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Crítica

Navalha na nossa carne?

28.9.2018  |  por Kil Abreu

Foto de capa: Sergio Fernandes

A lógica do processo social permite supor que as personagens de Plínio Marcos em Navalha na carne podem ser negras. No entanto, as representações mais conhecidas do texto têm contado majoritariamente com atrizes e atores não negros. Quando Lucelia Sergio, interpretando Neusa Sueli, entra em cena na montagem em análise tirando a peruca loira isso nos remete a algo acidental, a uma personagem se desfazendo da outra com a qual ganha a vida. O “desfazer-se” remete também a uma possível resposta à maneira como no teatro brasileiro a distinção racial se afirmou. A tentativa de desnaturalização deste imaginário é, entre outras coisas, o que Navalha na carne negra nos oferece. Somos levados a pensar aquelas personagens por fora das representações já inscritas, em que atrizes blonde como Tônia Carrero e Vera Fischer viveram a prostituta no palco ou no cinema.

O espetáculo de agora não é exatamente o que costumamos chamar de nova leitura da peça no sentido da adaptação ou intervenção textual. Não se trata apenas de adaptar o texto a uma nova expectativa de recepção. É um trabalho de rearranjo dos sentidos da dramaturgia usando o suporte material da cena para uma fricção que projeta a emergência de ponto de vista determinado – o de um grupo de artistas negros que viram na peça a oportunidade de tomar daquela história algo exemplar para uma exploração que envolve lugares de classe, corpo, cor da pele e o próprio teatro como espaço a ser ocupado. Os quatro integrantes do núcleo do projeto vêm de grupos ligados à cena de pesquisa e militância negra, que aponta com maior volume e relevância a cada temporada: Lucelia Sergio (Os Crespos), Raphael Garcia (Coletivo Negro), Rodrigo dos Santos (Cia. dos Comuns, do Rio de Janeiro), José Fernando Peixoto de Azevedo (ex-Teatro de Narradores).

Em ‘Navalha na carne negra’, a discussão movimenta-se subliminarmente do espaço das relações íntimas ao dos lugares sociais. São sujeitos na arena do desejo que, ao encenarem a si mesmos, indicam uma possibilidade inventada de salto para fora da queixa. Corpos que ressurgem de dentro do ritual que explicaria o seu apagamento e que teimam na refazenda, na potencialização das presenças, a contrapelo

Em meados dos anos 60 o crítico Anatol Rosenfeld escrevia sobre uma das montagens da peça. Plínio Marcos surgia como autor e a ditadura articulava o seu golpe decisivo. Era momento em que, como agora, o juízo moral emergia com grande força na avaliação política e muita gente “comum”, além de parte da crítica, rejeitava aquele palavreado de malacos e putas. Nessa nascente de onde vinham as primeiras peças do autor, Anatol mostrava entre outras coisas o que era, nos termos do texto, a beleza, e de que maneira se manifestava em soluções novas no palco isso a que chamamos “estética do teatro”. Indicava que tudo o que há de essencial em termos de pensamento já está na linguagem. “Navalha na nossa carne” era o título da crítica.

Cinquenta anos depois esta montagem reposiciona as questões da peça, salvo engano, retificando o “nossa” pensado pelo crítico, mas avançando com muito interesse sobre os campos da linguagem. Em uma frente é preciso mostrar que a carne que sofre a navalhada não é genérica, e em outra é preciso testar caminhos para a linguagem que deem conta disso, da afirmação de que mesmo agora, tempo em que “você pode dizer que o preto é foda” (como ouve Vado, celular à mão, no rap da abertura), a navalha é chamada prioritariamente para agir sobre a pele negra.

A peça, em síntese, movimenta-se a partir de um fato: em uma pensão barata vivem a prostituta Neusa Sueli (Lucelia Sergio) e o cafetão Vado (Rodrigo dos Santos), assistidos por Veludo (Raphael dos Santos), camareiro gay do lugar. O conflito é disparado com o sumiço do dinheiro deixado por Neusa Sueli a Vado. O mote, no entanto, desdobra-se e avoluma-se a ponto de fazer ver, na troca de acusações, a condição de existência das personagens. O andamento se dá em uma arena na qual alternam-se as posições de mando e submissão e através de um jogo violento, na afirmação de alianças que se desfazem ao sabor das circunstâncias e dos argumentos.

