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Crítica Militante

A dor e a delícia

8.11.2016  |  por Maria Eugênia de Menezes

Foto de capa: Marcos Frutig

A história costuma ser contada a partir do ponto de vista masculino. A história da civilização, do pensamento, das guerras. Esquecemos, muitas vezes, que as macro narrativas que nos acompanham não são neutras, sem gênero. Há um enunciador masculino, branco, vencedor por trás da maior parte dos discursos que reproduzimos. Nesse sentido, Um berço de pedra, obra de Newton Moreno, pode ser lida como uma tentativa de dar voz ao que costumamos alijar do mundo, de ir contra a preponderância do masculino na fabulação.

Na peça, que tem direção de William Pereira, estão reunidos cinco episódios. Escritos, conforme aponta o autor no programa do espetáculo, em momentos e circunstâncias distintas. A amarrá-los está o tema da maternidade. Abordada, contudo, a partir de pressupostos não hegemônicos. Nesse texto de muitas paisagens ser mãe é, em linhas gerais, resistir. Resistir à perda, ao esquecimento, a violências várias. Ecoa a ideia de que ter um filho é estar um pouco mais viva, mas também um pouco mais perto da morte. Mais próxima ao abismo, em carne viva, mais suscetível aos perigos dessa vida.

É em sua tentativa de margear o lírico que a criação de ‘Um berço de pedra’ muitas vezes sucumbe ao lugar-comum

Para dar conta desse universo, Moreno não constrói apenas histórias diferentes. Mas se vale de uma variação de registros, ora mais próximos do drama realista, ora mais alinhados ao trágico. Existe a mãe (Lilian Blanc) que procura o filho desaparecido, morto durante a ditadura militar. Existe aquela (Luciana Lyra) que, tal qual Medeia, assassinou suas crianças para vingar-se de um homem e emula o discurso da personagem de Eurípedes.

O elenco flutua entre essas oscilações, podendo adotar um tom mais grave ou mais ligeiro, conforme a situação abordada. Eucir de Souza e Débora Duboc demonstram desenvoltura nesse trânsito, quase sempre no limiar entre loucura e sanidade. A morte costuma embaralhar os sentidos e embotar as sensibilidades. Como se não sobrasse espanto suficiente para se horrorizar com tudo aquilo que foge à regra. É dessa forma que Débora Duboc se põe a recompor o esqueleto do filho morto, como quem monta um quebra-cabeças, e espera que ele magicamente volte à vida. Muito diferente do espanto com o qual um homem parado em um semáforo vê sua vida ser transformada ao receber um menino dos braços de sua mãe. O absurdo irrompe no lugar da pretensa normalidade. A normalidade se impõe mesmo em meio ao caos.

A encenação trata de providenciar uma unidade a tudo isso. Retira das situações a sua vinculação imediata com um referencial geográfico ou temporal. Assinada pelo próprio diretor, a cenografia é composta essencialmente de areia – em quantidade suficiente para cobrir o vasto palco. O material desloca qualquer ação para um contexto sem tempo e sem lugar, assim como a envolve em uma atmosfera mística.

Débora Duboc faz as vezes de narradoraMarcos Frutig

Débora Duboc faz às vezes de narradora

Se pensarmos em arquétipos como modelos de coisas existentes, imagens primordiais que tendemos a repetir, torna-se possível falar da sua presença como elemento central na construção dessa dramaturgia. Estamos diante da figura – das figuras – da mãe protetora, bondosa, daquela que cuida e alimenta; o espaço da fertilidade e da renovação. Mas o autor se vale dessa força do feminino em toda a sua complexidade. No arquétipo da Grande Mãe, desenhado por Carl Gustav Jung e abertamente evocado por Moreno, a mãe não vem representar apenas aquela que gera e nutre. A mulher é também o lugar do secreto, do terrível, daquela que devora, que quer reter os filhos para si.

Como contraponto a essa imagem de mãe, surgem outras duas construções que pouco variam ao longo das situações apresentadas: o filho e o homem. O filho – referenciado invariavelmente como “meu menino” e nunca como “minha menina” – toma o lugar do masculino inocente e indefeso. Os inocentes que foram assassinados pela própria mãe, os inocentes que foram mortos pela ditadura, os inocentes abandonados. Como ameaça a esses filhos surge não apenas o lado escuro do feminino – que tudo quer tragar para dentro de si. Evoca-se, sobretudo, o homem guerreiro, aquele que simboliza a ação, a afirmação do desejo, a personificação dos instintos mais agressivos e primitivos: o torturador, o estuprador, o soldado de guerras incompreensíveis e inúteis.

É em sua tentativa de margear o lírico que a criação muitas vezes sucumbe ao lugar-comum. O texto pode perder em poesia justamente por suas ambições grandiloquentes. Situações plenas de potência tropeçam em suas pretensões. Não basta que a mulher grávida (Cristina Cavalcanti) esteja a dar à luz em meio ao campo de batalha, é preciso que sua roupa esconda explosivos. Não é suficiente que a mãe (Débora Duboc) se depare com os restos mortais do filho, é preciso que amamente uma caveira. O trágico se perde quando o drama se exacerba.

Opções cênicas também minimizam a força de determinadas situações, justamente por ambicionar amplificá-las. A areia que compõe o cenário cai do céu para assinalar os desfechos das situações, como se viesse para soterrar as personagens que se debatem para permanecer na superfície. As interpretações são unívocas. Por caminho semelhante seguem a iluminação e a trilha sonora. Construídas mais com o ensejo de sublinhar o que já está dito do que com a ambição de abrir novas e insuspeitas possibilidades de leitura.

.:. Escrito no contexto do projeto Crítica Militante, iniciativa do site Teatrojornal – Leituras de Cena contemplada no edital ProAC de “Publicação de Conteúdo Cultural”, da Secretaria do Estado de São Paulo.

Cena final de Um berço de pedro, texto de Moreno encenado por PereiraMarcos Frutig

Cena final de Um berço de pedra, peça de Moreno encenada por Pereira

Texto: Newton Moreno
Direção e cenografia: William Pereira
Com: Agnes Zuliani, Cristina Cavalcanti, Débora Duboc, Eucir de Souza, Lilian Blanc e Luciana Lyra
Figurinos: Cristina Cavalcanti
Trilha sonora: William Pereira
Iluminação: Miló Martins
Programação visual: Eduardo Reyes
Fotografia e registro em vídeo: Marcos Frutig
Projeções: Daniel Mantovani
Visagista: Leopoldo Pacheco
Cabelos: Paolo Biagiogli
Aderecista: Michele Rolandi
Divulgação: Adriana Monteiro
Operador de luz: Fernanda Guedella
Operador de som: Janice Rodrigues
Direção de palco (estagiários): Andieli Gorci, Henrique Pina e Rodolfo Portal
Produção executiva: Rafaela Penteado
Assistente de produção executiva: Paloma Rocha
Assistente de direção de produção: Adriana Florence
Direção de produção: Leopoldo De Léo Junior

Crítica teatral, formada em jornalismo pela USP, com especialização em crítica literária e literatura comparada pela mesma universidade. É colaboradora de O Estado de S.Paulo, jornal onde trabalhou como repórter e editora, entre 2010 e 2016. Escreveu para Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas, como o Circuito Cultural Paulista, e jurada dos prêmios Bravo! de Cultura, APCA e Governador do Estado. Autora da pesquisa “Breve Mapa do Teatro Brasileiro” e de capítulos de livros, como Jogo de corpo.

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