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Crítica

As sombras por detrás das luzes coloridas

7.3.2018  |  por Maria Eugênia de Menezes

Foto de capa: Guto Muniz/Foco in Cena

Existe uma ideia cristalizada de musical que se rompe em King size, obra de Christoph Marthaler apresentada na 5ª edição da MITsp. No início dos anos 2000, com a ascensão da versão anglo saxônica do gênero no Brasil, outras possibilidades de teatro musicado caíram em desuso. Como se o modelo importado da Broadway e do West-End solapasse nossa memória, fazendo tábula rasa da longa tradição do país em mesclar música e encenação. Afinal, a história do teatro musicado entre nós remonta ao século 19, quando surgiram os primeiros espetáculos de revista – obras que, ao combinar irreverência e coreografias, faziam uma releitura satírica dos acontecimentos do ano anterior.

Liederabend é algo diferente de tudo isso. Incomum por aqui, o modelo é bastante conhecido do público germânico: consiste em um recital, normalmente acompanhado ao piano, com canções de um determinado autor ou tema. Em King size, essa inspiração organiza a encenação. Mas o intuito de Christoph Marthaler é provocar mais estranheza do que familiaridade. Subverte-se a aura formal que costuma cercar essas tradicionais apresentações de canto para se investir no nonsense.

À sua maneira o encenador suíço vai corroendo o sonho edulcorado do encontro de almas. O culto do eu interior, o interesse pela profundidade dos sentimentos. O que sobrou disso?

Há esperteza nessa aparente falta de lógica. Quando frustra expectativas, em relação a situações que a própria encenação fomenta, o diretor aciona um duplo mecanismo: Primeiramente, provoca o humor. A seguir, consegue desarmar a recepção do espectador para lhe entregar um novo e inesperado significado.

Se pensarmos no funcionamento do riso, veremos que ele parte de uma determinada combinação entre um objeto e um contexto; mais especificamente do deslocamento desse objeto de uma posição trivial para outra, inesperada. Marthaler nos faz rir, por exemplo, de um frigobar. Não pela existência do aparelho em um quarto de hotel – que é o cenário da peça. Mas, pelo simples fato de deslocar esse frigobar para a parte mais alta de um armário. É a manifestação do excêntrico que nos convida a rir. Somos instados a achar graça do comportamento patético daqueles a quem assistimos no palco: inadequados em suas condutas, cantando composições fora de lugar, agindo sem observar as regras de comportamento, fragilizados em sua inocência. Uma ignorância desmedida que lhes permite ignorar os códigos. Os camareiros arrumam as camas para, em seguida, se deitar nelas. Deixam bombons para os hóspedes, mas os comem na sequência. Entram e saem do quarto pelos armários com ar de inabalável normalidade.

“Quando a pessoa do próximo deixa de nos comover, só aí pode começar a comédia”, escreveu Henri Bergson, em seu ensaio O riso. O filósofo francês capta a camada de anestesia necessária ao cômico. Rimos daquilo que não nos comove, não nos sensibiliza. Para Bergson, rir é o exercício da inteligência pura. Há, em King size, uma mecânica de distanciamentos que ambiciona, poderíamos supor, manter em constante suspensão a emoção de quem assiste. As situações fora de lugar ou que destoam da ordem social vigente não nos permitem a identificação com quaisquer dos personagens.

Guto Muniz/Foco in Cena

A atriz Hildegard Alex e o músico Bendix Dethleffsen

Uma velha senhora, de passos curtos e ar cabisbaixo, cruza a cena de quando em quando. Ela surge, contudo, nos momentos mais despropositados. Abre uma estante de partitura que permanece vazia; usa palitinhos para comer uma porção de macarrão guardada dentro da bolsa. Caminha e circula pelo quarto sem se deixar afetar pelo que ocorre ao redor. Sua rigidez diante dos acontecimentos é outro elemento forte de humor. Persiste um mistério que não se revela. Não sabemos seu papel naquele universo. Ela assiste a si mesma no passado? O que vemos é um sonho ou uma representação caricatural da banalidade comum a todos nós?

