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Artigo

Estado de crítica

23.3.2020  |  por Marco Antonio Rodrigues

Foto de capa: Lenise Pinheiro

Da sala de ensaio que coabito há décadas à experiência da escrita ensaística aqui ensejada, este artigo comparte angústias, lutas e belezas de quem ama as artes da cena e a partir delas aprendeu a cultivar o discernimento crítico da realidade.

1. Estado geral

Andava às voltas com este escrito. Para maior credibilidade, pensei em usar a celebre expressão em latim do poeta romano Horácio (65-8 a.C.), agora definitivamente imortalizada por ministro de Estado: Parturiunt motes, nascetur ridiculus mus! Em bom brasileiro: “A montanha pariu um rato”.

De repente, veio-me à cabeça: UT nascetur nazi, em “bom nazista”. De repente não, porque uma categoria inteira, uma comunidade tão expressiva, não pare um nazi assim, da noite para o dia. São anos de trovoadas e relâmpagos, toda uma anunciação da tempestade no horizonte.

Rigorosamente, isso não tem nada a ver com a questão original suscitada. Além do que muita gente já abordou tal assunto com mais propriedade.

Do que trata esse rascunho, afinal? Acontece que nem eu mesmo saberia dizer. Ou melhor, saberia, mas fico aqui ensaiando a forma – a forma que traduza a estupefação ou a dificuldade de pensar o limite da expressão.

Formas de linguagem que interferem na comunicação? Ou a interdição da comunicação como forma de linguagem?

A disputa pelo imaginário simbólico é dura. Em todos os momentos em que a arte e a cultura avançaram havia movimento, junção de forças. No nosso campo, o que está em jogo não são decisões cênicas formais, mas imaginação social. Na contemporaneidade, a atomização, a segmentação de pautas é uma característica central. Por conta da sobrevivência, a resistência é um movimento que leva ao encolhimento, a uma certa atomização, a no máximo à reunião em pares. Precisamos inventar formas de existência, porque a resistência é reativa e pouco propositiva

No início da escrita, uma frase meio pomposa surgiu logo de cara: “Talvez a prática cotidiana e dialética com a feitura da cena crie para mim um vício de análise de conjuntura quase autista”.

De repente um alter ego salvador me alerta, “Mas a alusão ao autismo pode soar preconceituosa, afinal as artes cênicas têm sido historicamente um lugar de acolhimento de quem tem deficiência neurológica.”

Na verdade, eu pensara o uso da expressão como forma de sublinhar positivamente a obsessão e a disciplina. Lembro inclusive das figuras do Messi e do Anthony Hopkins, talentos que a humanidade toda admira. Claro que o fato de o teatro ser um lugar de acolhimento foi um dos fatores para que eu, com minhas neuroses, me sentisse desde sempre abrigado por ele. Portanto, jamais faria uso da expressão de forma pejorativa. Porque não está aí o problema de forma. Ou de conteúdo? Afinal, a língua não apenas define as coisas, em sua conotação imediata, mas conceitos criados pelo espírito, pela poesia. Em todo caso, melhor esquecer a imagem.

Por outro lado, o teatro é tanto o lugar de acolhimento das muitas deficiências e inclusive de desvios de personalidade que eu não sei até agora se foi o teatro que pariu o nazi ou o nazi que se escondeu atrás do teatro tentando, em sua megalomania, “repari-lo”.

Se, novamente, essa interferência ataca num escrito que não tem nada a ver com o peixe, por que será que o assunto fica rondando a cabeça? Melhor enfrentá-lo, mesmo que numa rápida digressão.

2. Estado anterior

A pretexto deste escrito, um bom amigo, dramaturgo-pedagogo dos melhores, me lembrou de uma entrevista com o filósofo Paulo Arantes publicada no jornal O Estado de S. Paulo em 2007. O texto situava, com muita ciência, um momento especial do teatro de grupo que desde meados dos anos 1990 tentava ressurgir do incêndio da ditadura. Primeiro citando a Mariangela Alves de Lima (à época crítica do Estadão), o Paulo disse que pela primeira vez as artes cênicas se articulavam como um segmento social, raciocinando em seguida:

“Nos tempos que correm não é pouca coisa converter consciência artística em protagonismo político. Foi uma vitória conceitual também, pois além de expor o caráter obsceno das leis de incentivo, deslocaram o foco do produto para o processo, obrigando a lei a reconhecer que o trabalho teatral não se reduz a uma linha de montagem de eventos e espetáculos. Nele se encontram, indissociados, invenção na sala de ensaio, pesquisa de campo e intervenção na imaginação pública.”

