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Entrevista

Filosofia de um festival de máscaras no Cariri

16.12.2016  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Divulgação

A primeira edição do Festival Internacional de Máscaras do Cariri, o Fimc, de 7 a 11 de dezembro, corresponde a novo capítulo de arte e de cultura na região do sul cearense delineada por 32 cidades. Numa delas, a do Crato, fica o endereço da Beatos, organização não governamental idealizadora do evento.

Cidadã cratense, Dane de Jade é gestora cultural articuladora da ONG formalizada em 2010. A inspiração para criar um encontro com esse perfil veio do Canadá, via Festival Internacional de Máscaras de Quebec, em Saint-Camille, um vilarejo habitado por pouco mais de 500 pessoas que primam pelo espírito comunitário e pela ousadia de estabelecer trocas com artistas cênicos do mundo.

“Diante da impossibilidade de trazer o mundo todo para o Cariri e de levar o Cariri para o mundo todo, buscamos fragmentos dessa diversidade criativa para compor conexões que resultassem em um encontro fértil, potente”, afirma Jade, 50 anos, 15 deles ligada ao Sesc, instituição em que sedimentou a Mostra Cariri de Culturas e cuja 18ª edição aconteceu no mês passado. Neste fim de ano ela conclui sua atuação como secretária municipal da Cultura no Crato.

Dentre as inúmeras frentes, a entrevista a seguir diz muito sobre a capacidade de contrariar as correntes e avançar nas ideias e ações com pés no chão. Colocar o bloco do festival de máscaras nas ruas e nos (poucos) espaços culturais do Cariri confere sagacidade às mulheres e aos homens que pensam e praticam as artes da cena em diálogo com outras manifestações e contextos.

O Brasil árido habita outros espaços e outras mentes nos quais a condição de produção de vida está subjugada pela ausência de desejo e singularidade, repetida e previsível. Nossa coletividade é criadora

Cortejo de abertura do 1º Festival Internacional de Máscaras do CaririAnderson China

Cortejo de abertura do 1º Festival Internacional de Máscaras do Cariri

Por que criar um festival de máscaras em nível internacional?

A inspiração vem do Festival Internacional de Máscaras de Quebec, em Saint-Camille, um dos mais importantes nessa modalidade e do qual participei em 2015. Desde então, o sonho que há tempos acalentava passou a se tornar mais possível na medida em que voltei ao Brasil com a perspectiva concreta de realizar o primeiro festival do Cariri geminado com o de Saint-Camille.

A dimensão internacional foi motivada também pelo fato de que, assim como a máscara está presente em todo o território brasileiro, está presente em outros territórios geográficos para além do Cariri e do Brasil. Isso já apontava a amplitude que deveria ter o festival no sentido de promover experiências que contemplassem um profundo intercâmbio concentrado na construção e difusão da identidade brasileira, calcadas na nossa memória histórica, mas buscando dialogo com outros pares de outras culturas. É um jogo de desvelamento que configura nossa humanidade através da poética da máscara nas diversas categorias e formas que se apresentam mundo afora – rituais, festas, artes e cultura de modo geral.

Diante da impossibilidade de trazer o mundo todo para o Cariri e de levar o Cariri para o mundo todo, buscamos fragmentos dessa diversidade criativa para compor conexões que resultassem em um encontro fértil, potente. A decisão se fortaleceu ainda mais pelo fato de, no Brasil, não existir nenhum festival cujo enfoque seja a máscara.

A máscara é linguagem afins na região do Cariri?

A região do Cariri tem uma população estimada em 900.000 habitantes e é formada por 32 municípios ligados culturalmente pela sua principal atração, a Chapada do Araripe, conhecida internacionalmente por sua reserva fossilífera e pesquisas paleontológicas com fósseis de 110 milhões de anos. O Cariri é região farta em natureza, mas também em suas referências na religião e na arte, vitrine da criatividade de seu povo.

