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Crítica Militante

A insurreição pelo deboche

22.9.2016  |  por Clarissa Falbo

Foto de capa: Ana Araújo

Transgredir é lembrar o que acontecia em um galpão de um bairro periférico entre Recife e Olinda em fins dos anos 1970. Um convite à insubordinação é rememorar que nesse local improvável um bando de travestis desafiava com escracho a ditadura e a moral da bem-comportada família brasileira. Puro luxo, o espetáculo mais vibrante da cidade, texto de Luís Augusto Reis e direção de Antonio Cadengue, revisita justamente o teatro do grupo Vivencial (1974-1983) e incita o exame de avanços e retrocessos políticos e estéticos ao longo das décadas. A montagem fechou a primeira temporada no início de setembro no teatro Hermilo Borba Filho, no Recife.

O esforço de resgatar o ambiente performático do grupo e das trepidações por ele provocadas vem na dramaturgia por vezes descritiva de como tudo se materializava no café-teatro improvisado, o Vivencial Diversiones. O decalque atual dos esquetes forjados pelas “vivecas”, como ficaram conhecidas as travestis do coletivo, é revelador da fundação de uma escola de procedimentos cênicos. A peleja para reavivar o desbunde e a insurreição característicos daqueles tempos é notável e necessária frente aos abalos da democracia que nem despontara há quatro décadas.

O espetáculo ‘Puro luxo’ possibilita a sobreposição evolutiva da partitura iniciada pelo grupo Vivencial e continuada durante quase toda a década de 1990 pela Trupe do Barulho

A montagem encerra o projeto Trangressão em 3 Atos. A proposta é a salvaguarda do fazer artístico de grupos pernambucanos emblemáticos pela rebeldia, recriando trabalhos destes a partir do diálogo com o contemporâneo. A iniciativa, coordenada pela jornalista e atriz Stella Maris Saldanha, começou em 2010 com a encenação de Os fuzis da senhora Carrar, texto de Brecht levado pelo grupo Teatro Hermilo Borba Filho em 1978. A segunda “transgressão” foi O auto do salão do automóvel, peça de Osman Lins que estreou em 1970 pelo Teatro Popular do Nordeste (TPN) e foi à revista em 2012.

Puro luxo, diferente das inserções anteriores, foi escrita nos dias atuais. É um recorte de citações e de metanarrativas sobre o que se passava no tablado situado à comunidade de Chão de Estrelas (Recife/Olinda). Vê-se o camarim compartilhado pela arregimentação de atores e travestis de diferentes extratos socioculturais. Fala-se das mesas abarrotadas da plateia, onde também representantes diversos da malha social se divertiam com a sátira a eles próprios. São reconstruídos quadros inspirados nos originais Repúblicas independentes, darling (1978) e Bonecas falando para o mundo (1979). Lampeja a linguagem dos produtos culturais do século 20 e a influência da tradição popular.

Camarin cenografado em 'Puro luxo', direção de Antonio CadengueAna Araújo

Camarin cenografado em Puro luxo, direção de Antonio Cadengue

Se a importância da rememoração é diretamente proporcional à escassez de registros, evidente que algo não está sujeito a ser refabricado. O deboche, essência do Vivencial, era espontâneo, até mesmo imposto pelo contexto ditatorial; pela míngua de recursos e de estrutura; e pela gênese peculiar do grupo oriundo das atividades eclesiásticas comunitárias. O glamour da gambiarra e a desobediência contumaz se dão a despeito de ensaios. A ideia de contato direto com o público, instigação ao embate que tinha como efeito um bocado da graça de outrora, parece também avessa a marcações.

O espetáculo possibilita a sobreposição evolutiva da partitura iniciada pelo Vivencial e continuada durante quase toda a década de 1990 pela Trupe do Barulho (Cinderela, a história que sua mãe não contou). O conto de fadas traduzido em idioma travesti teve interlocução profunda com o público. O modus do teatro escrachado continua a fagulhar na produção contemporânea na forma de herança estética bem-vinda e assumida ou na continuação direta, por vezes menosprezada, das montagens da Trupe. O mosaico de rememorações proporcionado por Puro luxo demonstra o calibre do legado vindo de Chão de Estrelas.

