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Reportagem

Três festivais: resistir e se reinventar

13.9.2018  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Christophe Raynaud De Lage

Dentre os significativos festivais internacionais pelo país, a maioria sob as rédeas da economicidade neste ano de 2018, alinhamos três deles que operam sob os sentidos de resistir e se reinventar. Dois acontecem neste setembro, o terceiro em outubro. Os eventos em RecifeBelo HorizonteLondrina não são os únicos a colocar esses verbos em ação em algum momento de suas histórias. Aliás, integram o Núcleo dos Festivais Internacionais de Artes Cênicas do Brasil composto de oito representantes.

No Recife, nasceu o Cambio.FIT – Festival Internacional de Teatro de Pernambuco, entre 4 e 10 de setembro, iniciativa da atriz, produtora e cocuradora Paula de Renor. Ela levantou R$ 45 mil. Destinou 55% à hospedagem e alimentação, mesmo atenuando os custos por meio de dezenas de apoios.

Em Belo Horizonte, a 14ª Festival Internacional de Teatro Palco e Rua, FIT-BH, que acontece de hoje a 23 de setembro, é fruto de ousada iniciativa da prefeitura e da fundação de cultura: um edital público para seleção de proposta de curadoria. Venceu o projeto que defendeu o conceito “Corpos-dialetos”, pensado por seis profissionais atuantes em criação, pesquisa, teoria e crítica. O evento está orçado em R$ 3,4 milhões.

Estamos preparados com armaduras (força de trabalho), com armas em punho (nossas convicções) e alma de artista (esperança) para lutarmos juntos em 2019 [a segunda edição], para além da realização do festival, por políticas públicas para a cultura e contra a intolerância, a homofobia e o fascismo (Paula de Renor, Cambio.FIT, Recife)

No norte paranaense, o Festival Internacional de Londrina (FILO) chega aos 50 anos com uma campanha de doação na internet em busca de recursos vindos de pessoas físicas ou jurídicas com vistas à edição comemorativa que se daria em agosto e foi transferida para 20 a 28 de outubro, prevendo uma extensão também em dezembro. O orçamento é de R$ 1,4 milhão.

A programação enxuta do Cambio (a grafia em espanhol não é acentuada e expressa “mudança”, “transformação”, como em português) foi orientada por três eixos: 1) atividades de difusão, reflexão e formação; 2) residência artística; e 3) apresentação de espetáculo. De apenas um espetáculo, Lo único que necesita una gran actriz, es una gran obra y las ganas de triunfar, do grupo mexicano Vaca 35 Teatro en Grupo, uma adaptação de As criadas, de Jean Genet. A peça foi encenada na Comunidade do Pilar, integrada por conjuntos de moradias populares no centro histórico do Recife.

Apesar da contingência, programar apenas uma obra tem mais a ver com a mudança de paradigma no formato de festival do que com a escassez de recursos. Abriu com uma palestra acerca da internacionalização de espetáculos, com a bailarina, coreógrafa, diretora e gestora croata-espanhola Iva Hovart – mesmo tema de um seminário. E abrigou uma residência artística com a polonesa Anna Karasińska, diretora e cineasta que tem despertado atenção em seu país desde 2015 pela inovação de linguagem.

Junior Aragão/Cena Contemporânea

As atrizes Mari Carmen Ruiz Benjumeda e Diana Magallón García (dir.) na obra mexicana do Vaca 35, escalada para o Cambio.FIT no Recife

A ambição da coordenadora-geral do Cambio pernambucano é assentar prática e pensamento estruturantes nesse tipo de certame. Paula atuou por 16 anos junto à equipe do Janeiro de Grandes Espetáculos, até 2017, incrementando a fase internacional desse festival organizado pela Associação dos Produtores de Artes Cênicas de Pernambuco (Apacepe).

“Estamos preparados com armaduras (força de trabalho), com armas em punho (nossas convicções) e alma de artista (esperança) para lutarmos juntos em 2019 [a segunda edição], para além da realização do festival, por políticas públicas para a cultura e contra a intolerância, a homofobia e o fascismo que engolem este nosso país!”, afirma Paula de Renor, que assina a curadoria com o jornalista e produtor cultural Celso Curi, de São Paulo.

A mudança de escala e de conceito na nova iniciativa lembra procedimentos que outra mulher cultivou na história do FILO: a diretora, dramaturga, agitadora cultural, gestora e psiquiatra Nitis Jacon. Ela firmou forte vínculo das artes cênicas com a cidade de Londrina, notabilizada por um público aberto e exigente, influenciado pela experiência continuada das trocas artísticas, culturais e cidadãs com outras culturas regionais, nacionais e internacionais.

Na apresentação ao livro Memórias e recordação: Festival Internacional de Londrina – 40 anos (2010), de Nitis, a crítica e pesquisadora Mariangela Alves de Lima observa o protagonismo dela no movimento que “inscreveu de modo indelével a cidade de Londrina no mapa do teatro mundial”. Aquelas quatro décadas teriam decorridas simultâneas à evolução de uma consciência cada vez mais arguta da responsabilidade histórica da ação cultural.

“Experiências de arte e socialização que influíram de modo decisivo na difusão cultural e estimularam a consciência política entre os jovens que subiram ao palco ou ocuparam as plateias são o ponto de partida para uma reflexão pessoal [a memorialística de Nitis] que considera antes o significado do que a sequência cronológica dos fatos”, escreve Mariangela.

