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Crítica

Nas ondas do desejo estereofônico

31.8.2018  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Humberto Araujo

Brasília – O peso da moral protestante sobre os ombros de uma mulher infiel pode minar a paciência do público diante do espetáculo A Bergman affair  (Um caso de Bergman). A protagonista é mãe de três crianças num casamento sem amor. Involuntariamente, o enredo sintoniza com a hora brasileira de avanço do conservadorismo religioso, a captura do Estado presumidamente laico por forças obscurantistas, assim como contrasta a consciência de gênero que ganha corpo e resiste bravamente ao machismo.

Ou seja, talvez o país tenha sido mesmo um bom lugar para a estreia mundial da montagem do drama burguês que teve duas sessões no 19º Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília e segue para Porto Alegre e Rio de Janeiro.

Premido pelo desejo e pela moral, ‘A Bergman affair’ assume-se enquanto experimento artístico capaz de transigir com a memória fílmica e pessoal de Bergman e precipitar-se com solidez em reinvenções no modo de afetar o interlocutor a essa altura do século XXI

Felizmente, o deslocamento temático não tira o mérito da proposição artística da companhia francesa The Wild Donkeys (Os Burros Selvagens, em tradução livre), nome capcioso em tempos de selvageria explícita, encabeçada pela atriz italiana Olivia Orsini e pelo ator francês Serge Nicolaï. Ambos participam de companhias europeias de teatro de pesquisa, como o Théâtre du Soleil, e desde 2016 tocam o núcleo em paralelo – é o mesmo casal que teve a gravidez do filho e a vida de artista documentadas no filme Olmo e a gaivota (2015), de Petra Costa e Lea Glob.

O primeiro desafio deles foi a transposição cênica de Confissões privadas (roteiro autobiográfico também traduzido por Conversas privadas, do título sueco Enskilda samtal), que o cineasta Ingmar Bergman (1918-2007) escreveu em 1996, dirigido no mesmo ano pela norueguesa Liv Ullmann, com quem viveu por cinco anos e teve uma filha. Liv é atriz icônica da filmografia do artista, presente em Persona, Gritos e sussurros, Cenas de um casamento e Sonata de outono, entre outros.

Humberto Araujo

O estudante de teologia atuado por Andrea Romano, amante da dona de casa, por Olivia Corsini

Na peça, Olivia interpreta Anna. A mulher de um pastor tem um caso com um estudante de teologia 11 anos mais novo e é convencida por um conselheiro espiritual, também um pastor decano, a revelar a história ao marido.

Filho de pastor luterano e de uma enfermeira, Bergman partiu de um episódio verídico. Após a morte da mãe, encontrou um antigo diário com anotações relativas a uma traição. Entregou o caderno ao pai que, durante meio século de casamento, jamais cogitou essa possibilidade.

Nicolaï dirige, é um dos adaptadores e também atua. A cena é atravessada por uma atmosfera crepuscular reflexa dos processos interiores das personagens, sombras e impulsos. O tratamento estético prefere a contramão do espetacular, combinando tons ilusionistas ao naturalismo das situações. Tudo transcorre em baixo-relevo, valorizando o primeiro plano das atuações. As expressões dos rostos de Anna, do marido Henrik (por Stephen Szekely) e do velho aconselhador Jacob (por Gérard Hardy) emanam a força do close-up cinematográfico, apesar da distância do público na sala multiuso do Teatro Sesc Garagem. As vozes modulam em meio-tom e pouco se alteram nos momentos de explosão emocional. Contenção irrefletida nos corpos.

Sentimentos contraditórios suscitados por aflição, crença e tesão são fisicamente delineados. Há uma aura nos estados corporais que faz destes o território de liberdade e de verdade que o dogma não acessa. A apropriação do recurso do teatro de marionetes, em que o ator é manipulado por outro colega de figurino neutro e semblante à mostra (Serge Nicolaï dá asas aos gestos e movimentos do outro) comunica a plenitude do jogo das relações e da matéria-prima de que são feitas as artes da cena.

Humberto Araujo

Stephen Szekely, como o marido, é manipulado por Serge Nicolaï, o diretor de ‘A Bergman affair’

Aos poucos, a força da teatralidade torna a navegação pela estrutura narrativa de origem bergmaniana mais inspiradora. Soam entrelaçados os princípios do teatro (arte a que o genial diretor tinha por esposa) e do cinema (por amante), cabendo uma terceira via que é a disposição desse universo íntimo no espaço cênico.

