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Crítica

Corporalidade ‘in extremis’

19.8.2019  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Milena Aurea

Nem o apito de trem intermitente distensionou a relação do público com duas performances ao ar livre dentre as três que a artista Va-Bene Fiatsi, de Gana, mostrou na edição dos 50 anos do Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto, no mês passado. A sonoridade noturna da linha férrea, ao contrário, tornou as imagens poeticamente mais lancinantes.

Na área externa da antiga fábrica de óleo de algodão Swift, atual Complexo Swift de Educação e Cultura, por entre as paredes de tijolos baianos aparentes, a mulher negra e transgênero ritualizou a performance agbanWu (velório, na língua de origem ewe que, diga-se, alcançou o Brasil por meio do povo jeje na diáspora africana), na qual propõe uma abordagem crítica à tradição dos ritos fúnebres e ao gesto do crucifixo, símbolo supremo do cristianismo.

Já em outra área do mesmo conjunto arquitetônico, no piso seco e empoeirado de uma piscina desativada, a performance que também corrompe a grafia convencional, dZikudZikui-aBiku-aBiikus (nascido depois do nascido-morto) exprime como o corpo convive com o perigo. Um dos seus pés está amarrado a dois pneus que queimam e espalham fumaça preta, deixando o rastro de resíduos em meio ao movimento rastejante no vasto quadrado de cimento áspero, entre pedaços de pano e sapatos femininos desfeitos, tudo perfilado pelo público que acompanha em pé ou agachado, silencioso.

Isso é mais terrível que o ofício do faquir em sua cama de pregos. Ao contrário da figura desse asceta, a performer Va-Bene Fiatsi, de Gana, não finge a perfeição espiritual a partir do controle dos sentidos. Ela transmite o sofrimento físico no real esforço por esquivar-se dos vergalhões, levantar-se, agarrar-se às correntes que não a aprisionam diretamente, o que não acontece com os grilhões do Estado, das religiões, dos regimes fascistas, entre outros foros contra os quais luta por não sucumbir

Por fim, num espaço multiúso fechado, a ação de Strikethrough (Tachado) dá margem a pensar na construção individual da consciência transgênera. A narrativa não verbal e intimista estilhaça uma rasura com traços de trauma psicológico e tortura, enquanto navega pelas fronteiras coloniais. Reexamina a própria sensação de rejeições e discriminações a “outres” ou “corpos estranhos”. Barradas em áreas de verificação de passaporte em aeroportos, quando a foto do documento não batia com a feminilidade explícita das roupas e maquiagens, Va-Bene combina as identidades do masculino e do feminino como um “ser dois espirituoso”, independente de sexo biológico e transcendente às convenções de sexualidade.

Bacharel e mestra em artes pela Kwame Nkrumah University of Science and Technology, de Kumasi, a artista de pseudônimo “crazinisT artisT”, algo como artesã de loucura, capitaneia estúdio que leva seu sobrenome e no qual, desde 2011, ensaia, treina e coordena programa para artistas interdisciplinares, o perfocraZe International Artist Residency, [pIAR], incubador de performances.

Natural de Ho, cidade marcada por colonizações alemã, francesa e britânica na porção do Togo posteriormente incorporada ao atual país de Gana, a mulher trans impregna sua arte de ancestralidade independentemente de coordenadas geográficas. Assim como debate os rituais de identidade, a fluidez de gênero, o senso de pertencimento, o racismo e a colonização

O FIT Rio Preto, como se disse, acolheu três das15 obras que a profícua jovem ligada às práticas contemporâneas levantou só em 2018. Rara chance de conhecer poéticas e procedimentos vindos da África Ocidental – Gana tem cerca de 25 milhões de habitantes e até 1957 era colônia britânica.

Atemo-nos a agbanWu, cuja crítica compartilhamos a seguir, reeditada a partir da versão original publicada no site do festival do interior paulista.

Milena Aurea A performer transexual Va-Bene Fiatsi exibiu três criações em sua primeira vez no Brasil, um dos destaques da recente edição do FIT Rio Preto

*

A experiência de acompanhar a performance agbanWu (velório, na língua do povo ewe), da artista ganense Va-Bene Fiatsi, mulher negra e transexual, traz à memória a recepção à dança butô entre nós.

