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Artigo

Coragem e voragem redivivas em ‘O rei da vela’

15.12.2018  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Jennifer Glass

[Artigo publicado originalmente na Conjunto – revista de teatro latinoamericano, editada pela Casa de las Américas, de Cuba, nº 187, abril-junho 2018, pp. 19-23, traduzido para o castelhano por Vivian Martínez Tabares]

Arte por natureza efêmera, o teatro vive subvertendo os próprios desígnios ao não perecer graças à memória das mulheres e dos homens que lhe dão vida. Quando os pilares humanos de um espetáculo de meio século atrás são os mesmos a alicerçá-lo nos dias de hoje, esses artistas elevam sua criação à quinta-essência. A coragem reacendida no presente, em 2017, é feita da matéria dos sonhos de 1967, e vice-versa. É desse ponto de vista que observamos os entrelaçamentos do tempo histórico e do tempo cênico na remontagem da peça O rei da vela, de Oswald de Andrade (1890-1954), pela Companhia Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona.

Conjugam-se fidelidade às reminiscências e deliberada promiscuidade estilística sob os mesmos corações, mentes e mãos de setembro de 1967. O diretor e ator José Celso Martinez Corrêa, o ator Renato Borghi e o cenógrafo e figurinista Helio Eichbauer [este morreria em 20 de julho de 2018, aos 76 anos] ousaram praticar poéticas então desconhecidas, tropicalistas e antropófagas, em plena ditadura civil-militar vigente no Brasil havia três anos e cinco meses.

As situações e diálogos saltam para o mundo real em meio às nossas fomes de arte e de cultura com o intuito de confrontar esses e outros vazios. Como Oswald de Andrade, que radiografava o presente e nele se posicionava sem recuar da ambição artística, a Companhia Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona faz do novo espetáculo um rito de carnavalização à poesia

Como não poderia deixar de ser, o trabalho redivivo evoca o fôlego transgressor da encenação original, considerada uma obra-prima ao capturar o espírito da década de 1960 (o impulso renovador das manifestações artísticas, políticas e comportamentais) e, sobretudo, ao atualizar o teor contracultural visionário do texto escrito por Andrade em 1933 e relegado às gavetas dos pares artistas e intelectuais desde que fora publicado, em 1937.

A historiografia retrata uma resistência à arte e ao pensamento incomuns de Andrade. Nascido e criado em São Paulo, ele foi um dos fundadores do movimento modernista surgido com a Semana de Arte de 1922, realizada nessa cidade sob o princípio de mais liberdade e menos convencionalismos. Sua postura provocadora, revolucionária e deveras anarquista disseminou discórdias e decerto retardou a recepção crítica e artística.

Os três atos de O rei da vela não prefiguram um enredo, antes uma colagem de quadros com referenciais populares ou eruditos, como o circo, a ópera e o teatro de variedades – leia-se o Teatro de Revista, gênero retrospectivo de acontecimentos do ano anterior por meio de diálogos, versos e músicas que conjugam sensualidade, ironia e sátira social e política.

Trata-se da ascensão e queda de um agiota que esfola os clientes a juros abusivos e enjaula literalmente os endividados em seu escritório. É a “neurose do lucro” que está em xeque. Ela acomete principalmente a burguesia que toma dinheiro emprestado para tocar seus negócios. A peça culmina na falência desse fabricante de velas, um representante escarnecido do capitalismo selvagem.

Jennifer Glass

Cena do segundo ato da remontagem da peça de Oswald de Andrade que estreou na temporada teatral paulista em outubro de 2017 e tem novas sessões em dezembro de 2018

Andrade concebe uma farsa corrosiva dos mecanismos medievais que regem a história do país, o favorecimento das classes abastadas e a perpetuação das desigualdades – a rigor, um receituário global. Lança mão de seu conhecido humor radical ao descer às minúcias do mau-caratismo e dos desejos a que tudo movem na trinca dinheiro, sexo e poder. Seus personagens são uma caricatura do atraso na sociedade paulista (ou bandeirante), as oligarquias que seguem intactas em seu instinto de dilapidar a coisa pública.

O rei da vela é pungentemente engajada sem cair no panfleto moralizante. Feito antena parabólica das realidades social, política e econômica, a obra se permite rir dos pendores ao socialismo com a mesma verve com que espinafra a sanha capitalista. O nome do dono da agiotagem é o mesmo do seu subordinado, Abelardo I e Abelardo II, respectivamente. Ao final, o trabalhador vinga como herdeiro do patrão, repetindo o descaramento. “Somos uma barricada de Abelardos! Um cai, outro substitui, enquanto houver imperialismo e diferença de classes…”, profetiza o primeiro.