Nessa perspectiva, do ponto de vista sociocultural, a cultura popular revela-se soberana nas bandas cabaçais, no maneiro pau, nos reisados, nos penitentes, na xilogravura, no cordel, na madeira, no couro e no barro. Por tudo isso, fico confiante em afirmar que o Cariri tem culturalmente todos os ingredientes para justificar o nascimento de um festival que se torne referência para apreciação de grupos e artistas que trabalham com máscaras em todas as suas modalidades, pois as ações vão desde teatro e música a atividades de intercâmbio, audiovisual e de ações de formação.

A tradição peruana das máscaras paucartambinas foi objeto de workshopDivulgação

A tradição peruana das máscaras paucartambinas foi objeto de workshop

Quem assina a curadoria? Qual o norte?

Como idealizadora do festival, desde o principio pensei em praticar a colaboração como principio fundante e orientador de todas as ações – e isso foi válido também para a curadoria. Reuni várias pessoas. Na busca de que não houvesse uma verticalidade ou uma hierarquia, nivelamos as informações estabelecendo um espaço coletivo permanente de comunicação. A perspectiva era de realmente efetivar uma forma de ação de criação colaborativa entre os participantes.

Nesse sentido, o Fimc surge do intercâmbio de conhecimentos e afetividade propondo uma curadoria como ato criativo em movimento, pois a cada convite aceito, um novo diálogo se estabelecia e abria novas possibilidades. Esse é um desafio para um gestor cultural e para um curador porque subverte a lógica da curadoria como autoria individual. Por fim, como fruto das trocas, concluímos que o norte do festival era uma proposta de aproximação de saberes e fazeres na perspectiva expandida da máscara, ou seja, trabalhar com o conceito de campo expandido da arte, o que permitiu olhar para a máscara transbordando as fronteiras de qualquer arte especifica e assim pudemos compor uma programação envolvendo teatro, dança, artes visuais, circo e performance.

Também consideramos fundamental o diálogo entre pesquisadores de diversas áreas da academia e artistas-pesquisadores em um espaço no modelo de colóquio. O resultado é que o festival reuniu diversas ações e atividades que vão desde o processo de formação através de residências artísticas, oficinas, colóquios e debates, até o processo de fruição que foi realizado pelas apresentações de espetáculos, demonstrações técnicas, feiras, exposições e música. Posso afirmar que o Fimc foi pensado em uma composição de linguagens em torno da máscara com quem, de alguma forma, já tinha uma referência no país nessa modalidade.

Artista na andança de abertura pelas ruas do Cariri, no sul do CearáAnderson China

Artista na andança de abertura pelas ruas do Crato, no sul do Ceará

A máscara tende a ser vista como arte menor na cena contemporânea, apesar da sua condição milenar?

A máscara não existe como arte em si. Está em vários campos e com vários usos e modos de fazer. No que concerne ao uso nos dias de hoje, penso que essa diluição entre as fronteiras das artes, tão característica da contemporaneidade, permitiu justamente o fortalecimento da máscara.

Como exemplo, para entender melhor o interesse, a atualidade e intensidade das pesquisas e usos em torno da máscara, o festival reuniu a Cia. Teatral dos Bondrés [RJ), uma grande referência na modalidade; a atriz Daniela Carmona [RJ], que tem um trabalho incrível com máscaras larvárias; a atriz e diretora Tiche Vianna [Barracão Teatro, SP], outra referencia no teatro brasileiro quando se pensa em máscaras; e a diretora e coreógrafa Valéria Pinheiro [Cia. Vatá, CE], que traz a máscara revestida na dança e trabalhando o corpo na cena expandida.

O colóquio coordenado por Bya Braga [diretora da Escola de Belas Artes da UFMG e estudiosa das noções de corpo máscara e neutralidade com máscara, via obra do francês Étienne Decroux] teve participação de outros pesquisadores de máscara de diversos lugares do país, como Oswald Barroso, do Ceará; Joice Aglae Brondani, da Bahia; e Felisberto Sabino da Costa, de São Paulo.