E continuou:

“Se fosse possível e desejável resumir numa única fórmula o destino e o caráter do teatro de grupo de hoje, diria que é o teatro desse desmanche da sociedade nacional. Ou por outra, mais exatamente ele é o teatro do desmanche que já ocorreu e está sendo administrado por um outro e inédito pacto de dominação. A certa altura da Oresteia, que está sendo agora recortada pelo Folias [espetáculo Oresteia, o canto do bode, de 2007], o Corifeu-clown anuncia que sua geração não se julga mais predestinada a refazer o mundo, mas que sua tarefa maior consiste justamente em ‘impedir que o mundo se desfaça’.”

Mais adiante, ponderou:

“Eu sinto que o movimento teatral é como se fosse uma espécie de arquipélago de pequenos grupos com capacidade de intervenção pública, que esperam um momento para se aglutinar, se aparecer um movimento que tenha envergadura política para propor uma alternativa. Isso pode acontecer. Acho que está no limiar.” [Paulo Arantes: um pensador na cena paulistana, entrevista a Beth Néspoli publicada às páginas 8 e 9 do Caderno 2 do Estadão, em 15 de julho de 2007]

Lenise Pinheiro Ailton Graça, Lui Seixas e Pedro Lopes na cena do fuzilamento em ‘Solidão’ (2016), texto de Sérgio Roveri inspirado no romance ‘Cem anos de solidão’, de García Márquez

O Paulo não é sabidamente um otimista, portanto a coisa era mesmo forte. Mas há outras curiosidades no entorno que chamam a atenção: O Estadão tinha a Mariangela Alves de Lima como crítica teatral regular (alguns anos depois sumariamente despedida por telefone!); tinha a Beth Néspoli fazendo jornalismo “cênico”!; e por último a entrevista foi publicada em duas páginas do caderno cultural. Desde então passaram-se mais de 12 anos e os coletivos não se aglutinaram; não construímos e nem apareceu movimento político para propor uma alternativa. As mesas da crítica e do jornalismo teatral nas redações dos grandes jornais nem existem mais; e, pior, o Maia morreu! [O ator e dramaturgo Reinaldo Maia, 1954-2009].

Alguns anos atrás, estávamos ensaiando Solidão [2016] no Folias d’Arte. Era domingo, dia de eleição, primeiro turno. No fim da tarde chegou a notícia: João Doria ganhara de rabo em pé a eleição para prefeito. Ele levou em todos os distritos de São Paulo! Não que algum de nós entendesse como socialmente importante o trabalho artístico. Mas, porra, éramos quinhentos grupos espalhados por toda a cidade. Fazendo um teatro crítico, conectado à realidade! O Doria?! Perdendo em todos os distritos, pensava eu! [Fernando Haddad (PT0] ficou em segundo lugar na votação, seguido de Celso Russomanno (PRB) e Marta Suplicy (PMDB)].

E o Paulo, na mesma entrevista lá atrás, pensava: “(…) é forte o sentimento de que a tradição crítica brasileira migrou e renasce atualmente, na cena redesenhada por esses coletivos de pesquisa e intervenção”.

Bem, hoje eu não faço mais parte do Folias, a não ser bissextamente, colaborando com algum trabalho ou outro a convite de camaradas meus de lá. Acompanho o movimento de teatro de grupos com boa frequência, mas sem a mesma intimidade. E contabilizo, como todos, as enormes tragédias desta década, desde o impeachment da Dilma [em 2016] até o crescimento da popularidade de Bolsonaro, Doria e afins.

Nesse momento de sufoco, fico pensando qual é o nosso pedaço.

