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Crítica

O enigma como fim e meio em Sergio Blanco

23.7.2019  |  por Maria Eugênia de Menezes

Foto de capa: Rodrigo Lopes e billnog.biz

As razões para matar o pai. Em Tebas land, peça de Sergio Blanco, essa questão parece organizar a trama. Como nas outras montagens do franco-uruguaio que puderam ser vistas no Brasil recentemente – caso de A ira de Narciso e o O bramido de Düsseldorf –, uma morte surge como disparadora das ações. Como se o espanto diante da ideia de matar ou de morrer incitasse o dramaturgo a pôr em funcionamento uma máquina que mistura ficção e autobiografia.

É sempre o próprio autor quem aparece como narrador e protagonista de suas histórias. Ele se tematiza e se implica naquilo que escreve – ainda que sua imagem nos surja sempre mediada por um ator. Cabe a Otto Jr. assumir esse papel em Tebas land, ali ele se apresenta à plateia como se não estivesse a interpretar um personagem. Recepciona quem chega com falas de boas-vindas, começa o espetáculo como se nada tivesse tido início ainda. Explica como a montagem irá funcionar, fala de quais teriam sido suas motivações para escrever (como se o texto fosse uma obra de sua lavra), cria uma espécie de brincadeira que mascara o fato de o jogo do teatro já estar em funcionamento.

Como em ‘Tebas land’, no teatro de Blanco não existem fatos, apenas versões. Não existem homens, mas imagens que variam conforme o olhar de quem as mira. O espectador está a um passo de uma verdade que, continuamente, se transfigura. A criação artística é o lugar da liberdade absoluta. A distância que existe entre o fato e sua representação – para o personagem de Otto Jr. é esse o motivo pelo qual a arte sempre ultrapassa a realidade

Com esse artifício, Blanco joga com as expectativas do espectador e o mantém em estado de produtiva suspensão. Diferentemente dos modos habituais de interação com o público, ele opera sem que esse tenha que se manifestar de viva voz, porém demanda um especial estado de atenção e cumplicidade, como quem lança um enigma a ser desvendado. O tema da finitude, portanto, tem especial relevância para esse mecanismo. O que pode atrair fascínio semelhante ao da morte?

Mas a morte é um disparador para que muito mais venha à tona. Primeiro, o autor coloca quem assiste diante de dilemas morais: o que poderia justificar um parricídio? Conquistada a adesão da plateia, dá a sensação de que está a dividir também suas decisões sobre a obra, seus caminhos como escritor. A maneira de recriar o encontro de duas pessoas, os perigos de se fetichizar um crime, as raízes que todas essas histórias têm em nosso imaginário.

Como costuma fazer em suas criações, Blanco tece uma plural rede de referências. A mais óbvia e mais presente é a menção a Édipo rei, de Sófocles. Ao matar o rei Laio sem saber que se tratava de seu próprio pai, o personagem da tragédia grega surge como um parricida torto, que comete o crime sem a dimensão exata de seus atos. Busca-se lastro também em obras como Os irmãos Karamázov, de Dostoiévski, e em escritos de Freud. E há espaço para outras amarrações menos “nobres”, como o vocabulário dos jogos de basquete ou excertos retirados da Wikipédia.

Na peça, Martin está preso por assassinar o pai com 21 garfadas no pescoço. O personagem do autor, a quem teria sido encomendada uma obra sobre o tema, decide visitar o jovem na penitenciária com o intuito de que ele mesmo suba ao palco para representar o episódio. Reviravoltas com o sistema judicial, porém, impediriam o criminoso de estar em cena, daí a necessidade de se encontrar um intérprete que ocupasse o seu lugar. Um mesmo ator (Robson Torinni) está a cargo dos dois papeis: ora representa o presidiário Martin, ora vive o ator Federico, que irá representar esse presidiário. Como em um caleidoscópio, cada movimento da dramaturgia consegue, a partir dos mesmos elementos, formar uma nova imagem.

O constante deslocamento entre Martin e o ator que o interpreta é uma das escolhas mais interessantes da encenação, especialmente instigante nos breves momentos em que os dois personagens se sobrepõem. Mas reside aí também um dos pontos mais problemáticos da atual montagem, dirigida por Victor Garcia Peralta. A caracterização de Robson Torini para Martin resvala, em determinadas passagens, em uma caricatura, em uma interpretação pretensamente realista que não dialoga com o restante da peça. Talvez falte a essa proposta alguma malícia, uma dose de ironia. Curioso que o próprio texto aborde essa problemática. Durante um diálogo com Martin, o escritor tenta explicar-lhe que o ator que irá interpretá-lo não deverá imitar ou copiar a sua imagem, mas se inspirar nela para criar.