Sergio Fernandes

O trio de atuantes de ‘Navalha na carne negra’: Lucelia Sergio (Neusa Sueli), Raphael Garcia (Veludo, de amarelo) e Rodrigo dos Santos (Vado)

A montagem é sustentada por quatro bonitas atuações, que tiram o máximo proveito dos impasses vividos pelas personagens; e uma direção cuja originalidade está em ponderar o drama, suspendê-lo momentaneamente aqui e ali para que a leitura crítica ganhe espaço sem que se perca a empatia. Sobre o efeito de empatia o crítico Yan Michalski identificara na peça os elementos considerados por ele valiosos quanto à construção das personagens, situações, e que garantem a qualidade do urdimento dramatúrgico. Referia-se a isso usando expressões como “autenticidade psicológica”, “virtuosismo dos diálogos”, “densidade do clima”. O que acontece em Navalha na carne negra é que essas características seguem preservadas e valorizadas, mas agora aparecem regidas por doses calculadas de uma razão exterior que tem suas próprias tendências. As zonas críticas são abertas dentro da situação cênica sem que se mude a fala original das personagens, que seguem o que foi traçado pelo autor, mas agora são colocadas à prova de um olhar novo. Ou um olhar que já estava lá, esperando para ser representado.

Os cortes na superfície da peça se dão em várias direções. A mais importante é a que oportuniza a inserção de algo em princípio estranho à natureza do texto, mas utilíssimo à fatura crítica: a projeção em tempo real, em uma tela ao fundo, do que está sendo representado. Mas o procedimento vai além da mera transferência da narrativa de um a outro suporte. O interesse da continuidade cena-tela não está só no uso do vídeo e sim na criação de uma outra tecnologia, que passa antes pela presença de uma videomaker fazendo a captação das imagens no espaço. Um corpo de mulher, negra, fazendo as mediações necessárias para imprimir o olhar, determinar planos e cortes e, assim, criar uma organização nova do material através da câmera. A prioridade não é dos planos abertos e sim do close, o que permite o flagrante íntimo. A fetichização dos corpos tomada como medida crítica alcança o que a peça conta e que agora é visto em pormenores inesperados; e alcança também o lugar dos espectadores, comprometidos, triangulando com a ação. Como indicou o crítico Luiz Carlos Merten, “o negro, tendo sido escravo, conhece melhor que ninguém a alienação do corpo”. Corpos alienados ou, talvez melhor, colocados em condição de alienação. Nesse esquema, alienação tanto no sentido erótico estrito (de objetos que servem à produção do desejo) como no sentido econômico, quando são anunciadas as relações entre disponibilidade física e rendimento mercantil.

Além das cenas que são interrompidas e retomadas, outras formas mais sutis de suspensão são testadas no espetáculo, sobretudo nas aproximações e descolamentos entre ator/atriz e personagem. Esta não é uma tarefa fácil em época na qual o efeito de distanciamento já foi amplamente colonizado pela publicidade. Mas o teste do palco resulta produtivo.

Vado (Rodrigo dos Santos), por exemplo, é um macho a construir um teatro e uma fortaleza para si, uma fala que inventa o palavreado irônico-acusatório, a manha supostamente safa nas atitudes. Mas este é o plano mais imediato. Tão importante quanto ele é o que a montagem nos leva a ver através das fendas: o desenho das relações de poder deixando vazar a experiência histórica determinada pela cor e pelo lugar de classe. E suas expectativas falhadas. No embate pautado pelo achincalhe lambendo o grotesco, por aquela verificação dos corpos e o “valor de mercado” que eles possam ter nas circunstâncias, Vado reduz as outras duas personagens à mínima significância no plano pessoal. Mas no espetáculo a desqualificação, paradoxalmente, também o abocanha, porque com ela vem o reconhecimento de pertencer à mesma margem social em que estão todos. Como diz a filósofa Judith Butler em outro contexto que pode ser relacionado a este, “o abjeto designa precisamente aquelas zonas inóspitas e inabitáveis da vida social, que são, não obstante, densamente povoadas por aqueles que não gozam do status de sujeito, mas cujo habitar sob o signo do inabitável é necessário para que o domínio do sujeito seja circunscrito”[1].

Sergio Fernandes

Lucelia e Garcia na encenação de José Fernando Peixoto de Azevedo para a peça de Plínio Marcos, escrita em 1967