Parte do foco do diretor nesse espetáculo é a enarmonia (conceito que se refere à possibilidade de que duas notas musicais distintas sejam capazes de produzir um som muito similar). Ele explora essa ideia equiparando obras que não costumam ser vistas juntas. Sem prestar tributo às hierarquias, combina Mozart e Wagner a sucessos dos Jackson 5 ou a ingênuas cantigas tradicionais do repertório alemão. Essa miscelânea de composições musicais serve de alicerce à estrutura cômica da peça. Na montagem, as canções pop são objeto de especial reverência, cantadas por intérpretes empertigados, direcionados à plateia. Já os temas líricos não merecem semelhante devoção e são apresentados por cantores deitados ou escondidos embaixo da cama.

O desencanto de Marthaler parece mais potente diante de suas tentativas de disfarçá-lo. Há uma cenografia colorida, personagens que sorriem com insistência e muita música para ocupar qualquer silêncio inconveniente. Mas, ainda que breves, alguns silêncios são imensos. O amor e a idealização de uma vida apaixonada, tão insistentemente celebrados no repertório musical, não encontram par no que está em cena. Um homem e uma mulher dividem uma cama de casal, mas parecem evitar a qualquer custo a proximidade física. Eles trocam palavras enamoradas nas canções, mas não se falam. Há sonhos de grandeza e redenção a permear o sentimento amoroso. Quando um foco de luz se abre em cena, porém, não há ninguém para ocupá-lo.

Guto Muniz/Foco in Cena

‘King size’ provoca mais estranheza do que familiaridade

Um quarto de hotel e sua cama em tamanho king size são símbolos da realização da burguesia: espaço, conforto, privacidade. A decoração kitsch, talvez, torne o espaço um tanto anacrônico – revelando-o tão descolado da contemporaneidade quanto os ideais de romance e de supremacia do indivíduo que acompanharam a experiência burguesa no alvorecer do século 19. Após a idade iluminista, em que vigorou o culto absoluto à razão, a era vitoriana veio para reabilitar a imaginação. No lugar da divindade, elegeu-se a subjetividade. O amor romântico emergiu como um substituto da religião, o novo lugar da linguagem sagrada.

Toda essa história passa fortemente pelos artistas alemães da época, dos quais podemos lembrar de Schubert, Schumann e Wagner. O próprio termo lied (que nos remete a liederabend) foi cunhado precisamente na época romântica para denominar as canções que seriam usadas no formato de piano solo e voz. À sua maneira – com alguns momentos mais bem resolvidos do que outros – o encenador suíço vai corroendo o sonho edulcorado do encontro de almas. O culto do eu interior, o interesse pela profundidade dos sentimentos. O que sobrou disso? Por trás da aparência do ameno musical, a obra sustenta uma visão desencantada do mundo. Existem a beleza e o amor. Mas como são frágeis e fugidios. Aproveitemos os seus lampejos antes que a luz se apague.

.:. Mais informações sobre a MITsp – Mostra Internacional de Teatro de São Paulo.

Equipe de criação:

Direção: Christoph Marthaler

Direção musical: Bendix Dethleffsen

Dramaturgia: Malte Ubenauf

Com: Hildegard Alex, Tora Augestad, Bendix Dethleffsen e Michael von der Heide

Cenografia: Duri Bischoff

Figurino: Sarah Schittek

Iluminação: Heide Voegelin Lights

Gerente de Palco: Stéphane Sagon

Operador de Luz: Jean-Luc Mutrux

Camareira: Cornelia Peter

Gerente da turnê: Tristan Pannatier

Produção: Theater Basel / Théâtre Vidy-Lausanne

As apresentações do espetáculo na MITsp contam com o apoio do Goethe-Institut São Paulo e da Fundação Suíça para a Cultura Pro Helvetia.

Crítica teatral, formada em jornalismo pela USP, com especialização em crítica literária e literatura comparada pela mesma universidade. É colaboradora de O Estado de S.Paulo, jornal onde trabalhou como repórter e editora, entre 2010 e 2016. Escreveu para Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas, como o Circuito Cultural Paulista, e jurada dos prêmios Bravo! de Cultura, APCA e Governador do Estado. Autora da pesquisa “Breve Mapa do Teatro Brasileiro” e de capítulos de livros, como Jogo de corpo.

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