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Crítica

Retábulo de vozes

19.3.2019  |  por Valmir Santos

Foto de capa: André Araújo

História de uma história coletiva, assim pode ser percebido o mais recente espetáculo do Grupo Sobrevento, Noite. Os criadores buscaram em lugares públicos e privados no entorno de sua sede, entre o Brás e o Belenzinho, memórias pessoais e urbanas que contribuíram para moldar a alma desses bairros do centro expandido de São Paulo.

A observação participante no levantamento de objetos e relatos é sustentada de modo peculiar no plano da linguagem. Impossível não iniciar a análise pela cenografia, porque estruturante na encenação.

O grau de pertencimento ao território onde o Sobrevento está há quase um terço de sua existência é elaborado na forma de um documento social que também incide sobre um país confrontado às trevas em sua realidade

Seis atores ocupam nichos como se fossem quadros numa parede, o que remete ao simbolismo do retábulo talhado em madeira. Ocultas na escuridão, essas figuras são iluminadas a cada vez que enunciam os respectivos universos, bem como devolvidas ao breu a cada final de fragmento.

Isso determina o fluxo texto-imagem, numa relação que se revelará desequilibrada ao longo da apresentação, como abordaremos adiante.

É nas reentrâncias desse espaço cênico ascensional que os discursos diretos preponderam. O público é estimulado a fixar o olhar e a escuta a cada cena composta como se fosse uma estação pictórica num dos pontos cardeais do mural.

Arô Ribeiro

A atriz Sueli Andrade em ‘Noite’, espetáculo do Grupo Sobrevendo que faz um passeio pela memória da vizinhança nos bairros do Brás e do Belenzinho

Mas há uma exceção nesse jeito direto de se expressar. Ela recai sobre o diálogo torto entre um homem cego, que batalha por trocados cantando e tocando nas ruas, e seu “assistente”, um menino. Este anda aborrecido com a companhia ensimesmada e nostálgica do sujeito apegado ao acordeão, ao pandeiro e à cachaça. Seus corpos mal cabem no mesmo cubículo.

A fala evocativa do músico confere a ele a condição indireta de narrador, intuindo que as demais vozes derivaram de seu imaginário, mesclando o vivido e o inventado. A rabugice típica do velho Hamm em Fim de partida, peça do irlandês Samuel Beckett (1906-1989), lhe dá contornos líricos ao recordar-se de alguns causos. Como o do coveiro que, no final do século XIX, mudou o cemitério de endereço para dar lugar à atual Paróquia São José do Belém.

Entre as historietas representadas no painel das lembranças estão a do homem que perdeu o paninho de estimação da filha. Ele chegou a carregá-lo quando foi para o presídio, condenado pelo assassinato de outra pessoa, mas o item sumiu. É humanizadora a inversão do afeto embutido no objeto de transição por um adulto rompido com a família há anos. O paninho remete às mudanças que o bebê lida na primeira infância. Por isso o valor sentimental perpetuado na clausura paterna.

Marco Aurélio Olímpio

Mauricio Santana e a figura do artista que segue o ofício inspirado pela mãe, cantora e atriz, contrariando o pai que o preferia morto

Em outra cena, um homem afirma que seguiu a vocação da mãe, atriz e cantora de fado, de quem guarda um vestido de recordação. Para desgosto do pai que o preferia morto a artista.

Uma funcionária de cartório expõe outra chave para processar a experiência gerada pelo espetáculo. Zelosa do papel da fé pública para a cidadania, numa época em que atendia desvalidos recém-chegados de várias regiões do Brasil e do mundo, ela salienta: “Nós somos aquilo que o documento diz que a gente é”.

Ao abrigar as memórias da vizinhança, o Sobrevento acende um candeeiro em sua própria pesquisa no teatro de animação e de objetos. O grupo “mora” no Belenzinho há quase um terço dos seus 32 anos. E o grau de pertencimento a esse território é elaborado na forma de um documento social que também incide sobre um país confrontado às trevas em sua realidade.

Pois a notável iconografia contrasta com a falta de cadência para dar liga ao mosaico narrado. Apesar dos motes conectivos a cada situação, a dramaturgia ressente-se de “buracos”. À intrigante sensação de pensar, por um instante, que essas figuras estão mortas, sobrevêm justamente tempos mortos na sequência dos blocos.

Apesar de a arquitetura textual ainda não ecoar paisagem própria, os demais aspectos constitutivos da obra propiciam uma atmosfera próxima daquela do romance Pedro Páramo, do mexicano Juan Rulfo (1917-1986), em que os mortos têm voz e vagam pelas memórias no fictício e seco povoado de Comala.

Noite constrói imagens inarredáveis de fortes tons coloridos. O espetáculo realça o caráter artesanal até na coerente projeção final em vídeo que dá unidade visual aos temas tratados.

.:. Visite o site do Grupo Sobrevento

Serviço:

Onde: Espaço Sobrevento (Rua Coronel Albino Bairão, 42, Metrô Bresser-Mooca, tel. 11 3399-3589 e 11 96625-8215

Quando: sexta e sábado, às 20h30, e domingo, às 18h. Até 24/3

Quanto: entrada franca, a bilheteria abre uma hora antes; reservas via email: info@sobrevento.com.br

Duração: 60 minutos.

Classificação indicativa: 14 anos.

Capacidade: 80 lugares

Acesso a cadeirantes. Não tem estacionamento.

Arô Ribeiro

Liana Yuri está na montagem do grupo de 32 anos cujos codiretores e cofundadores pesquisaram temas relacionados a terra, morte e jardim

Equipe de criação:

Criação: Grupo Sobrevento

Direção: Sandra Vargas e Luiz André Cherubini

Dramaturgia: Grupo Sobrevento (a partir de depoimentos de vizinhos)

Com: Sandra Vargas, Luiz André Cherubini, Maurício Santana, Sueli Andrade, Liana Yuri e Daniel Viana

Música original: Arrigo Barnabé

Iluminação: Renato Machado

Figurino e adereços: João Pimenta

Assistência de figurinos e adereços: Marcelo Andreotti e Sueli Andrade

Cenografia: Luiz André Cherubini

Cenotécnica: Agnaldo Souza, Mandy e Paulo Higa

Técnica de luz: Marcelo Amaral

Assistência de Iluminação: Vinícius Soares

Video mapping: Cristhian Lins

Fotografia: Arô Ribeiro

Fotografias de cena: Marco Aurélio Olimpio

Programação visual: Marcos Corrêa – Ato Gráfico

Assessoria de imprensa: Márcia Marques – Canal Aberto

Colaboração artística no desenvolvimento do Museu-Teatro da Vizinhança: Márcia Marques, Arô Ribeiro, Milena Moura, Daisy Kudo e Paula Adriana Tobaruela

Realização: Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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