O pano de fundo é a crise econômica da década de 1930, pós-quebra da bolsa de Nova York em 1929, refletindo em nível nacional o recuo da produção cafeeira em São Paulo e o lento início do ciclo industrial. O próprio autor foi impactado em suas finanças pessoais e pelos reflexos do longevo e pré-ditatorial governo do presidente Getúlio Vargas (1882-1954).

Antes de escrever a peça em questão o poeta lançou o “Manifesto Antropofágo”, no qual propôs que o Brasil devorasse a cultura estrangeira e criasse uma cultura revolucionária própria. As primeiras linhas desse documento de 1928 são lapidares: “Só a ANTROPOFAGIA nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz. Tupi or not tupi, that is the question”.

Esses dizeres, somados a outras atitudes e frases provocadoras – como “A transformação permanente do tabu em totem” e “A alegria é a prova dos nove” – seguem orientando o pensamento artístico do Teatr(o) Oficina, companhia e espaço arquitetônico inovadores, emblematicamente localizados no Bixiga, bairro da região central marcado pela fusão da comunidade negra com imigrantes italianos. Fundada em 1958, a companhia vai completar 60 anos em 2018.

As camadas expostas até aqui permitem dimensionar o que está em jogo quando se revisita a antológica montagem dessa peça. Há cinquenta anos ela foi escolhida para reabrir o então galpão e sede do grupo, à Rua Jaceguai, reconstruído como teatro após um incêndio em 1966. Os arquitetos Flávio Império (1935-1985) e Rodrigo Lefèvre (1938-1984) preservaram-lhe as paredes em alvenaria, com a rusticidade dos tijolos e do cimento. As arquibancadas de madeira tornaram-se plateia de concreto inclinada. Eles buscaram inspiração no palco do Berliner Ensemble, com um tablado circular giratório em seu diâmetro expandido. Foi a partir desse locus que Helio Eichbauer ergueu os dois cenários nos quais transcorriam os três atos: o escritório de usura, em São Paulo, com mostruário de velas, prontuário dos devedores e até uma jaula; e a ilha tropical na Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro, em meio a pássaros e palmeiras. Idêntica estratégia é adotada em 2017. Itens da cenografia ora estão em movimento na área da circunferência ora aparecem afixados ao fundo e nas laterais. Esse mecanismo é refratário à ilusão. A ossatura da caixa preta está nua. O urdimento fica à vista. Não há cortina, não há coxia.

Reprodução

Desenho do artista Helio Eichbauer (1941-2018) para o cenário da montagem de 1967; ele retomou a parceria com Zé Celso e Renato Borghi 50 anos depois

Recém-chegado de um período de estudos em Praga (uma formação renascentista, como costuma recordar o convívio com o professor e cenógrafo Josef Svoboda) e em Havana (onde conheceu o dramaturgo Virgilio Piñera e o diretor Vicente Revuelta, tendo dirigido El no em 1966), Eichbauer impregna figurinos e objetos de cores e ritmos vibrantes da cultura cubana, parelha à dimensão solar brasileira, inclusive no barroco assumido nos telões pintados.

Levando-se em conta a crise da representação desde eras remotas, a categoria da mimese estimula uma percepção labiríntica quando o Teatr(o) Oficina retoma O rei da vela.  Realidades, memórias e ficções soam superpostas na materialidade da cena. Especialmente nas presenças de José Celso Martinez Corrêa (que apenas a dirigia em 1967) e de Renato Borghi. Este o protagonista do mesmo papel do arrivista Abelardo I e, aquele, na pele de Dona Poloquinha (corruptela de “polaquinha”, sinônimo de prostituta à época), mulher virgem e reacionária que sai em defesa da tradição, da família e da propriedade – uma apropriação auto-irônica de Zé Celso ao vestir essa capa do discurso de parcela retrógrada da sociedade.

Borghi é o cordão umbilical. Para as gerações que o assistiram há cinquenta anos, no palco recuperado do Teatr(o) Oficina, e para os espectadores que afluíram e lotaram as sessões do Teatro Paulo Autran, na unidade do Sesc Pinheiros, e por acaso tiveram a curiosidade de acessar trechos em vídeo ou fotos em preto e branco, via internet, somos igualmente surpreendidos pelo seu desempenho como comediante, na acepção mais sofisticada do termo, equilibrando-se tragicomicamente em Abelardo I. A gestualidade e o sotaque carioca (há décadas ele está radicado em São Paulo sem prejuízo da aura de quem nasce sob os encantos naturais do Rio de Janeiro) tornaram seus Abelardos definitivos no imaginário das artes cênicas brasileiras.

