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Crítica Militante

Enxerto amoroso

5.7.2016  |  por Clarissa Falbo

Foto de capa: Divulgação/Angu

São 13 anos do Coletivo Angu de Teatro, cinco espetáculos no repertório e o propósito de apresentar autores pernambucanos na sedimentação de linguagem própria; dramaturgia e modus actuandi. Nossos ossos (2013), romance de Marcelino Freire por ele transposto para a partitura cênica, frente às solicitações do grupo, conforme o Marcelino fictício (André Brasileiro) esclarece no “prólogo”, trata de amor e da dureza do amor, das impossibilidades que tecem as vidas todas e dessa arte maldita e imprescindível que é o teatro. A primeira temporada do trabalho – dez apresentações custeadas com recursos do Prêmio Myriam Muniz – encerrou-se em 26 de junho no Recife.

Talhada à peleja constante para produzir teatro autoral e brasileiro, a falange de urubus – ora combalidos, ora montados e sempre marginais – grasna, desta feita, para conduzir o escritor Heleno de Gusmão em uma obtusa jornada a Hades. Heleno, tal qual Marcelino e tantos outros, é um migrante. Deixou Pernambuco. Partiu para São Paulo meio a contragosto; no rastro de um amado. O amor esvaiu-se na fumaça da urbe, porém o heroi não tardou a arder de novo em encantos por um michê – estrangeiro como ele – que igualmente aprendeu a sobreviver vendendo talentos. Os ossos são a origem e o cabo do enredo desvelado pelas bocas malditas dessa gente que se oferece por inteiro a paga qualquer, por intermédio dessa arte que tem a tessitura do próprio esqueleto.

A opção pela narrativa longa do romance adaptado, em vez dos contos/esquetes de até então, é a alusão possível à vontade de construir um mirar material-dialético sobre o próprio itinerário artístico

O espetáculo Ossos manifesta, sem arrodear, o mosaico de referências/influências do coletivo. Em particular, a solidez do encenador Marcondes Lima, arte-educador e grande artista de marionetes (cofundador da Cia. Mão Molenga há 30 anos), dessa vez também em cena. Ele fez com que o encontro de talentos tão diversos crescesse, oxigenasse o teatro de grupo nos primeiros anos e gerasse frutos como o Magiluth – fruto indireto e ao mesmo tempo subversivo.

Dos traços de Ossos, são perceptíveis a atuação de procedimento não-realista, as transgressões temática e imagética, a reincidência do teatro de revista, do naif teatro de mamulengos, além do DNA pernambucano. Esse idioma em permanente processo é tributário não só do Vivencial Diversiones, trupe iconoclasta da década de 1970, como da tradição kitsch do Teatro de Amadores de Pernambuco, o TAP, que 30 anos antes lutava para, em nível local, consolidar a encenação moderna no país. Para completar o tabuleiro das circunstâncias, o rebentar do Grupo Magiluth (Aquilo que o meu olhar guardou pra você e O ano em que sonhamos perigosamente), no Recife da primeira à segunda década do século, o que situa o Angu em âmbito geracional.

A opção pela narrativa longa do romance adaptado, em vez dos contos/esquetes de até então, é a alusão possível à vontade de construir um mirar material-dialético sobre o próprio itinerário artístico. Se as cenas curtas são como instantâneos, a história aponta um percurso evolutivo das personagens, da trama, do procedimento estético mesmo. É um profundo oferecer-se ao olhar do outro, deixar entrever sinais daquilo que amadurece.

O espectro ampliado da interpretação, que afina o alegórico – travesti Estrela (Marcondes Lima) e caronte Lourenço (Arilson Lopes) – à organicidade do sexo e à chave naturalista de Heleno (André Brasileiro) denota a bravura de sempre ser fora da curva e de dar passos além do conforto. A beleza continua vindo do singelo desprezível desde o Lorca citado no texto: mais à esquerda, muito ambíguo e perpetuamente vilipendiado. Impensável não fazer lembrança da imagem da drag queen costurada à voz do solilóquio em espanhol.

Ossos fez primeira temporada no final de junho no RecifeDivulgação/Angu

Ossos fez primeira temporada no final de junho no Recife

A simbiose entre Marcelino Freire e atuadores é mais antiga, está na gênese e é o fio condutor da caminhada. Angu de sangue, montagem de 2003, baseada no livro homônimo, foi marco definidor para o recém-surgido coletivo, que viria a portar no nome a origem. Rasif: mar que arrebenta, de 2008, também veio dos pergaminhos de Marcelino Freire. As duas obras se debruçam sobre os abismos sociais, as violências e intolerâncias, o universo marginal, o Recife e o mundo. Os contos-crônicas transmutaram-se em monólogos e esquetes; viraram canções. Os temas urgentes e as personagens insólitas aninharam-se aos anseios do grupo.