As artes cênicas brasileiras convivem com essa expressão japonesa pelo menos desde 1986, quando Kazuo Ohno (1906-2010) veio ao país pela primeira vez. Ele e Tatsumi Hijikata (1928-1986) foram os criadores da chamada “dança das trevas”, na década de 1950, em reverberação à tragédia das bombas atômicas lançadas sobre sua gente na Segunda Guerra Mundial.

O butô é comumente associado ao teatro de boneco, o bunraku, confeccionado em madeira, daí o “corpo morto” como um estado recorrente dos bailarinos. O corpo estático, por assim dizer, porém imerso na filosofia da transformação, construindo e desconstruindo sua identidade.

Va-Bene introduz no imaginário do público a ancestralidade africana diante da morte e a influência cristã sobre a cerimônia fúnebre em certas regiões daquele continente. Gana faz parte da África escravizada, geografia e cultura às quais o Brasil está vinculado pela gênese da opressão que foi a diáspora, a imigração forçada.

Na roda de conversa, uma das ações formativas do FIT Rio Preto, a artista informou que as religiões pentecostais são hegemônicas em seu país. O peso da crença pode ser violento quando se trata de enquadramentos biológicos, culturais, identitários ou de outros aspectos constitutivos do ser. Basta pontuar que um fenômeno sociocultural e histórico como a diáspora está na base do racismo estrutural na realidade brasileira.

Na performance em análise, a ascensão de símbolos como o crucifixo é materializada e problematizada no formato em cruz do estrado de ferro sobre o qual a artista se deita durante a ação. Essa espécie de cama mortuária é disposta no interior de um cubo de madeira vazado. Em posição horizontal, ela proporciona um oceano de sentidos complementados pelas informações que esse corpo nu enuncia antes mesmo de ali chegar ao transpor um enxame de vergalhões de ferro pontiagudos, desses cravados no concreto em obras de construção civil.

Num primeiro momento, a performer caminha vagarosamente desde o fundo do terreno, na área externa da Swift, rumo ao dispositivo cenográfico, uma instalação em si. A imagem inicial é perturbadora. Ela está coberta de argila, do cabelo rastafári aos pés, uma substância terrosa que também sugere ser o material que regurgita aos poucos.

Assim, põe da boca para fora, sempre sem exprimir palavra, o enojamento pelas formas e linguagens da violência que pessoas como ela, ou não, enfrentam diuturnamente nos espaços públicos, privados, íntimos. É da boca também que o líquido viscoso bege seguirá escorrendo após expelir os resíduos que estufavam as bochechas.

Milena Aurea Em ‘agbanWu’, Va-Bene surge entre vergalhões de ferro pontiagudos e emula a imagem de Cristo na cruz; a brasileira Dani Ribeiro foi integrada à instalação

As unhas pintadas em vermelho chamam a atenção nas mãos trêmulas por meio das quais tenta agarrar-se à corrente estirada no alto da instalação e que a permitiria reerguer-se. Indício de apego à vida nessa subversiva simbolização da morte que se dá pela extrema vitalidade do trabalho da performer, oposto ao in extremis judaico-cristão, os últimos suspiros.

O corpo cênico morto e o corpo cênico presente surgem ambos dilatados e conflitados. Espasmos e êxtases saltam da interioridade da pele e testam os limites. Sob a ótica ocidental, esses impactos encontram guarida no rito. O francês Antonin Artaud (1896-1948) via no risco a tarefa essencial das artes da cena, valorizando vestígios e secreções como estágios da pesquisa de linguagem. Para o pensador e criador, a simples pronuncia da palavra vida não designa aquela conhecida pelo exterior dos fatos, e sim pelo “frágil e travesso lar no qual nos tocam as formas”.

A meticulosa construção do cubo de madeira, trançado por correntes, tem ao centro a cruz fria que apara o corpo e é circundada pelas pontas agudas. Esse adorno exacerba a coroa de espinhos de Cristo. Em vez do ramo, o ferro. Em vez da cabeça, o corpo inteiro envolto em espetos – pelo menos na visão do público, à meia altura, que também não está longe da iconografia do arame farpado.

