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Crítica

O embate poético e dolorido de versões

3.3.2018  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Guto Muniz/Foco in Cena

O branco é a cor predominante no espaço cênico das versões dos ex-combatentes do conflito entre argentinos e britânicos que Campo minado acolhe. Branco da página ou da tela preenchíveis pelas memórias impressas ou projetadas. Território no qual seis homens outrora beligerantes no front agora convivem, elaboram e recriam mutuamente suas histórias. O branco é também a acepção para o esquecimento súbito ou a impossibilidade passageira de raciocinar, condições distantes desse palco povoado de presenças mediadas pelas lembranças e fabulações de não atores que defenderam forças opostas nas Ilhas Malvinas ou Falklands, no Atlântico Sul. A guerra deflagrada há 35 anos soa como um trauma não cicatrizado e chega sob o efeito de uma bomba na realidade brasileira de generais alçados a funções civis como na ditadura.

A democracia sob risco e sujeita à manipulação pelos próprios poderes que a constitui é um dos contraditórios expostos pela dramaturga e diretora Lola Arias no espetáculo que tem sessões até domingo (dia 4) no Teatro do Sesi, dentro da MITsp – Mostra Internacional de Teatro de São Paulo. O roteiro que imbrica fatos, versões e invenções a partir dos relatos biográficos dos militares do Exército ou da Marinha, de distintas patentes, escrutina os malefícios do nacionalismo. São colaterais, mas não ignoradas nesse projeto artístico, as estratégias pelo ônus ou dividendos políticos do general e ditador Leopoldo Galtieri (1926-2003) e da primeira-ministra Margaret Thatcher (1925-2013), sempre respaldados pelos grupos de mídia chapa-branca dos países.

Em ‘Campo minado’, a diretora argentina Lola Arias conquista uma zona autônoma provisória da arte com olhos vivos e postos sobre a História, apesar da permanente constatação dos limites da humanidade

Lola potencializa o ponto de vista das testemunhas, a escala do humano, das partículas da geografia política imperceptíveis no tabuleiro dos senhores da guerra que se medem pela capacidade de alcance dos seus mísseis (nações como Estados Unidos, Coreia do Norte e Rússia na altura deste século), feito jogadores de game, para deleite da indústria bélica que nunca viu crise desde as trincheiras da Primeira Guerra Mundial (1914-1918).

Dados numéricos não contam as proporções dessa dor. O conflito ocorrido em 1982 durou 74 dias e matou mais de 900 soldados, a maioria jovem. Documentos, fotos e objetos cotejados pelos três ex-combatentes de nacionalidade argentina e pelos três britânicos (um deles de ascendência nepalesa) proporcionam outras materialidades simbólicas aos sofrimentos vividos – e a voz desses homens costuma ser mais sincera do que a dos superiores.

Nessa subversão hierárquica, Lola conduz os veteranos varões com sensibilidade para não impor sua própria condição feminina sobre o material bruto. Naturalmente, sua percepção poética está instalada, mas as partituras de ações individuais ou coletivas não aliviam o peso da testosterona. Exemplos da cena do striptease com a figura travestida e das intervenções da banda de rock com direito a solos de bateria e guitarra. A diretora parece, inclusive, assumir em determinadas passagens o lado enfadonho da cultura militar em sua rigidez formal na marcação dos deslocamentos que não disfarçam os tempos mortos.

Escolha artística coerente com quem opera da plataforma dos fatos e incide sobre eles com a liberdade criativa e o cuidado com o que trazem inscritos no corpo e na alma dos seus narradores.

Guto Muniz/Foco in Cena

A diretora Lola Arias expõe geopolíticas na escala humana

A cenografia sugere um estúdio de gravação audiovisual multiuso nos quais o próprio sexteto responde pela contrarregragem e aciona a mesa de luz. Um set de filmagem pode virar um set de terapia, síntese dos recursos tecnológicos usados com moderação, a indicar a prevalência do afeto no cerne de Campo minado. E é por essa via que alguns momentos vão se mostrar inesquecíveis.