Já o encontro da menor máscara do mundo, o nariz de palhaço, por ocasião do dia 10 de dezembro, Dia do Palhaço, reuniu um coletivo de palhaços de vários territórios brasileiros.

Tivemos também nossos mestres de tradição em máscara aqui do Ceará e de Pernambuco. A exposição gLOBISTA brasilis – A máscara da contemporaneidade reúne máscaras e fotografia no trabalho do fotógrafo Dada Petrole [do Crato] e exemplifica essa liberdade do uso da máscara em arte. A complexidade de técnicas e a variedade de formas artísticas expressivas reafirmam a mobilização em torno da máscara, as inquietações que provoca, seu transito por muitas áreas e a permanente reinvenção de seus usos e tantos outros que aportaram no Cariri para compor a programação.

Um dos artistas captados no Dia do PalhaçoMichael Sasso

Um dos artistas captados no Dia do Palhaço

A perspectiva do afeto pode ser lida como contraponto à aridez do momento brasileiro?

Que tipo de gestão cultural queremos realizar? Que tipo de evento queremos produzir? Que efeitos buscamos com esse evento? Estas foram algumas das questões norteadoras da proposta metodológica de trabalho no Fimc. Sabíamos da imensidão de amplitude desse projeto e que sua realização não visava apenas a um intercâmbio de trocas de experiências estéticas ou apenas à realização de um espetáculo. Preferimos definir o projeto como um espaço de vivência que se inicia com compartilhamentos do que cada um traz em sua “bagagem”, mostrando um para o outro um pouquinho de sua história, de sua vida.

O nome disso é afeto, porque afeto alegre dá liga, cria conexões e produz. Enquanto ação de intercâmbio, formação e fruição aliando gastronomia, turismo, economia e desenvolvimento no território Cariri, o Festival Internacional de Máscaras é uma usina criadora de vida e de arte em todas as suas dimensões. E isso é Brasil. O Brasil árido habita outros espaços e outras mentes nos quais a condição de produção de vida está subjugada pela ausência de desejo e singularidade, numa produção de vida repetida e previsível. Nossa coletividade é criadora.

O Fimc somou várias frentes: cortejo, rua, espetáculos de sala, sob tenda, show, colóquio, etc. Estratégia de ocupação? 

O termo ocupação tem várias conotações. Tem sido muito usado e morro de medo do esvaziamento do sentido político que pode ter. Mas se pensarmos ocupação como tomar para si a responsabilidade de algo, sim.  Um gestor cultural tem o compromisso de pensar ações culturais que reivindiquem e reafirmem o compromisso político da arte e da cultura com a vida cotidiana.

Do ponto de vista da metodologia do festival, volto a um modelo que acredito que é trabalhar na perspectiva de fortalecer a circulação de manifestações e bens culturais como forma de exposição, de conhecimento mútuo e de ampliação de mercado, além da afirmação da identidade na diversidade, como forma de recuperação da autoestima, mobilização e intercâmbio. É o que busco, seja como gestora em instituição pública, seja através da ONG Beatos e dos parceiros que busco. Estrategicamente, considero uma inovação o trabalho de formação dos alunos do curso de gestão cultural do Crato que estagiaram no evento.

Heinz Limaverde em 'Fantástico circo-teatro de um homem só' (RS)Michael Sasso

Heinz Limaverde em ‘Fantástico circo-teatro de um homem só’ (RS)

A tenda das máscaras foi criada especialmente para o evento?

Sim! Como vivemos num país onde a maioria dos equipamentos culturais está concentrada no eixo Sul-Sudeste e ainda não temos uma política de fomento e incentivo a espaços cênicos voltados ao “Brasil profundo”, fica difícil estruturar um festival com poucos espaços cênicos na cidade. A lona se apresenta como forma alternativa e servia bem aos propósitos do festival, além da relação com o circo, pois dentro da programação realizamos o encontro da menor máscara do mundo.

Qual o perfil do público e a previsão para a mostra?

