Crítica
25.9.2019 | por Valmir Santos
Foto de capa: Milena Aurea
Ao definirem seu Romeu e Julieta como uma intervenção sobre o texto do final do século XVI, os criadores do grupo boliviano Kiknteatr fazem da peça de Shakespeare uma plataforma para falar de si enquanto sujeitos, artistas e cidadãos de um país onde sabem o quanto as desigualdades de classe, gênero e raça determinam o futuro das crianças e jovens, vide os congêneres sul-americanos.
Cerca de três séculos antes das vicissitudes do amor romântico passarem a ser abordadas nas artes e na filosofia, a partir do século 18, “Romeu e Julieta” já versava sobre o quanto a idealização pode ser tóxica. Escrita entre 1593 e 1594, o enredo do bardo inglês tem lastro no ódio realimentado pelas famílias dos amantes que, desobedientes, morrem pela impossibilidade de levarem adiante sua paixão.
O consumo de drogas e a rebeldia típica da idade, condições parelhas à de Diego Aramburo/Romeu, além do abuso sexual sofrido na infância, no caso dela, são algumas das situações na fala reparadora de Camila Rocha/Julieta na obra do coletivo Kiknteatr
As leituras contemporâneas dessa narrativa de apelo universal, contudo, mostram-se cada vez mais propensas a aprofundar questões sociais e políticas subjacentes à tragédia do amor juvenil lá nos conformes da Idade Moderna.
A atriz Camila Rocha e o diretor e dramaturgo Diego Aramburo projetam-se nos personagens mais populares de Shakespeare para encontrar suas próprias entranhas. Na condição de namorados no passado, apontam tensões que Julieta, de 13 anos, e Romeu, 16 anos, tiveram com a sociedade adulta da época e as correlacionam às próprias experiências adolescentes, artistas hoje com 30 e 40 anos, respectivamente.
Para tanto, o recorte é feminista. A Julieta de Camila performa sobre uma extensa mesa coberta de toalha branca. Essa passarela separa espectadoras de um lado e espectadores, de outro. É ornada por pequenos copos transparentes de um líquido que pode ser leite, vertido por ela ao longo das ações. A beleza e o corpo de bailarinas (por vezes seminua) vêm embalados pela cor branca nos figurinos, feito o deserto de sal de Uyuni ou a cocaína refinada a partir da folha da coca, outra referência “in natura” na Bolívia.
O consumo de drogas e a rebeldia típica da idade, condições parelhas à de Aramburo, além do abuso sexual sofrido na infância, no caso dela, são algumas das situações na fala reparadora de Camila/Julieta.
Como no enredo original, em que vai ao exílio para reencontrar Julieta, seguindo o plano fracassado de um frei, o Romeu de Aramburo fica na periferia da cena. Pontua falas num microfone, lateral, ou é visto num plano alto e distante do espaço não convencional. É ele quem vai informar estatísticas atuais da violência que atinge crianças e adolescentes de seu país.
Ódio, prazer, doçura, sonhos e pesadelos oscilam as reflexões de Julieta acerca daquele que lhe apresentou o amor e, com esse sentimento do tamanho do mundo, a morte. Daí a vontade de trazê-lo agora a seus pés, feito um cachorro, posto que Romeu mimetizaria a prepotência masculina ao longo da história da humanidade, a produção de sofrimento que está no conflito de interesse moralista dos Capuleto e dos Montecchio. A peça shakespeariana dá a entender que os duelos são comuns. Romeu mata o pretendente de Julieta, Páris, e inclusive o amigo Mercúrio, por este matar o primo da amada, Teobaldo.
Pois Julieta narra a ruptura desse círculo vicioso. Quando Romeu tenta fazê-la de títere, ela puxa outros fios invisíveis. Afinal, conheceu Romeu num baile de máscaras e agora arranca as máscaras da perversão da sociedade patriarcal, de ontem e de hoje.
A partitura sonora do violoncelo executado ao vivo pela musicista Ariana Stambuk faz o contraponto à visceralidade de Camila Rocha. A moldura corporal de uma bailarina nas pontas dos pés, girando como na caixinha de música, é explodida pelo veneno e pelo sangue, substâncias cênicas que as gazes e os emplastros não podem estancar ou conter, assim como a energia irrompida por meio da presença da atuante.
Nesse Romeo y Julieta de Aramburo, título do espetáculo que também critica o código civil boliviano que obriga a mulher a adotar o sobrenome do marido na certidão de casamento, Camila e o diretor afirmam a sobrevivência (ou seria a reinvenção?) por meio da arte em sua pátria, a exemplo desse teatro de paixão que parodia canções românticas de língua inglesa, reproduzidas mecanicamente. Quem sabe eles têm ciência de que a essa altura da vida “em nosso amor de velho já não se pode confiar”, como dito ao final. A revolução juvenil não se repete como farsa nem como tragédia. Ela é, vente a esperança ou o desespero, com a autonomia pessoal que para sempre se tentará reencontrar.
.:. Escrito no contexto do Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto, o FIT Rio Preto 2019.
.:. O jornalista viajou a convite da organização do evento.
Equipe de criação:
Texto: Diego Aramburo (intervenção na obra de Willian Shakespeare, sobre tradução própria)
Direção e encenação: Diego Aramburo
Com: Camila Rocha, Diego Aramburo
Violoncelo: Ariana Stambuk
Coreografía: Camila Rocha
Concepção espacial e iluminação: Diego Aramburo
Vídeo: Lía Michel
Desenho de figurinos e arte: Diego Aramburo
Cenotécnico: Jorge Alaniz
Fotografía: Sandra Zea e Ignacio Prudencio
Agradecimentos a: Eduardo Calla, Álvaro Manzano e especialmente a Lía Michel e Jorge Alaniz, com os quais se criou a versão inicial de 2007
Realização: Kiknteatr
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.