Legado do século XX ocidental, o imaginário cinematográfico onipresente da guerra é revisitado na descrição do ataque de um submarino britânico ao cruzador Belgrano, afundado com todos os seus 323 marinheiros no início da peleja – metade da baixa argentina no conflito. Esse mesmo imaginário hegemônico é contornado com sutileza e tragicidade (cohabitáveis) no episódio do grupo de outros soldados argentinos tombados à margem de um rio, vítimas de minas terrestres – artefatos explosivos tristemente plantados pelas próprias forças de seu país. Tudo é narrado por um dos ex-combatentes e capturado por câmaras a partir das imagens em tempo real de maquete e de objetos em miniaturas, licença para um ambiente realista ocupado até mesmo por soldadinhos de chumbo – ou assim parecidos.

A couraça colonizadora britânica, vencedora do conflito e detentora da jurisdição sobre o território ultramarinho, é perfurada pelo depoimento de Lou Armor, instrutor de armas de infantaria da Marinha Real. Numa entrevista gravada para um documentário, aos 27 anos, ele chora ao recordar de um jovem soldado argentino ferido na luta que está prestes a morrer e lhe balbucia palavras em inglês. Os olhos marejados do passado são colocados ao lado da imagem do Lou Armor de hoje, aos 59 anos, que ainda se permite tocar pela dor do outro.

As experiências de David Jackson, Gabriel Sagastume, Ruben Otero, Sukrim Rai, Marcelo Vallejo e o citado Lou Armor compõem um álbum de retratos cênicos emoldurados e devidamente explodidos em seus suportes pela também escritora e performer Lola Arias. Não abrir mão da tática do humor nas duas culturas em xeque – o nepalês Sukrim é uma espécie de curinga com suas coreografias e cantos impagáveis – reforça quão admirável o modo como a diretora e sua equipe conquistaram a confiança dos ex-combatentes, cuja cumplicidade é central no armistício performativo que teve ensaios em Londres e Buenos Aires. Campo minado conquista uma zona autônoma provisória da arte com olhos vivos e postos sobre a História, apesar da permanente constatação dos limites da humanidade para aprender com seus erros, como sugere a canção final provocadora.

.:. Mais informações sobre a MITsp – Mostra Internacional de Teatro de São Paulo.

Guto Muniz/Foco in Cena

Os ex-combatentes argentinos e britânicos lutaram nas Malvinas

Equipe de criação:

Dramaturgia e direção: Lola Arias

Com: Lou Armor, David Jackson, Gabriel Sagastume, Ruben Otero, Sukrim Rai e Marcelo Vallejo

Pesquisa e produção: Sofia Medici, Luz Algranti

Cenário: Mariana Tirantte

Compositor: Ulises Conti

Iluminador e direção técnica: David Seldes

Concepção de vídeo: Martin Borini

Engenheiro de som: Roberto Pellegrino e Ernesto Fara

Assistente de direção: Erika Teichert e Agustina Barzola

Assistente técnico: Imanol López

Assistente de produção: Lucila Piffer

Assistente (Reino Unido): Kate O’Connor

Figurino: Andrea Piffer

Produtores da LIFT (Reino Unido): Erica Campayne, Carolyn Forsyth e Matt Burman

Produtor Associado: Gema Films

Campo minado foi originalmente encomendado e coproduzido pela LIFT, Royal Court Theatre, Brighton Festival, Universidad Nacional de San Martín, Theaterformen, Le Quai Angers, Künstlerhaus Mousonturm, Maison des Arts de Créteil, Humain Trop Humain / CDN de Montpellier and Athens & Epidaurus Festival. E apoiado pelo Arts Council England, British Council and The Sackler Trust.

Apoio: British Council, Embaixada da República Argentina na Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, Arts Council England e The Sackler Trust.

 

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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