3. O estado a que isso chegou – I

Recordo-me de um episódio da Revolução dos Cravos: na noite de 25 de abril de 1974, o capitão Salgueiro Maia [1944-1992] acorda as tropas em Santarém e faz um discurso a seus integrantes que ficou famoso:

“Há diversas modalidades de Estado: os estados socialistas, os estados corporativos e o estado a que isso chegou! Ora, nesta noite solene, vamos acabar com o estado a que chegamos. De maneira que quem quiser vem comigo para Lisboa e acabamos com isso. Quem é voluntário sai e forma. Quem não quiser vir não é obrigado e fica aqui.”

Todos formaram.

O estado a que isso chegou… Nesse ambiente rarefeito fico sinceramente pensando qual é a nossa responsabilidade no assunto.

Faço parte de uma geração que escolheu criar movimento em torno das artes cênicas. Filósofos, pensadores, críticos, artistas, fazedores: eram todos criadores. À época abandonamos o sentido e a prática da resistência pelo sentido e prática da existência.

Um pouco de história não faz mal a ninguém. Podemos repassar aqui alguns dos pontos que a prática no terreno da cidade conflagrada, a experiência, a reflexão, o convívio com os filósofos, o estudo, o conhecimento, enfim, pautavam e vacinavam o nosso fazer desde os anos 1990. A História era nossa parteira, nossa musa, nossa namorada. Sem esquecer que a parteira dela era e é a violência. Assim, não custa nada enumerar algumas constatações que mal ou bem norteavam (na minha leitura) esse coletivo de coletivos:

a) Tínhamos absoluta consciência de que o nosso fazer, a reflexão e a interpretação da contemporaneidade, justamente por seu caráter público, de interesse público, não tinham espaço no mundo da mercadoria. Portanto, era preciso aldear, criar tribos, relações íntimas entre nós e junto às comunidades em que atuávamos de forma a que pudéssemos intervir no dia a dia. Resgatar e criar laços de solidariedade e humanidades. Fazer movimento;

b) Isso determinava a estética: autonomia no trabalho do intérprete, parcos recursos materiais, produção cooperativada, imaginação política, reinvenção da cena apoiada na tradição, na performance, no roteiro, na ideia. Criação coletiva. Produção de pensamento veiculada através de vídeos, publicações, livros, seminários. Ocupação da cidade, das praças, dos baixos de viaduto. Abertura de sedes próprias ou alugadas visando basicamente atender a duas necessidades: tempo de pesquisa e manutenção de núcleos artísticos estáveis. Posso falar do Folias: Otelo (2003) levou um ano até chegar à cena; Oresteia, salvo engano, dois;

c) Havia absoluta clareza de que as políticas governamentais deveriam atender aos interesses públicos, e não aos mercadológicos, à época hegemônicos, institucionalizados por meio da Lei Rouanet [mecanismo federal de isenção fiscal às empresas que invistam em cultura]. A Rouanet nos deu norte: não podíamos mais permanecer à deriva em relação aos programas de “incentivo” às artes, aqui e ali editados eventualmente pelos governantes de plantão. Deveríamos também arrancar dos legisladores instrumentos legais perenes, com orçamento direto do Tesouro, que fomentassem as artes de interesse público. Nadando na contramão, como aponta o Paulo Arantes, conseguimos impor ao Estado liberal coisas como o Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, a Lei de Fomento, ou o Programa de Ação Cultural, o ProAC, do Estado de São Paulo. Estes, por serem leis, ainda hoje são mantidos também por força das lutas da categoria e contra a vontade dos governantes e dos burocratas de plantão;

c) Em suma, não nos faltava a consciência histórica de que o mundo do trabalho estava rapidamente sendo devorado pelo mundo da mercadoria; que ao estado burguês, mesmo em governos populares como os de então, nossa presença era, quando muito, um laissez-faire legitimando uma “democracia” de fachada; que o socialismo, então nosso horizonte, para o conjunto da sociedade era quase um xingamento; que para as mídias institucionais interessávamos como animais de zoológico; que para a indústria cultural éramos sempre uma reserva (boa e superlativamente especializada) de mão de obra barata;