O reencontro proporcionado deixa claro que a caminhada é cíclica. O clima do antigo galpão não está apenas no interior do teatro de hoje, mas espreita o país. O que bradam os criadores de agora? A defesa e a autoproclamação das minorias, os valores da igualdade e o clamor pela democracia. Eles se insurgem contra o dramaturgo como se este fosse uma força suprema, reificada. Recusam-se a representar determinada passagem. Alegam que a ética atual a tornou ofensiva. O engajamento é edificado ao longo do projeto Transgressão em 3 Atos com a escolha de textos embasados na crítica ao capitalismo e na afirmação de utopias. A natureza política do Vivencial, entretanto, é singular e mais se afina com a impossibilidade de polarizações do presente. A cidadania do desbunde é ao acaso, tem a potência caótica de improviso.

.:. Escrito no contexto do projeto Crítica Militante, iniciativa do site Teatrojornal – Leituras de Cena contemplada no edital ProAC de “Publicação de Conteúdo Cultural”, da Secretaria do Estado de São Paulo.

O ator Gil Paz na peça de Reis que evoca o VivencialAna Araújo

O ator Gil Paz na peça de Reis que evoca o Vivencial

Ficha técnica:

Puro luxo, o espetáculo mais vibrante da cidade
Autoria: Luís Augusto Reis
Direção: Antonio Cadengue
Com: Eduardo Filho, Gil Paz, Marinho Falcão, Paulo Castelo Branco, Samuel Lira e Stella Maris Saldanha
Consultoria: João Silvério Trevisan
Dramaturgismo e assistência de direção: Igor de Almeida Silva
Figurinos, adereços e maquiagem: Manuel Carlos de Araújo
Consultoria de figurinos: Anibal Santiago
Cenografia: Otto Neuenschwander
Trilha sonora original: Eli-Eri Moura
Música ao vivo (acordeão): Samuel Lira
Voz Off 1: Valdir Oliveira
Voz Off 2: Cássio Uchôa
Voz Off 3: José Mário Austregésilo
Técnico de som (gravação e edição): Francisco Rocha
Iluminação: Luciana Raposo
Coreografias, direção de movimentos e preparação corporal: Paulo Henrique Ferreira
Preparação vocal: Leila Freitas
Programação visual: Claudio Lira
Fotos para o programa: Yêda Bezerra de Mello
Fotos para divulgação: Ana Araújo
Filmagem e fotografias: Antônio Rodrigo Moreira
Cenotécnica: Israel Marinho e Ernandes Ferreira
Confecção dos figurinos: Helena Beltrão
Confecção de adereços: Jerônimo Barbosa, Charly Jadson e Tarcísio Andrade
Operação de som: Igor de Almeida Silva
Operação de luz: Luciana Raposo e Sueides Leal
Contrarregra e camareira: Madelaine Eltz

Natural de Recife. Graduou-se em jornalismo pela Universidade Católica de Pernambuco e direito pela UFPE. Trabalhou no jornal Folha de S.Paulo (2010-2012), onde atuou como repórter de teatro e dança da revista sãopaulo. Foi setorista de teatro da revista Continente. Escreveu reportagens e críticas para o jornal Ponte Giratória, publicação editada durante o Festival Palco Giratório, realizado pelo Sesc Pernambuco. Tem a sorte de ser míope. Por isso, quando criança, era acomodada nos degraus do palco para ver os espetáculos. Assim, sempre chegava bem cedo, podia prestar atenção no antes e em tudo e descobriu-se, ou tornou-se, aficionada. Segue míope, não pode mais ocupar os degraus, mas senta nas primeiras filas. Até hoje, não sabe descrever a beleza do cheiro dos holofotes.

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