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Crítica Militante

Nós, a floresta

12.8.2016  |  por Clarissa Falbo

Foto de capa: Aline Macedo

Na nova encenação da Cia. Vértice, A floresta que anda, dirigida por Christiane Jatahy, de fato TUDO se move. Todos são mesmo obrigados a se mexer. Público, personagens presentes ou simbolizados, cenários. Até a atriz corporificada exala e ilustra movimento. Em Julia (2011), a primeira peça da trilogia encerrada agora, Júlia Bernat era uma menina. O tempo altera o contorno dos olhos dela, as formas do ventre, do dorso, dos seios. Sim, ela está sendo observada. É verdade que tudo segue em moto contínuo. Há sempre uma força delicada, uma ciência, um quê místico ou maligno por trás do movimento das coisas.

A diretora carioca tem a capacidade de posicionar cada novo trabalho fora um pouco do lugar que poderia ser esperado; por ela, pelos colaboradores artísticos, pelos espectadores. Esses lugares, ao passo que surpreendem pelo ineditismo, remetem completamente ao conjunto da obra, sobretudo à produção imediatamente precedente. Não é à toa que, de acordo com a própria Jatahy, em colóquio da Bienal de Veneza 2015, a compulsividade a obriga a pensar por trilogias. Eis um sintoma reelaborado.

A atualização de Macbeth se materializa nas tragédias do mundo e do Brasil hoje

Esses inesperados lugares são também resultado do cotejo constante entre a vida e a ficção; os atores e as personagens; o teatro e o cinema, na busca desenfreada pelo inalcançável e cobiçado real. O jogo é a um só tempo simples e intricado: atritar realidade e quimera para produzir faíscas de vida genuína à vista de todos. Assim, um método vem sendo desenvolvido desde Conjugado (2004) e sentidos diversos vêm sendo atribuídos às fronteiras.

Em, A floresta que anda, por exemplo, personagens reais situados em pontos distintos do globo – degredados políticos, desterrados ou não – falam de onde estão sobre as situações que viveram e vivem. Essas pessoas, embora presentificadas com a intensa carga do real, são sem dúvida ficcionalizadas, posto que produzidas, enquadradas, instadas a falar sobre algo e editadas. Até o corriqueiro alimentar-se, repetido por cada um delas, é um simulacro cheio de veracidade.

O tom político é aprofundado na cronologia das obras. Em síntese: as contradições sociais em Julia; a utopia em E se elas fossem para Moscou? (2014); e os desarranjos humanos ante o poder na montagem ora comentada. A relação estética com os textos clássicos de Strindberg, Tchekhov e Shakespeare segue uma espiral de afastamento/aproximação. Na sequência, as adaptações são cada vez mais despojadas das palavras dos originais e entranhadas da essência deles. A atualização de Macbeth se materializa nas tragédias do mundo e do Brasil hoje.

A floresta que anda: Atrito entre realidade e quimera Aline Macedo

A floresta que anda: atrito entre realidade e quimera

Jatahy, ao passo que tenta ser um vetor invisível e atuante na direção do trabalho, guia olhares para fazer-nos perceber que nossos atos, pensamentos e escolhas, por mais ínfimas, podem sim estar sendo influenciadas por impulsos estranhos, quiçá indesejados. A despeito dessas forças ocultas, é preciso manter-se atento para tomar às rédeas do próprio fazer e, sobretudo, do querer.

Em um rol jamais exaustivo dos trabalhadores envolvidos em A floresta que anda, o projeto de som de Estevão Case; com áudios simultâneos, músicas, ruídos incidentais e microfones estimula uma expansão do ouvir. Marcelo Lipiani dá continuidade à pesquisa tecnológica de cenários integrados ao modo multiforma dos espetáculos. Derivados dessa cenografia da gambiarra, inventiva e de baixo custo, foram recentemente utilizados na cerimônia de abertura das Olimpíadas Rio 2016.

Patrulhamentos à parte, é impossível não mencionar o hodierno e supostamente inofensivo joguinho Pokémon Go, que faz crianças e adultos vagarem pelas cidades em direções aleatórias – definidas pelo algoritmo do programa, em teoria- à caça de bichinhos virtuais. Os criadores da Cia. Vértice, ancorados no maldito e sanguinário protagonista de Macbeth, atentam para a imprescindível necessidade de irmos por um caminho nosso, consciente e autodeliberado. E para a urgência de irmos.

.:. Escrito no contexto do projeto Crítica Militante, iniciativa do site Teatrojornal – Leituras de Cena contemplada no edital ProAC de “Publicação de Conteúdo Cultural”, da Secretaria do Estado de São Paulo.

Ficha técnica:

Direção: Christiane Jatahy
Com: Julia Bernat
Direção de fotografia, iluminação e câmera ao vivo: Paulo Camacho
Direção de arte e cenário: Marcelo Lipiani
Projeto de som e sonoplastia: Estevão Case
Figurino: Fause Haten
Interlocução artística: Isabel Teixeira e Stella Rabello
Consultoria de vídeo: Julio Parente
Assistente de direção e colaboração artística: Fernanda Bond
Assistente de iluminação: Leandro Barreto
Assistente de palco: Thiago Katona
Operação de vídeo e música ao vivo: Felipe Norkus
Mixagem som ao vivo: Francisco Slade
Fotos: Aline Macedo e Marcelo Lipiani
Projeto gráfico: Radiográfico
Assessoria de imprensa: Factoria Comunicação
Gestão e acompanhamento: Tatiana Garcias
Assistente de produção RJ: Nathalia Atayde
Assistente de produção SP: Marcelo Leão
Produção executiva SP: Anayan Moretto
Direção de produção: Henrique Mariano
Co-produção: Le CENTQUATRE Paris/França, Odéon Theatre de l’Europe Paris/França, Kunstlerhaus Mousonturm Frankfurt a.M./Alemanha, TEMPO_FESTIVAL Rio/Brasil, CENA CONTEMPORANEA Brasilia/Brasil e SESC
Patrocínio: Petrobras

Natural de Recife. Graduou-se em jornalismo pela Universidade Católica de Pernambuco e direito pela UFPE. Trabalhou no jornal Folha de S.Paulo (2010-2012), onde atuou como repórter de teatro e dança da revista sãopaulo. Foi setorista de teatro da revista Continente. Escreveu reportagens e críticas para o jornal Ponte Giratória, publicação editada durante o Festival Palco Giratório, realizado pelo Sesc Pernambuco. Tem a sorte de ser míope. Por isso, quando criança, era acomodada nos degraus do palco para ver os espetáculos. Assim, sempre chegava bem cedo, podia prestar atenção no antes e em tudo e descobriu-se, ou tornou-se, aficionada. Segue míope, não pode mais ocupar os degraus, mas senta nas primeiras filas. Até hoje, não sabe descrever a beleza do cheiro dos holofotes.

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