Originalmente, o roteiro se passa em 1925, mas a dramaturgia dissolve geografias e temporalidades. Uma cama, por exemplo, serve a dois ambientes, a residência do casal e a casa de campo. O mergulho de Anna no mar é solucionado de maneira singela, fazendo par com a qualidade do silêncio e da comovente extensão dos abraços.

Contra a sentença moralista que o marido traído escreve na parede de fundo, justificando sua acusação de que a mulher “manchou” o lar e não teria cumprido as obrigações para com as crianças (algo como “Não se pode violar a verdade sem que isso acabe mal”), a encenação responde com a vivacidade das presenças. E com ecos do que o dramaturgo Henrik Ibsen, uma das estrelas-guia nórdicas de Bergman nos tablados (a outro era August Strindberg) preconizava no final do século XIX. Em A casa de bonecas, a personagem Nora abandona o lar, o marido e os filhos para reinventar sua existência.

Mais. São peculiares as passagens expositivas das intimidades entre Anna e Tomas, a sensualidade irrompida quanto menos se mostra, uma nudez esculpida em semipenumbra e nada ligeira. A assimetria do marido que acende a luz do quarto para que ele e a mulher possam se ver, enquanto o amante prefere a luz apagada em busca da invisibilidade da paixão culpada que os arrebata é uma das partituras bem-sucedidas.

Humberto Araujo

A atriz Olivia Corsini no papel que Ingmar Bergman parte da história verídica da traição da mãe

A dor e o destemor da Anna de Olivia Corsini são radiantes. Ela é seguida de perto pelo Henrik atuado por Stephen Szekely, sendo relevante ainda o diálogo geracional com Gérard Hardy, um dos fundadores do Soleil, ao lado de Ariane Mnouchkine.

Premido pelo desejo e pela moral, A Bergman affair assume-se enquanto experimento artístico capaz de transigir com a memória fílmica e pessoal de Bergman e precipitar-se com solidez em reinvenções no modo de afetar o interlocutor a essa altura do século XXI. A tessitura radiofônica da trilha sonora tem a ver com um chamado da audiência à escuta. No ano do centenário de morte do cineasta, não há traço de materialidade audiovisual no espetáculo – pelo menos não houve projeção durante a apresentação, ao contrário do que exibe o vídeo promocional registrado durante os ensaios da obra, abaixo. A inversão de expectativa tem nexo.

São as primeiras incursões junto aos espectadores, outros detalhamentos virão no processo contínuo e estruturante da obra. Se um dia Antunes Filho assistisse ao trabalho da companhia The Wild Donkeys, desconfiamos que iria se deparar com linguagem mais-que-perfeita em relação ao que prospectou no projeto Prêt-à-Porter (1998-2011) com os formandos ou integrantes do Centro de Pesquisa Teatral, o CPT do Sesc São Paulo. Tudo nessa experiência francesa é oferecido aos sentidos com plenitude.

.:. O jornalista viajou a convite da organização do 19º Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília, que acontece de 21 de agosto a 2 de setembro

Humberto Araujo

Um dos fundadores do Théâtre du Soleil, Gérard Hardy interpreta o conselheiro protestante

.:. Leia sobre as apresentações dias 5 e 6 de setembro no Teatro Sesc Ginástico, no Rio de Janeiro

.:. Leia sobre as sessões programadas para 12 e 13 de setembro no Porto Alegre em Cena – Festival Internacional de Artes Cênicas

Equipe de criação:

Direção: Serge Nicolaï

Colaboração artística: Gaia Saitta

Com: Olivia Corsini, Stephen Szekely, Gérard Hardy, Andrea Romano e Serge Nicolaï

Adaptação: Serge Nicolaï, Clément Camar-Mercier e Sandrine Raynal Paillet

Cenografia: Serge Nicolaï

Criação de luz: Elsa Revol

Criação de som: Emanuele Pontecorvo

Criação de vídeo: Igor Renzetti

Direção técnica: Guiliana Rienzi

Administração: Éric Favre

Comunicação: Valentina Bertolino

Observação: Com a colaboração do Porto Alegre em Cena e recursos de Lyon (França),  La Corte Ospitale (Itália), Il Funaro Centro Culturale (Itália) e Aria-Corse (França). Como parte do projeto Ingmar Bergman – 100 Anos, da Ingmar Bergman Foundation. As obras teatrais de Ingmar Bergman são representadas em língua francesa pela agência DRAMA – Suzanne Sarqxjier (www.dramaparis.com), em acordo com a Ingmar Bergman Foundation (www.ingmarbergman.se) e a agência Josef Weinberger Limited (Inglaterra).

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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