Há um quê de Zé Carioca, da veia malandra cooptada pelos estúdios Walt Disney na década de 1940, desenhado como um amigo de Pato Donald num dos filmes do antagonista antipático. Mas Borghi não sucumbe a esse “jeitinho” estereotipado. Divisamos o consciente crítico do ator e do autor expressados com rigor e humor no discurso repleto de contradições do agiota.

Ressalve-se que Borghi, escalado para outra produção no início de ano, seria substituído na segunda temporada prevista para fevereiro de 2018, no Teatro Sérgio Cardoso, cabendo o protagonismo ao ator Marcelo Drummond, nome-chave na cena e na gestão do trabalho do Oficina desde os anos 1990.

Na gangorra temporal dessa análise é chegada a hora de contextualizar os meandros históricos do momento brasileiro. Atualmente, somos conduzidos por um governo ilegítimo, alçado à Presidência da República na esteira do golpe parlamentar de 2016. Michel Temer era o vice de Dilma Rousseff e vem desmontando os incipientes avanços em áreas sociais como saúde, educação e cultura. O álibi é a malfadada estabilidade econômica a custo da população empobrecida, e não se mexe no topo da pirâmide… Para fazer um paralelo, O rei da vela de 1967 veio a público quando o regime ditatorial tapava o sol com a peneira propagando o “milagre brasileiro” enquanto prendia, torturava e matava quem resistia ao estado de exceção.

Reprodução

Imagem do acervo do cenógrafo e arquiteto Flavio Império (1935-1985): cena da montagem original com Marieta Severo, Antonio Pedro Borges, Heleno Prestes e coro

A realidade brasileira encontra-se convulsionada pelos processos jurídicos ditos de combate à corrupção, uma corrida desequilibrada que atinge mais o campo progressista do que o campo da direita sem qualquer vergonha de difundir seus ideais obscurantistas. Os eleitores estão desalentados com os partidos e políticos que deveriam representá-los. O oportunismo de parlamentares ligados ao lobby de religiosos, empresários, banqueiros e o setor do agronegócio, para citar alguns, aprovam medidas de restrição aos direitos dos índios, das mulheres e dos negros, historicamente alijados, bem como da diversidade sexual, entre outras mudanças de paradigmas que perigam regredir, e muito, no plano da cidadania.

Assim como o espetáculo original foi corajoso ao realçar a crítica e a denúncia da dramaturgia por causa da concentração de renda e da exploração, malefícios do capitalismo, a equipe contemporânea de O rei da vela não recua do engajamento contra os vícios das elites sociais, políticas e econômicas desde o processo de colonização, no século XVI – que o digam os povos indígenas vítimas de genocídio. A espoliação e a colonização cultural são entranhadas, notamos com desassossego nos sentidos e nas diatribes costurados por Oswald de Andrade. Afinal, o modelo econômico dominante está a serviço do 1% mais rico da população. No relatório intitulado “Recompensem o trabalho, não a riqueza”, sobre o rendimento de capital em todo o mundo no ano de 2016, a confederação Oxfam International apurou que oito homens de negócios possuem a mesma riqueza que a metade mais pobre da humanidade. No Brasil, ainda segundo a referida fonte, são cinco os bilionários com patrimônio equivalente ao da metade da população mais pobre. A desigualdade de renda é endêmica no país de 207 milhões de habitantes. Uma minoria acumula vastas fortunas enquanto milhões de pessoas lutam para sobreviver com baixos salários e em condições subumanas.