Rodrigo Lopes e billnog.biz Robson Torinni (à esq.) e Otto Jr. em ‘Tebas land’, do franco-uruguaio Sergio Blanco: seu teatro autobiográfico lida com pressupostos estéticos, mas também éticos

Blanco trabalha com verdades transitórias, que mudam de lugar conforme avançam suas narrativas. Em determinado momento, o ator pergunta se não irá conhecer Martin. O personagem do escritor prefere que o encontro não aconteça – essa é sua maneira de manter a história sob controle. No teatro de Blanco não existem fatos, apenas versões. Não existem homens, mas imagens que variam conforme o olhar de quem as mira. O espectador está a um passo de uma verdade que, continuamente, se transfigura. A criação artística é o lugar da liberdade absoluta. A distância que existe entre o fato e sua representação – para o personagem de Otto Jr. é esse o motivo pelo qual a arte sempre ultrapassa a realidade.

As conversas entre o autor e o jovem parricida ocorrem em uma quadra de basquete. É esse o cenário para a peça – uma estrutura que, gradeada, sugere também uma cela ou uma jaula. A relação de Martin com o esporte lhe interessa, ele faz perguntas, quer construir um vocabulário com os termos principais. Talvez porque essa seja uma maneira de relacionar-se com o seu próprio pai que, como ele revela brevemente em determinada passagem, era também jogador de basquete. Interessante perceber também a intrincada relação entre morte e pulsão sexual que atravessa a dramaturgia. Incontáveis são os espelhamentos entre a figura paterna, a imagem do agressor e o objeto de desejo. Obscuros objetos de desejo.

Em O bramido de Düsseldorf, seu pai enfartava e morria durante uma viagem de trabalho que fizeram à Alemanha. Mesmo quando o espetáculo chegava ao fim, todas as versões criadas em cena permaneciam possíveis. Seu pai podia ainda estar vivo. Não se trata nunca do que aconteceu, mas de sua representação. Foi preciso encenar o seu fim. Seu teatro autobiográfico não parece lidar apenas com pressupostos estéticos, mas também éticos. Em Tebas land, o pai morto é um homem torpe, cruel, que nunca amou o filho. Conforme avança o relato, seu assassinato soa plenamente justificável. Será que isso importa? É a imagem do pai que precisava ser quebrada.

.:. O espetáculo Tebas land cumpriu temporada de 21 de junho a 21 de julho de 2019 no Sesc 24 de Maio, região central de São Paulo.

.:. Leia críticas publicadas no site a partir de O bramido de Düsseldorf, por Maria Eugênia de Menezes (montagem uruguaia); de A ira de Narciso, por Ferdinando Martins (produção uruguaia) e Valmir Santos (brasileira); e de Tráfico, por Valmir Santos (produção colombiana), todos textos de Sergio Blanco.

Tebas Land, curtíssima temporada em São Paulo. Até 21 de julho, no Sesc 24 de Maio. Quinta/sábado às 21h e domingo às 18h Compra de ingresso pelo site: https://www.sescsp.org.br/programacao/193674_TEBAS+LAND?m=0

Publicado por TEBAS LAND Brasil em Terça-feira, 25 de junho de 2019

Equipe de criação:

Autor: Sergio Blanco

Tradutor: Esteban Campanela

Direção: Victor Garcia Peralta

Com: Otto Jr. e Robson Torinni

Cenógrafo: José Baltazar

Iluminador: Maneco Quinderé

Figurino: criação coletiva

Trilha sonora: Marcello H

Assessoria de imprensa: Rachel Almeida (Racca Comunicação)

Designer gráfico: Alexandre Castro

Fotografia: Rodrigo Lopes e billnog.biz

Direção de produção: Sérgio Saboya e Silvio Batistela

Produção: Galharufa Produções Culturais

Equipe de Produção: Alex Nunes e Ártemis

Realização: REG’S Produções Artísticas

Idealização: Robson Torinni e Victor Garcia Peralta

Crítica teatral, formada em jornalismo pela USP, com especialização em crítica literária e literatura comparada pela mesma universidade. É colaboradora de O Estado de S.Paulo, jornal onde trabalhou como repórter e editora, entre 2010 e 2016. Escreveu para Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas, como o Circuito Cultural Paulista, e jurada dos prêmios Bravo! de Cultura, APCA e Governador do Estado. Autora da pesquisa “Breve Mapa do Teatro Brasileiro” e de capítulos de livros, como Jogo de corpo.

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