No formato em que está organizado, toda programação do Fimc é gratuita e o número de ingressos vendidos costuma ser uma forma estatística de contagem de público atendido. No entanto, com nossa experiência, temos a expectativa de atingir 12 mil pessoas, uma vez que a programação, além do teatro, envolve a ocupação de vários espaços abertos, como praças e ruas de alguns bairros, além da zona rural. Também contamos com o fato de que o morador do Cariri cearense tradicionalmente acolhe as ações culturais que ocorrem na região e das mais diversas formas em que se apresentam.

Quem organiza o festival e como obteve recursos? Lei de incentivo?

O Fimc foi organizado do encontro colaborativo da ONG Beatos e da Ato Marketing Cultural. O projeto foi aprovado na Lei Rouanet, no entanto, não houve captação em tempo hábil. Tivemos alguns apoiadores e patrocinadores como Itaú Cultural e Theatro José de Alencar. A Funarte enviou oficineiros. Além de outros parceiros que atuaram com troca de serviços. Mas o que especialmente permitiu a realização do Fimc foram os parceiros individuais, artistas, que acreditaram no sonho e no projeto do primeiro festival.

Manifestações transformam cotidiano da cidade do Crato e entornoAnderson China

Manifestações transformam cotidianos da região do Cariri cearense

Em qual período você atuou junto ao Sesc do Crato e em que contexto surgiu a Mostra Cariri?

Estive no Sesc Ceará durante 15 anos. A Mostra Cariri surge da vontade de fazer um festival que tivesse abrangência na região. Escrevi o projeto e apresentei ao Sidnei Cruz (técnico do Departamento Nacional do Sesc no Rio), que de pronto se tornou um grande parceiro para a realização da mostra. Assim fomos transformando em uma ação grande e conhecida. Além de que me permitiu realizá-la em toda sua potência criativa pela capacidade de visibilidade que a institucionalização deu à mostra.

É possível correlacionar experiências nas instâncias pública e privada (ainda que mista)?

A parceria entre público e privado é um encontro natural frente ao modelo de organização política e econômico-financeira vigente em nosso país. O espaço não permite me alongar, porque a pergunta requer uma reflexão cuidadosa sobre o papel do Estado como criador ou agente criador de políticas públicas para a cultura, de modo que prefiro me deter aos aspectos positivos da gestão cultural baseada nessa estrutura colaborativa.

No campo da gestão cultural essa parceria vem permitindo, especialmente desde o incentivo ao mecenato com a criação da Lei Rouanet, por exemplo, ser este um caminho possível para a realização de muitos dos eventos culturais que são estruturados atualmente no Brasil. Apesar de experiências exitosas que conhecemos, ainda temos que avançar muito no sentido de melhorar essa estrutura colaborativa.

Considero importante ressaltar que para pensar essa relação de forma adequada é fundamental compreender que os eventos culturais trazem impacto econômico positivo para a região onde ocorrem, influenciando outros setores da economia, como o turismo e o lazer. Tenho defendido como política pública a adoção de projetos culturais como parte de um calendário cultural que valorize as diversidades regionais, e que contribuam com a organização dos diversos setores produtivos da cultura, com estímulo à geração de renda e de oportunidade de reflexão e acesso a novos conhecimentos, desta maneira a política de eventos toma forma de ação estruturante e não de mero divertimento sem maiores consequências. Estou saindo da gestão pública, mas por meio da colaboração de parceiros, além do diálogo com os poderes públicos em níveis municipal, estadual e nacional, temos pretensões de que o Fimc se constitua e se consolide como um grande projeto cultural para o Cariri.

Já fez teatro?

O teatro é minha origem, minha casa primeira. Comecei cedo, ainda na minha cidade natal, Crato, como atriz, inicialmente atuando em espetáculos amadores para o público infantil. Depois de algum tempo afastada do teatro, como atriz, tenho me sentido convidada a retomar a esse lugar. Por enquanto é um desejo que já está a caminho de ser realizado. Daqui a pouco sairá um trabalho!

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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