Ou seja, as situações e diálogos de O rei da vela saltam para o mundo real em meio às nossas fomes de arte e de cultura com o intuito de confrontar esses e outros vazios. Como Oswald de Andrade, que radiografava o presente e nele se posicionava sem recuar da ambição artística, a Companhia Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona faz do novo espetáculo um rito de carnavalização à poesia. A voragem (de si mesmo, do seu passado) é traduzida com inquietude. Sintomático que o espetáculo de 1967 tenha sido dedicado ao cineasta Glauber Rocha (1939-1981) e o de agora, à atriz Fernanda Montenegro. A cabeça-câmera de Terra em transe (1967) e a digna e ativa voz do teatro nacional. Aliás, a primeira montagem ganhou versão cinematográfica pelo próprio Zé Celso, em 1971. O posicionamento contundente fica para o “quarto ato”, a cada noite, no diálogo franco do diretor, de Borghi e demais atores com o público. Minutos de alerta quanto às formas de opressão em voga, como o cerco do grupo empresarial do apresentador de TV Silvio Santos ao entorno do prédio do Teatr(o) Oficina com a meta de construir torres residenciais e deixar esse patrimônio vivo à sombra. Esse território foi iluminado pela luz do sol nos janelões laterais do projeto arquitetônico que ganhou corpo no início dos anos 1990, por Lina Bo Bardi (1914-1992) e Edson Elito. Portanto, a usura e suas variantes nada sutis não cessam de obter meios para atualizá-la nesta segunda metade do século XX. Daí as dimensões gigantescas de Zé Celso e Borghi em seus atos criativos, ambos com 80 anos, nascidos no mesmo dia, a 30 de março de 1937, o ano que não quer calar.

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Serviço:

O rei da vela

Quando: 14 a 16 de dezembro de 2018; sexta e sábado, às 20h; domingo, às 19h

Onde: Auditório Ibirapuera – Oscar Niemeyer (Avenida Pedro Álvares Cabral, sem número, Parque Ibirapuera,  portão 3, São Paulo, tel. 11 3629-1075)

Quanto: R$ 30

Duração: 240 minutos (com dois intervalos de 15 minutos)

Indicação etária: 14 anos

Equipe de criação:

Texto: Oswald de andrade

Diretor:  José Celso Martinez Corrêa

Conselheira poeta: Catherine Hirsch

Com: Marcelo Drummond, Tulio Starling, Sylvia Prado, Camila Mota, Joana Medeiros, José Celso Martinez Corrêa, Roderick Himeros, Ricardo Bittencourt, Vera Barreto Leite, Daniele Rosa, Tony Reis e Cyro Morais

Ponto: Carol Castanho

Canção de Jujuba: letra de Oswald de Andrade e música de Caetano Veloso

Diretor de arte: Helio Eichbauer

Assistente do diretor de arte: Luiz Henrique Sá

Arquitetura cênica: Carila Matzenbacher e Marília Gallmeister

Diretor de cena: Otto Barros

Contrarregra e maquinista: Elisete Jeremias

Contrarregra: Felipe Wircker

Contrarregra sapatinho: Cyro Morais e Kael Studart

Assistente arquitetura cênica e direção de cena: Danilo dos Santos Gonçalves

Cenotécnicos: Cassio Luis da Silva Omae, Leandro Bruno Beixeira, Deoclécio Alexandre da Silva Araújo e Reginaldo Pereira do Nascimento

Costura cenográfica: Oneide Cauduro

Aderecistas: Igor Alexandre Martins e Andrea Guzman

Criador do bonecão Abelardo I: Ricardo Costa

Criadora da cobra de Abelardo I: Lala Martinez Corrêa

Pintura artística: Vicent Guilnoto

Figurinista: Gabriela Campos

Alfaiate: Lello

Costureiras: Judite Lima, Cris Mike, Joana, Salete

Sapateiro: Davi e Pedro Free Sapataria

Pintura artística: Sonia Ushiyama

Camareira: Cida Melo

Maquiagem: Sonia Ushiyama

Assistente de maquiagem: Erica Gabriela Pereira

Desenho de luz: Beto Bruel

Assistentes de iluminação: Luana Della Crist e Pedro Felizes

Operadora da luz: Luana Della Crist

Operador de moving lights: Pedro Felizes

Canhão seguidor: Vinicius Tabarini e Cafira Zoé

Ponto da luz: Cafira Zoé

Sonoplasta: Nash Laila

Operadores de som e microfone: Camila Fonseca e Clevinho Ferreira

Diretor de vídeo/câmera: Igor Marotti

Direção de produção e estratégia: Camila Mota, Marcelo Drummond e Zé Celso

Produtor executivo e administrador: Anderson Puchetti

Produtores: Ana Sette, Ederson Barroso e Kael Studart

Comunicação, editoração do programa e textos: Brenda Amaral, Cafira Zoé e Camila Mota

Ilustrações de cenários e figurinos: Helio Eichbauer
Design gráfico, ilustrações e diagramação do programa: Igor Marotti

Assessoria de imprensa: Brenda Amaral

Pesquisa de imaginário e Makumbas Gráphicas: Cafira Zoé e Camila Mota

Fotografias: Jennifer Glass

Arquivista: Thais Sandri

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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