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Crítica Militante

Embaralhamentos do eu

25.9.2016  |  por Daniel Schenker

Foto de capa: Christiano Nascimento

O título do monólogo de Rita Elmôr – Clarice Lispector & eu – aponta para uma conexão e, ao mesmo tempo, uma separação entre a escritora e a atriz. Logo no começo da apresentação, Elmôr comenta que fotos de seu rosto foram constantemente atribuídas como sendo imagens de Lispector, confusão decorrente do minucioso visagismo que marcou o trabalho anterior da atriz sobre a escritora, Que mistérios tem Clarice (1998). Essa informação sugere a preocupação em esclarecer a verdade acerca de uma falsa fusão. Mas, ao abordar a tensão entre perder-se no outro e a necessidade de preservar a individualidade, esse novo espetáculo sinaliza o desejo de frisar o elo entre as duas artistas – Elmôr afirma que estabeleceu sintonia com Lispector a partir do instante em que se percebeu deslocada no mundo – e não apenas a dissociação entre ambas.

Não há só uma Elmôr em cena. ‘Clarice Lispector & eu’ acumula identidades, o que não significa que as capture em suas totalidades

Ao longo da sessão, a atriz embaralha intencionalmente textos da escritora e de sua autoria sem sublinhar as transições de uns para outros. Não anuncia as passagens dentro da estrutura dramatúrgica e mantém a primeira pessoa do singular sem investir numa distinção em relação à autoria da fala. Mas o registro em primeira pessoa não é único. Ao se referir abertamente à própria vida, Elmôr se vale de um tom coloquial e se mostra desarmada, ainda que a simples presença do público determine a existência de atuação. Já ao mergulhar nos textos de Lispector, passa do transparente ao opaco. Torna-se um pouco mais formal, menos espontânea, apesar de evidenciar em sua interpretação um atravessamento particular, um comprometimento, em tudo o que diz.

Se no início a alternância de planos é mais flagrante, tendo em vista a distância entre a coloquialidade imperante nos momentos em que Elmôr discorre diretamente sobre si e a qualidade literária dos textos da escritora, à medida que a encenação dirigida por Rubens Camelo avança, o entrelaçamento ganha em sutileza. As fronteiras são minimizadas. Por isso, talvez o espectador note com cada vez menos nitidez quem está falando – se a atriz ou a escritora.

Dramaturgia é tessitura de textos de Rita Elmôr e Clarice LispectorChristiano Nascimento

Dramaturgia é tessitura de textos de Rita Elmôr e Clarice Lispector

Elmôr acrescenta outra esfera de atuação ao recorrer a composições tradicionais (de corpo e voz) na interpretação dos personagens mencionados, desenhados de maneira convencional com o intuito de diferenciá-los das identidades da atriz e da escritora. Elmôr realça distinções entre as personagens e entre a sua identidade e a de Lispector. Contudo, a atriz também destaca as diferenças entre duas fases de sua vida: quando encenou, há 23 anos, Que mistérios tem Clarice, ocasião em que deixou de comprar um carro para viabilizar o projeto teatral, uma época em que sentia que tudo era possível; e os dias de hoje, com a revisita a Lispector.

Não há, portanto, só uma Elmôr em cena. Clarice Lispector & eu acumula identidades, o que não significa que as capture em suas totalidades (objetivo que, de qualquer modo, seria inviável). O espetáculo traz à tona, isto sim, fragmentos de Elmôr e de Lispector, simbolizados, na proposta cenográfica, por meio de telas verticais e horizontais. Os recortes de identidades são acentuados pelos retângulos da iluminação, que estampa cores fortes no fundo do espaço em contraste com a neutralidade do preto e branco do figurino. A integração entre as criações que compõem a encenação é favorecida pelo fato de o mesmo artista, Paulo Denizot, assinar o cenário e a luz. Mel Akerman ficou encarregada do figurino.

Os procedimentos empregados, tanto no que diz respeito à atuação quanto às escolhas que norteiam a cena, sobressaem em detrimento dos temas levantados, ainda que seja perceptível, na costura dramatúrgica, a valorização do extracotidiano no cotidiano, a julgar pela concentração de relatos envolvendo situações de exceção no dia a dia. Em que pese sua natureza intimista, Clarice Lispector & eu reúne variadas facetas – de Lispector e Elmôr, além das personagens circunstanciais descortinadas durante a apresentação e dos espectadores, incluídos pela atriz através do olhar e não da interação direta.

.:. Escrito no contexto do projeto Crítica Militante, iniciativa do site Teatrojornal – Leituras de Cena contemplada no edital ProAC de “Publicação de Conteúdo Cultural”, da Secretaria do Estado de São Paulo.

Serviço:
Clarice Lispector & eu – O mundo não é chato
Onde: Teatro Poeirinha (Rua São João Batista, 104, Botafogo, tel. 21-2537-8053)
Quando: Quinta a sábado, às 21h, domingo às 19h
Quanto: R$ 50
Duração: 60 minutos
Não recomendado a menores de 12 anos

Ficha técnica:
Autoria: Clarice Lispector
Dramaturgia: Rita Elmôr
Com: Rita Elmôr
Direção: Rubens Camelo
Assistentes de direção: João Pontes e Radha Barcelos
Cenário e luz: Paulo Denizot
Figurino: Mel Akerman
Trilha sonora: Rita Elmôr
Design gráfico: Estúdio Quedesenholegal
Mídias sociais: Ramon de Angeli
Assessoria jurídica: Murilo Rabat
Direção de produção: Christiano Nascimento e Rita Elmôr
Produção: Art Hunter Produções
Realização: Ovo Produções Artísticas
Assessoria de imprensa:  JSPontes Comunicação – João Pontes e Stella Stephany

Bacharel em Comunicação Social pela Faculdade da Cidade. É doutor em artes cênicas pelo Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas da UniRio. Trabalha como colaborador dos jornais O Globo e O Estado de S.Paulo e das revistas Preview e Revista de Cinema. Escreve para os sites Questão de Crítica (questaodecritica.com.br), Críticos (criticos.com.br) e para o blog danielschenker.wordpress.com. Membro do júri dos prêmios da Associação de Produtores de Teatro do Rio de Janeiro (APTR), Cesgranrio e Questão de Crítica.

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