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Crítica

No artificial, o real

19.3.2017  |  por Maria Eugênia de Menezes

Foto de capa: Guo Muniz/Foco in Cena

Os atores parecem manequins. E se portam como tal, com seus gestos endurecidos e artificiais. Na peça de Susanne Kennedy, Por que o Sr. R. enlouqueceu?, nada soa natural. É o estranhamento em grau máximo o que se ambiciona nesse trabalho da companhia alemã Münchner Kammerspiele. Um estranhamento que se dá a partir da banalidade da vida humana. Assistimos a diálogos desse protagonista, o Sr. R, com a família e os colegas de trabalho – falas desprovidas de significado, destinadas apenas a ocupar o vazio.

Para criar o espetáculo, Kennedy baseou-se no filme homônimo de Rainer Werner Fassbinder. Lançado em 1970, em uma codireção com Michael Fengler, trata-se de um longa antidramático, no qual se acompanha a rotina de um casal de classe média. Senhor e senhora R. nunca se tocam. Ele é apático, ela reclama de sua falta de traquejo para lidar com as situações e as pessoas, e o filho não é mais do que um incômodo apêndice. Suas vidas monótonas e sem emoções são pontuadas pela promessa de uma promoção no trabalho, idas ao médico e à escola.

Repleta de nada – de não acontecimentos e de não-diálogos – a peça dá ao tempo um estranho e desconfortável protagonismo

Nessa recriação teatral acentua-se o tom monocórdio. Com máscaras de silicone aplicadas ao rosto dos intérpretes e diálogos pré-gravados (interpretados por não-atores), o distanciamento atinge certo paroxismo. Bertolt Brecht, aliás, parece ter retornado como um espectro onipresente, a assombrar boa parte das criações desta edição da MITsp.

Em cena, dá-se uma reprodução de rotinas e gestos triviais. Mas executada de maneira tão antinatural, como se fossem robôs que estivessem a representar. A diretora escrutina os limites entre o humano e o inumano. Como se a vida em sociedade, em seus estágios mais recentes, e as rotinas criadas por nós para essa existência pós-moderna tivessem nos esvaziado daquilo que nos definia. No momento do individualismo extremo não é mais possível ser um indivíduo.

O drama há muito entrou em colapso. No abuso de elementos do gênero – usados à exaustão em todas as formas de entretenimento que o mundo contemporâneo conhece – a forma dramática não mais mobiliza ou provoca a catarse. Os conflitos psicológicos de personagens verossímeis tornaram-se de tal maneira insignificantes que Kennedy vai ao extremo oposto para quebrar a apatia. Existe uma medíocre trivialidade no realismo. No artificial, está o real. As emoções mediatizadas são a grande arte.

Guto Muniz/Foco in Cena

Atriz na obra alemã que justapõe encenação e projeção

Não é fácil assistir a Por que o Sr. enlouqueceu?.  Repleta de nada – de não acontecimentos e de não-diálogos – a peça dá ao tempo um estranho e desconfortável protagonismo. Quando emuladas por esses atores bonecos, as ações do dia a dia parecem durar uma eternidade. As frases entrecortadas, encerradas sem conclusão, se tornam um peso para quem as ouve. A vida é uma repetição de dias, mais ou menos iguais, com ações e palavras que inventamos para nos esquecer da morte. A consciência desse processo pode ser aterradora.

Elemento ancestral do teatro, a máscara está nessa obra não só para impedir a identificação do espectador, mas para confundir os limites entre realidade e representação. Em cima do palco, testemunhamos a presença de seres que não reconhecemos – ainda que se assemelhem em tudo aos homens. O que entrecorta as cenas, porém, são imagens filmadas de pessoas de verdade, sem máscaras ou gestos estilizados.

Na justaposição entre aquilo que é encenado e o que é projetado surgem dois cenários praticamente iguais: duas salas revestidas de madeira, espaços que podem se transformar em quaisquer ambientes. Um balcão faz do espaço um bar, cadeiras podem emprestar-lhe a aparência de sala da professora ou da casa dos vizinhos. A semelhança entre o que se vê no palco e o que está na tela é interrompida apenas pela emergência de algum detalhe desimportante: a posição de um vaso de plantas, por exemplo. Existem dois mundos, em tudo irmãos, mas visivelmente distintos. Onde está a verdade? No que é real e palpável, mas estranho? Ou no filme de aparência realista?

Com uma sólida reputação em seu país e recentemente nomeada para compor a direção do prestigiado teatro Volksbühne, de Berlim, a encenadora alemã deixa transparecer em suas opções cênicas o apreço pelo cinema. Além do Fassbinder que lhe serviu de inspiração direta, ecoam a falta de sentido e o absurdo da existência que perpassam as filmografias de diretores como Andrei Tarkovski, uma referência declarada da artista, e Roy Anderson (especialmente no longa recente Um pombo pousou num galho refletindo sobre a existência). Mas também na história do teatro moderno ela vai buscar lastro para essa sua composição. Originalidade nunca significou tabula rasa. Em Por que o Sr. R. enlouqueceu?, dá-se uma espécie de apropriação e atualização das teorias de Gordon Craig (1872-1966) a respeito das supermarionetes. A impassibilidade absoluta dos bonecos e o imobilismo que a máscara impõe ao rosto já eram saudados pelo estudioso britânico como a saída para o fracasso do realismo. Susanne Kennedy foi mergulhada nessa crença; bebe dela e vai além.

Equipe de criação:

Autoria: Rainer Werner Fassbinder e Michael Fengler

Direção: Susanne Kennedy

Com: Suzanna Boogaerdt, Katja Bürkle, Walter Hess, Christian Löber e Edmund Telgenkämper

Elenco de apoio: Kristin Elsen, Renate Lewin, Sybille Sailer, Manuela Clarin, Ingmar Thilo e Herbert Volz

Cenografia: Lena Newton

Figurinos: Lotte Goos

Vídeo: Lena Newton, Ikenna David Okegwo

Design de som: Richard Janssen

Design de luz: Jürgen Kolb

Dramaturgia: Koen Tachelet e Johanna Höhmann

Equipe local de produção e técnica: Julio Cesarini, Lara Bordin, Daniela Gomes Colazante, Jamile Cristina Gomes Valente, Emerson Murade, Rodrigo Gava, Danilo Tadeu Cruvinel, Fernando Zimolo, Isadora Giuntini, Patricia Savoy, Wanderley Wagner da Silva, Rafael Alcantara, Enrique Casas e Paulo Ricardo Fernandes

Tradução: Christine Röhrig

Crítica teatral, formada em jornalismo pela USP, com especialização em crítica literária e literatura comparada pela mesma universidade. É colaboradora de O Estado de S.Paulo, jornal onde trabalhou como repórter e editora, entre 2010 e 2016. Escreveu para Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas, como o Circuito Cultural Paulista, e jurada dos prêmios Bravo! de Cultura, APCA e Governador do Estado. Autora da pesquisa “Breve Mapa do Teatro Brasileiro” e de capítulos de livros, como Jogo de corpo.

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