Saulo Ohara

A presidente de honra do FILO, Nitis Jacon, artista-chave na trajetória do festival que chega aos 50 anos, em Londrina, e faz campanha em busca de patrocínio de pessoas e empresas

O panorama atual é crítico. Os dois principais patrocinadores, Caixa Econômica Federal e Petrobras, não aportaram recursos em 2018 em razão da Lei das Estatais e das eleições – isso afetou outras jornadas internacionais. Até agora os realizadores captaram R$ 350 mil, via lei municipal de incentivo.

Daí a campanha ‘FILO 50 Anos – Eu quero!”, que busca doações e patrocínios diretos ou por meio da Lei Rouanet. Empresas ou pessoas físicas podem colaborar, conforme os organizadores detalham no site do Festival. “Ao longo deste tempo foram muitas as lutas, os encontros, as trocas e as alegrias. Este ano, a organização do FILO vem encontrando dificuldades para captar recursos para viabilizar a edição histórica e manter a estrutura do Festival em funcionamento”.

O empenho por superações é um traço recorrente no FILO. No mesmo texto citado há pouco, Mariangela lembra que o movimento londrinense sofreu “todas as agruras das perseguições institucionais do século passado e da primeira década deste século e a cada embate afinou instrumentos para responder de modo novo aos desafios gerais e aos obstáculos particulares, por vezes mesquinhos, que se opõem ao avanço cultural”.

E continua: “Primeiro foi o arbítrio da ditadura calando à força os que não consentiam, depois o conservadorismo da classe social dominante nas instituições públicas e privadas e, por fim, a escassez de moeda e matéria com que essas instituições tentam regrar e asfixiar as imprevisíveis ramificações da cultura”.

Milton Dória

A performer Camila Rocha na obra boliviana ‘Romeo & Julieta de Aramburo’, participante do festival londrinense em 2017

No terceiro dia da edição de 2017 o FILO foi impactado pela morte do seu coordenador e um dos curadores, Paulo Braz, aos 48 anos, ator e produtor que fazia dobradinha com o diretor do festival, Luiz Bertipaglia, desde a passagem de bastão de Nitis Jacon, atualmente com 83 anos e presidente de honra do festival do qual se afastou por problemas de saúde. Ela se aposentou em 2003 pelo vínculo com a Universidade Estadual de Londrina (UEL), correalizadora do festival com a Associação dos Amigos da Educação e Cultura Norte do Paraná (Àmen), dirigida por Bertipaglia.

Em Belo Horizonte, o FIT-BH é um festival eminentemente público e nesta 14ª edição radica, pratica e pensa essa dimensão por meio do conceito “Corpos-dialetos”. A proposta selecionada em pioneiro edital conflui os corpos, com suas presenças diversas, e os dialetos, com as muitas línguas que se inventam. A curadoria colaborativa pretende revelar variedades e singularidades do convívio social de maneira potente.

“Essas singularidades aparecem em trabalhos artísticos produzidos por sujeitos e grupos não neutros – sem pretensão de ocupar um lugar central e universal – mas, sim, marcados por seu lugar social, numa perspectiva descolonial que percorra caminhos na contramão de um olhar eurocêntrico nas artes cênicas”, diz o informativo de imprensa no site.

A abertura na noite desta quinta-feira dá a medida das intenções. Em vez de um espetáculo ou cortejo internacional, sob efeitos visuais e sonoros, optou-se pela pulsação à brasileira para enredar milhares de espectadores ao ar livre. A coreografia Batucada envolve 50 cidadãos que atenderam ao chamado do piauiense Marcelo Evelin, da companhia Demolition Inc., criador do trabalho concebido originalmente para o Kunsten Festival des Arts, tradicional festival belga centrado na arte performática. Na sequência, no mesmo parque municipal, é a vez do espetáculo baiano Looping: Bahia overdub, com seus arranjos coletivos em busca de uma participação festiva e a um só tempo estético-política, entre pensamentos sonoros e coreográficos.

CADDAH

Cena de ‘Batucada’, obra do coreógrafo piauiense Marcelo Evelin que faz parte da abertura do FIT-BH num parque da capital mineira

O projeto curatorial do FIT-BH é assinado por Luciana Eastwood Romagnolli (crítica e jornalista), Soraya Martins (atriz, pesquisadora e crítica de teatro afro-brasileiro) e Grace Passô (atriz, diretora e dramaturga), em colaboração com Anderson Feliciano (performer e dramaturgo), Daniele Avila Small (pesquisadora, crítica e curadora) e Luciane Ramos (artista da dança, pesquisadora, antropóloga e mobilizadora cultural).

Ou seja, o FIT-BH protagoniza uma histórica representatividade feminina que, indiretamente, ecoa as lutas e resistências de Nitis Jacon e Paula de Renor em Londrina e no Recife.

.:. O site e a campanha ‘FILO 50 anos – Eu quero!’

.:. O site do FIT-BH

.:. O site do Cambio.FIT

Os oito do Núcleo dos Festivais Internacionais de Artes Cênicas do Brasil

Festival Internacional de Londrina – FILO

Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto – FIT Rio Preto

Porto Alegre em Cena – Festival Internacional de Artes Cênicas

Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília – Cena Contemporânea

Festival Internacional de Artes Cênicas da Bahia – FIAC Bahia

Tempo_Festival – Festival Internacional de Artes Cênicas do Rio de Janeiro

Mostra Internacional de Teatro de São Paulo – MITsp

Cambio.FIT – Festival Internacional de Teatro de Pernambuco

 

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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