Lenise Pinheiro ‘Êxodos – O eclipse da Terra’ (2010) foi a última encenação de Marco Antonio Rodrigues no grupo Folias d’Arte, do qual foi cofundador em 1997 e hoje faz colaborações bissextas

d) Permeando tudo e todos, adivinhávamos desde sempre que a eterna conciliação nacional, o espírito bom-mocismo que havia permitido na contemporaneidade a conciliação de opostos – cujo exemplo magno havia sido a Lei da Anistia de 1979, que anistiava assassinos e torturadores –, na próxima esquina cobraria com juros internacionais a sua fatura;

e) Não sei se todos, mas muita gente, enfim, acreditava que só o espírito épico podia vacinar o romantismo dramático que atravessa desde sempre a nossa cultura. E que embora, como dizia Bill Clinton, a economia global tivesse o mesmo valor científico da lei da gravidade, outros mundos poderiam ser possíveis. Poderiam e podem, penso que continuamos a acreditar nisso.

4. Estado entre parênteses

Convém aqui abrir parênteses. Como acreditávamos e acreditamos, sem orfandade ortodoxa, numa boa filiação brechtiana, não renunciamos a uma significativa dose de malícia e ironia. Sem desconsiderar a gravidade dos assuntos, para uma arte antiburguesa, sem humor escatológico a vida perde a graça. No Folias, não comungávamos muito, ou quase nada, ou nada, de algum caráter messiânico ou educativo, no sentido mais formal e catequético do termo que o teatro pudesse pretender. Portanto, como gênese e segunda pele escolhida, penso ainda que a dialética é nosso alfabeto e sintaxe. É tarefa da cena muito mais interrogar-se do que afirmar, ensinar e responder.

Mas, afinal de contas, “e o estado a que isso chegou?”.

Talvez meu diagnóstico realista – quem sabe porque pessimista o prognóstico – tenha de ser colocado em dúvida como acontece com qualquer narrador da estirpe de Shakespeare, de Machado de Assis ou, para não ir tão longe, de Chico Buarque. Não que eu não reconheça grandes méritos no teatro que vejo ou me acumplicio, mas, sinceramente, não percebo a mesma força, a mesma sabedoria, a mesma ciência do movimento do início do século.

Inventariar um pouco esses motivos, por mais preguiça que me traga, acaba por ser um exercício catártico. Mas é legítimo desconfiar: afinal, hoje, sem porto seguro, também barganho, mercadejo, contrabandeio meio avulso, aqui e ali. Por outro lado, tento continuar a produzir a partir das angústias e da compreensão em que atuo, atuamos, no mundo em que vivemos.

Nessa perspectiva meio esquizofrênica divisam-se dois Brasis: um que tem lutas e pautas muito definidas, outro que radica a segregação social da pobreza, o apartheid, e sequer faz ideia dessas lutas, muitas vezes assumindo bandeiras que lhe parecem verdadeiras e com as quais se identifica, como se de fato significassem os seus interesses.

Na medida que a conciliação (ou a omissão) pôde, ou pode, parir os nazis, a necessidade da reflexão sobre alternativas possíveis, alternativas à vista que hão de existir, nunca foi tão urgente. Talvez nem na ditadura. De repente essa necessidade de aldeamento, tribalização, movimento, sugere norte, direção, articulação dos pensares. O terreno é pantanoso e ao mesmo tempo desértico e talvez por aí haja um todo por fazer

Em minha opinião, há toda uma questão hoje envolvendo os grupos e a forma de produção cooperativada. Talvez a instituição da Lei de Fomento e de outras iniciativas de apoio e sustentação financeira acarretaram uma consequência perversa: justamente, e por paradoxo, a própria profissionalização dos fazedores, o que às vezes ocorre de maneira precária.

Os grupos de certa forma passaram a ser vitrinas para os seus artistas, que acabaram por ser cooptados pelo show business. Como a própria forma de produção beneficia a explosão de inúmeros talentos, absolutamente exponenciais, a indústria cultural, que tem baixa capacidade de formação artística – até pelas características de exiguidade de tempo de produção –, acabou recrutando nos coletivos mão de obra ultraespecializada e de ponta.