No entremeio das investidas marcelinianas, houve em 2007 a memorável Ópera, a partir dos contos, à época inéditos, de Newton Moreno, outro conterrâneo radicado em São Paulo. A dramaturgia acaba de ser lançada pela Editora Coqueiro. O trato estético dos criadores voltou-se ao cosmo gay. A permeabilidade entre os gêneros e entre a orientação de afetos, o bom humor, o luxo e o submundo homossexual vieram em um blend de formatos (fotonovela, televisão, números musicais) e revelaram ambiguidades. Os intérpretes saíam de armários gigantescos e toda a cidade de certa forma também saiu. Em 2011, foi a pena de uma mulher que conduziu o Angu pelas agruras fêmeas. Essa febre que não passa, adaptação dos contos reunidos sob o mesmo título e assinados pela jornalista Luce Pereira.

Sem dúvida, motivações econômicas foram consideradas nas obras anteriores. Ensaiar monólogos e ações breves não demanda a presença de todo o elenco sempre, o que vem a calhar quando o time é composto por gestores públicos, professores universitários e criadores comprometidos também com outros projetos.

Da experiência com a nova peça, saímos com a convicção de que a pesquisa e o rumo do Angu têm ossatura evidente, ainda mais em tempos de oscilações políticas, com a velha mídia reservando espaços inacreditavelmente ínfimos para a produção teatral e as aspas taxativas da administração pública de que as artes cênicas não são prioridade. Como se já não fosse óbvio ululante pelo sucateamento das casas de espetáculo, as restrições nos festivais patrocinados e a míngua de recursos para realização e formação de plateias.

.:. Escrito no contexto do projeto Crítica Militante, iniciativa do site Teatrojornal – Leituras de Cena contemplada no edital ProAC de “Publicação de Conteúdo Cultural”, da Secretaria do Estado de São Paulo.

O diretor Marcondes Lima na contracenaDivulgação/Angu

O diretor Marcondes Lima na contracena

Ficha técnica:
Texto: Marcelino Freire
Direção: Marcondes Lima
Com: André Brasileiro, Arilson Lopes, Daniel Barros, Ivo Barreto, Marcondes Lima e Robério Lucado
Direção de arte, cenários e figurinos: Marcondes Lima
Assistência de direção: Ceronha Pontes
Trilha sonora original (composição, arranjos e produção): Juliano Holanda
Criação de plano de luz: Jathyles Miranda
Preparação corporal: Arilson Lopes
Preparação de elenco: Ceronha Pontes, Arilson Lopes
Coreografia: Lilli Rocha e Paulo Henrique Ferreira
Coordenação de produção: Tadeu Gondim
Produção executiva: André Brasileiro, Fausto Paiva, Arquimedes Amaro, Gheuza Sena e Nínive Caldas
Designer gráfico: Dani Borel
Fotos de divulgação: Joanna Sultanum
Visagismo: Jades Sales
Assessoria de imprensa: Rabixco Assessoria
Técnico de som muzak: André Oliveira
Confecção de figurinos: Maria Lima
Confecção de cenário e elementos de cena: Flávio Santos, Jorge Batista de Oliveira.
Operador de som e luz: Fausto Paiva e Tadeu Gondim
Camareira: Irani Galdino

Natural de Recife. Graduou-se em jornalismo pela Universidade Católica de Pernambuco e direito pela UFPE. Trabalhou no jornal Folha de S.Paulo (2010-2012), onde atuou como repórter de teatro e dança da revista sãopaulo. Foi setorista de teatro da revista Continente. Escreveu reportagens e críticas para o jornal Ponte Giratória, publicação editada durante o Festival Palco Giratório, realizado pelo Sesc Pernambuco. Tem a sorte de ser míope. Por isso, quando criança, era acomodada nos degraus do palco para ver os espetáculos. Assim, sempre chegava bem cedo, podia prestar atenção no antes e em tudo e descobriu-se, ou tornou-se, aficionada. Segue míope, não pode mais ocupar os degraus, mas senta nas primeiras filas. Até hoje, não sabe descrever a beleza do cheiro dos holofotes.

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