Na encenação, o macho Vado é deslocado, pois, para uma terceira margem, que avança além da sua condição de pária e de homem cuja autoridade moral está contingenciada em um espaço determinado. Além destas, o espetáculo agora nos diz que não se trata de um homem e de um pária qualquer, mas de um homem negro. É quando se abre na cena a possibilidade de leitura a partir de uma microfísica do poder, do mando, da atitude que não pede autorização, surgindo do lugar periférico. Mas não se trata, por parte dos artistas, de acusar a própria pele. Vado, nos diz a cena, é o sujeito que marca no corpo do outro, da outra, a humilhação que ele se recusa a sofrer. Há recusa, na forma de respostas não dóceis. A essa potência paradoxal, reativa, a direção do espetáculo responde em determinada passagem com o distanciamento sutil, mas notável, do ator em relação à personagem. Na peça, em um dos pontos altos da dramaticidade, Neusa Suely pergunta: “Às vezes chego a pensar –poxa, será que sou gente? Será que eu, você, o Veludo, somos gente? Chego até a duvidar. Duvido que gente de verdade viva assim, um aporrinhando o outro, um se servindo do outro”. Ao que Vado responde: “É… É mesmo”, para logo em seguida, no entanto, emendar: “Você tá uma velha podre”. Na montagem o cafetão responde devolvendo a pergunta: “É… É mesmo. Será que somos gente?”. É momento em que a mudança de tons, do irônico ao dramático agora sublinhado, instaura o sentido crítico em uma forma nova, talvez estranha à peça e por isso mesmo, pelo efeito de contraste, expressiva. Como que tomando repentina consciência sobre o lugar de classe, Vado chora. Escreve-se assim, em ato, uma nota na lateral do texto colocando-se em perspectiva uma solidariedade imaginada. A discussão movimenta-se subliminarmente do espaço das relações íntimas ao dos lugares sociais. São sujeitos na arena do desejo que, ao encenarem a si mesmos, indicam uma possibilidade inventada de salto para fora da queixa. Corpos que ressurgem de dentro do ritual que explicaria o seu apagamento e que teimam na refazenda, na potencialização das presenças, a contrapelo.

Desordem

Navalha na carne negra não é apenas o exercício dos lugares de fala. É, junto a isto, o lugar de autoria da narrativa estética e histórica, e esta segunda é maior que nós todos e precisa ser uma construção compartilhada. Se o marginal, branco ou preto de 2018 já não se vê como o de 1967 isso não significa que a margem deixou de existir. Para todos os que nela estão. Não há dúvida de que a emergência das micropolíticas é hoje o fenômeno mais importante e com maior potencial para provocar a necessária desordem. As frentes de luta pautadas por questões de raça e gênero, entre outras, mostram-se indispensáveis para a mudança social na direção que interessa. E talvez seja hora de emprestar delas o alimento que há de servir para todos. De aprofundar a dialética no sentido de verificar a pertinência da luta dos negros também como algo que comporta demandas que não são apenas dos negros e negras.

O que o espetáculo nos diz é que o processo de politização das consciências, em que pese a extraordinária onda conservadora, é expressivo. É um trabalho que se coloca nas zonas de enfrentamento, na disputa dos valores estéticos e políticos que estão em jogo. Há uma mudança extraordinária em curso e ela começa no coração da cena.

[1] BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do “sexo”. In: LOURO, Guacira Lopes (org.). O corpo educado. Pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2000, p. 155.

Equipe de criação:

Direção geral e dispositivo cênico: José Fernando Peixoto de Azevedo

Com: Lucelia Sergio, Raphael Garcia e Rodrigo dos Santos

Vídeo: Isabel Praxedes e Flávio Moraes

Iluminação: Denilson Marques

Direção de arte: Criação coletiva

Assessoria para o trabalho corporal: Tarina Quelho

Programação visual: Rodrigo Kenan

Produção: corpo rastreado

Publicado por José Fernando Peixoto de Azevedo em Terça-feira, 17 de julho de 2018

Serviço:

Encontro com o Espectador

Navalha na carne negra

Com: José Fernando Peixoto de Azevedo e Rodrigo dos Santos

Mediação: Kil Abreu

Quando: 30 de setembro, domingo, das 15h às 17h

Onde: Itaú Cultural – sala Vermelha (Avenida Paulista, 149, Bela Vista, próximo à estação Metrô Brigadeiro)

Quanto: grátis

Próximas temporadas

Onde: Centro Cultural São Paulo – sala Jardel Filho (Rua Vergueiro, 1.000, Paraíso, anexo à estação de metrô Vergueiro, tel. 11 3397-4002)

Quando: 19/10 a 11/11, sexta e sábado, às 21h, e domingo, às 20h (não haverá sessões nos dias 27/10 e 28/10).

Quanto: R$ 20 (no dia 4/11, domingo, R$ 3)

Duração: 50 min.

*

Onde: Teatro de Contêiner Mungunzá (Rua dos Gusmões, 43, Santa Ifigênia, tel. 11-97632-7852

Quando: de 27/11 a 5/12, terça e quarta, às 20h

Quanto: R$ 5 a R$ 30

Duração: 50 min.

Classificação indicativa: 16 anos

Jornalista, crítico, curador de teatro. Dirigiu o Departamento de Teatros da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, publicou no jornal Folha de S.Paulo e foi coordenador pedagógico da Escola Livre de Teatro de Santo André. Compôs os júris dos prêmios Shell e APCA. Assinou curadorias para Festival de Curitiba, Festival Recife do Teatro Nacional, Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto, bem como ações reflexivas para a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp). Edita, com Rodrigo Nascimento, o site Cena Aberta – Teatro, crítica e política das artes, www.cenaaberta.com.br. É membro da IACT – Associação Internacional de Críticos de Teatro.

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