a prática artesanal seja a distinção mais flagrante na saga documental de Lenise Pinheiro. O princípio que torna a efemeridade perene. A consciência da manufatura em tempos digitais. O fazer manual é basilar e milenar nas artes cênicas. Isso é bem representado na capa que estampa o estilista e ator Fause Haten em A feia Lulu (2014), performance na qual o vestido de tons metalizados torna-se um dispositivo autônomo. O figurino, de fato, é usado no manequim que Haten carrega sobreposto ao seu corpo. O rosto do ator fica à altura do tórax vazado dessa figura enigmática que parece saída de um filme de ficção científica ao combinar precariedade e sofisticação – estranhamento materializado e redimensionado pela chapa digital da fotógrafa.

.:. Escrito no contexto do projeto Crítica Militante, iniciativa do site Teatrojornal – Leituras de Cena contemplada no edital ProAC de “Publicação de Conteúdo Cultural”, da Secretaria do Estado de São Paulo.

Capa-Fotografia-de-palco-2 capa

Serviço:
Fotografia de palco II (476 páginas, R$ 130; e-book, R$ 49)
Autora: Lenise Pinheiro
Editora: Edições Sesc São Paulo (2016)

Lançamento:
Fotografia de palco II:
Quando: 19 de julho, terça-feira, às 20h
Onde: Sesc Pompeia – Comedoria (Rua Clélia, 93, Água Branca, tel. 11 3871-7700)

Complemento: Livro dedicado ao jornalista Nelson de Sá, inspirado no ator Pascoal da Conceição e na crítica de teatro Christiane Riera (1968-2012). Com textos de Beatriz Sayad, Bob Wolfenson, Denise Fraga, Francisco Carlos, Guilherme Bonfanti, Leopoldo Pacheco, Luiz Fernando Ramos, Marcelo Coelho, Marisa Orth e Valmir Santos. Entre os artistas fotografados, estão Andréa Beltrão, Antônio Abujamra, Antônio Fagundes, Bárbara Paz, Christiane Torloni, Claudia Raia, Eva Wilma, Hector Babenco, José Wilker, Maria Della Costa, Maria Fernanda Cândido, Marieta Severo, Matheus Nachtergaele, Raul Cortez, Antunes Filho e José Celso Martinez Corrêa.

Ana Andreatta e Lenise Pinheiro em ensaio da fotógrafa em 2010

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Reprodução de artigo que faz parte do livro Fotografia de palco II (p. 17):

Antecâmara

No breve glossário-prólogo aos ensaios de Filosofia da caixa preta, Vilém Flusser define aparelho como um brinquedo capaz de gerar pensamento. Brincar pede disposição do sujeito para assumir o jogo e descobrir sua língua. A arte da fotografia operada por Lenise Pinheiro espelha essa fusão epidérmica entre o ser e a máquina. Ao gravitar o gesto do ator e a composição do corpo no espaço, equipamento em punho, ela se deixa levar pelo balé instintivo do dorso pendendo ao sabor da cena.

O convívio profissional tornou-me espectador involuntário e privilegiado de seu trabalho nos bastidores das reportagens para a Folha de S.Paulo entre as décadas de 1990 e 2000. Em meio aos ensaios dos espetáculos revezávamos as sessões de entrevista e de fotos para as estreias dali a dias ou horas.

Seu acervo de fotogramas encerra uma anatomia do teatro brasileiro. Presença e memória atravessadas por linguagens, gêneros, modos de produzir e de criar que sofreram mutações assim como o suporte transitou entre o filme preto e branco e o colorido; do dispositivo analógico ao digital. Independente dos procedimentos mecânicos, ópticos ou químicos, importa a consciência da autora em explorar as possibilidades infinitas da máquina fotográfica.