Isso é mais terrível que o ofício do faquir em sua cama de pregos. Ao contrário da figura desse asceta, Va-Bene não finge a perfeição espiritual a partir do controle dos sentidos. Ela transmite o sofrimento físico no real esforço por esquivar-se dos vergalhões, levantar-se, agarrar-se às correntes que não a aprisionam diretamente, o que não acontece com os grilhões do Estado, das religiões, dos regimes fascistas, entre outros foros contra os quais luta por não sucumbir.

No plano baixo do cubo, são avistados roupas, sapatos e adereços femininos, alguns chamuscados. É o nicho mais diretamente relacionado à questão da transgeneridade. Os objetos transmitem a passagem do tempo e a secular tentativa de apagamento do corpo social feminino nas sociedades.

A contadora de histórias Dani Ribeiro senta-se no centro do chão, entre os tecidos e calçados, para tocar flauta durante toda a performance, uma melodia contínua que ganha tons minimalistas. Figura e sonoridade denotam um ponto de fuga dentro da obra pungente. O produtor brasileiro Rodrigo Fidelis conta que a brasileira, então integrante da equipe de alimentação no camarim de Va-Bene, foi escalada de última hora para substituir uma flautista. Não ficou devendo em níveis de concentração e de desempenho musical a contento para a aventura que se permitiu.

Milena Aurea De 2001 a 2018, a artista concebeu pelo menos 15 trabalhos que abordam tópicos como transgeneridade, racismo e colonização

Criada e estreada em 2018, agbanWu pode dar a ideia de ocupação penosa, de mortificação, mas logo revela a solidez das partituras físicas em chaves crítica e poética. Na tradição de parte do Ocidente, de novo, soa incômodo testemunhar a morte de perto. Como se fosse possível apagar a interrupção definitiva da vida humana, animal ou vegetal. A imanência da dor e da finitude em Va-Bene é tamanha que induz à sensação de que, de fato, há um caixão sendo velado.

As dezenas de espectadores que afluíram no início da performance, por volta das 18h30, não passavam da contagem dos dedos das mãos no encerramento, às 20h30, se descontados os trabalhadores a serviço do festival. Pondera-se que muita gente correu para assistir a outros espetáculos programados naquela noite. Mas não é difícil concluir que uma parcela significativa não se dispôs a contornar o mal-estar.

Essa exibição costuma se estender por cerca de quatro horas, mas durou a metade. O frio intenso e fora da curva neste julho rio-pretense deve ter influenciado o desfecho. Dez minutos antes, o diretor técnico Martin Toloku subiu uma das escadas de madeira do cubo, estendeu a mão para a performer levantar-se, mas ela não cedeu, seguiu retesando os músculos enquanto os olhos eram o cume calmo na sua face preta – a essa altura parte dela já descoberta de lama cênica.

Minutos depois, ela ergueu-se, perseverante. Desceu lentamente. Colheu a mão da flautista. Apoiou-se em seu braço e ambas caminharam até o portão do início no terreno. Nesse momento a audiência a viu cambalear, cair e ser amparada pela equipe de produção com um cobertor.

Com a silente e transgressiva corporalidade que vem demonstrando no repertório dessa inédita viagem ao Brasil, a atriz salta do sacrifício à ascese, esta de cunho filosófico ou sagrado. A arte encontra seu jeito de sorver das práticas e disciplinas caracterizadas pela austeridade e autocontrole a sua busca pela verdade via corpo ou espírito. Se é que há uma verdade, como sabemos, então terá sido antes a minha, a sua e a da Va-Bene em estado de epifania.

.:. Texto brevemente editado a partir do original publicado no contexto do Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto, o FIT Rio Preto, de 4 a 13 de julho de 2019.

.:. O jornalista viajou a convite da organização do evento.

.:. Acesse o site da artista ganense.

Equipe de criação:

agbanWu

Criação e performer: Va-Bene Fiatsi

Direção técnica: Martin Toloku

Flautista: Dani Ribeiro

Produção no Brasil: Rodrigo Fidelis

Vivian Gradela ‘Strikethrough’ dá margem a pensar na construção individual da consciência transgênera
Jorge Etechebe Em ‘dZikudZikui-aBiku-aBiikus’, o fogo e a fumaça do pneu impactam visual e sensorialmente
https://www.facebook.com/festivalriopreto/videos/434724640414650/

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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