Kathia Bissoli em Bom Retiro 958 metros, do Vertigem, em 2012Lenise Pinheiro

Kathia Bissoli em Bom Retiro 958 metros, do Vertigem, em 2012

A atuação diuturna combina faces homo faber e homo ludens. Pulsa a natureza do jornalismo, universo frenético em que cohabita e no qual sente os reflexos da migração do papel impresso para a internet.

Na virada de milênio, a fase das fotomontagens correspondia à vitalidade coral das ocupações artísticas do Teatro Oficina com a arquitetura deambulante de Lina Bo Bardi. O real, o imaginário e a fantasia eram enredados sob a influência explícita da antropofagia de José Celso Martinez Corrêa junto à Associação Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona, coletivo objeto de cobertura militante desdobrada no crescimento do teatro de grupo no país.

A linha de tempo lenisiana é generosa no registro de formas e temas inclinados à pesquisa, como nos percursos dos encenadores Antunes Filho e Gerald Thomas, dos quais também não sai do encalço. Em contrapartida, não deixa de abordar as grandes produções do circuito, sejam dramas, comédias ou musicais. Tenta preservar o faro artístico diante das estéticas do precário ou do luxo. Vem desse apuro a abertura para desenhar a luz em algumas montagens, iniciativa transversal.

Outra característica é a cumplicidade com as gerações que a precederam ou simplesmente ainda virão. Uma atitude coerente de quem iniciou a atividade justamente no ambiente da Escola de Arte Dramática, a EAD, na Universidade de São Paulo. Costuma despender igual energia tanto à peça de formação de curso, como à concorrida temporada do Théâtre du Soleil na cidade.

Leopoldo Pacheco e Edvaldo Rodrigues em Antes da queda, em 1990Lenise Pinheiro

Leopoldo Pacheco e Edvaldo Rodrigues em Antes da queda, em 1990

Certa vez, ouvi de Paulo Autran a descrição de como Fredi Kleemann documentava o palco e as coxias na esteira do modernismo da companhia e casa Teatro Brasileiro de Comédia, o TBC. Esmerava-se em extrair da atriz ou do ator a pose definitiva, o átimo revelador do personagem e, não raro, de alguma fresta da personalidade por trás da máscara.

Lenise Pinheiro elabora uma camada de representação anterior àquela que o olho captura à primeira vista. É lá na antecâmara da imagem que mora a razão de existir e obter alteridades instantâneas sob o refletor. Narrativas efêmeras, perspectivas inversas. A vida lhe ensinou a negociar distâncias, sincronias, closes. Quando caiu em si já não podia mais separar a cena que vê da performace de fotografar.

O empenho por tantos anos não anestesia a intuição presumida no aprendizado e no prazer de ver por dentro, a si e aos outros. Do latim intueri, isso diz respeito a perceber os sentidos ocultos que às vezes pousam sorrateiramente em primeiro plano, debaixo do nariz. “Descobri que podia possuir algo que não podia ver”, filosofa Evgen Bavcar.

A obra de Lenise Pinheiro redimensiona o ofício no país em que a fotografia de artes cênicas aos poucos conquista o seu lugar ao sol, contornando no breu obstáculos de toda ordem.

Gilberto Gawronski em Ato de comunhão, em 2012Lenise Pinheiro

Gilberto Gawronski em Ato de comunhão, em 2012

Elenco de Engravidei, pari cavalos e aprendi a voar sem asas, do coletivo Os Crespos, em 2013Lenise Pinheiro

Engravidei, pari cavalos e aprendi a voar sem asas, com coletivo Os Crespos, em 2013

Stella Miranda em Miranda por Miranda, em 2014Lenise Pinheiro

Stella Miranda em Miranda por Miranda, em 2014

Antonio Martinelli e Íris Cavalcanti no Casarão Sesc Ipiranga, em 2014Lenise Pinheiro

Antonio Martinelli e Íris Cavalcanti no Casarão Sesc Ipiranga, em 2014

Lourenço Mutarelli e Regina França, em 2008Lenise Pinheiro

Lourenço Mutarelli e Regina França, em 2008

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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