Com isso, o trabalho em grupo que se baseava estruturalmente na pesquisa continuada em longos períodos começou a se esvaziar e a ganhar uma rotatividade expressiva de criadores. O último trabalho que fiz no Folias como integrante orgânico foi Êxodos – O eclipse da Terra (2010): levou nove meses de pesquisa e cumpriu temporada de apenas dois meses por impossibilidade de agenda do elenco. Devido a várias incapacidades para lidar com essas novas realidades, acabei também saindo, mundo afora, mascateando cenas.

Então onde é que se perdeu o pé das coisas?

Entendo que as pretensões do movimento que, em última análise, propugnavam como horizonte – ainda que distante – a ruptura com o caráter mercantil da sociedade, essas pretensões foram sendo rapidamente rebaixadas nos últimos tempos. Claro que isso se articula com a reascensão do neoliberalismo a partir do golpe na Dilma (2016) e a desarticulação do sindicalismo, do associativismo e de todas as organizações menos emblemáticas de estruturas coletivas, exceção feita aos movimentos sociais em toda a sua diversidade.

No nosso campo são perceptíveis a sobrevivência e as vitórias acachapantes do mundo da mercadoria sobre o mundo do trabalho, como irônica e precisamente anota o Roberto Schwarz, (já lá atrás, em Sequências brasileiras, livro de 1999):

“(…) pensando melhor, veremos que a intelectualidade nunca esteve tão engajada. Rara mesmo, em nossos dias, é a torre de marfim. Acredito aliás que a crítica independente, sem patrocinador ou interesse direto à vista, é o que mais está nos fazendo falta. Quase todos estamos empenhados, suponhamos, na administração pública, nalgum partido, num departamento da universidade, numa firma de pesquisa, numa redação de jornal etc. com o objetivo nem sempre muito crível de usar os nossos conhecimentos em favor de alguma espécie de aperfeiçoamento e modernização. Assim, um dos impulsos essenciais à ideia de engajamento que mandava trazer a cultura dita interessada ao comércio dos interesses comuns, se realizou plenamente. O que não ocorreu foi a esperada diferença democrática que esta descida à terra faria. Na falta dela, o compromisso social dos especialistas, incluída aí a dose normal de progressismo, é o mesmo que ir tocando o serviço, a combatividade do engajamento pode ter algo de um lobby de si próprio.”

De  minha parte, ponho a carapuça. Não como intelectual, que não sou, mas como fazedor, professor, quebra-galho. Esse tocar o serviço, cada um por si, sabe quem por todos, é o que, na minha opinião esfrangalhou o movimento em mais uma nova e fácil vitória do capital.

Lenise Pinheiro O espetáculo ‘Oresteia, o canto do bode’ (2007) marcou os dez anos do Folias e entrelaçou peças de Ésquilo a questões da cidade, do teatro e da América Latina

Por outro lado, entre os vários efeitos perversos dessa modernização, percebo que avança também, ao longo desses anos, no terreiro da cena, uma certa linguagem (que andava meio encolhida, tímida até) digamos supostamente experimental, meio abstrata, distante da realidade, mas com certo ar progressista, muito afinada com vanguardas europeias ou americanas do mesmo quilate. Em geral de conteúdo muito revisionista, quando não reacionário mesmo: aqui e ali surgem, subterrâneas ou não, nos espetáculos, mensagens anticorrupção, pegando carona nas políticas populistas que, como desde 1964, começavam a incendiar o movimento de rua capitalizando os protestos populares na linha dos retrocessos político e social hoje hegemônicos. Na perspectiva das publicações começam a surgir, a pretexto de uma teatralidade expandida, obras defendendo uma forma esvaziada de conteúdo, num “tautismo” [processo de comunicação sem personagens e que só leva em conta a si mesmo] que remete a complexas operações resultantes em manifestações cênicas por vezes atrasadas e primitivas. Isso reafirma, como discurso de fundo, a impossibilidade de superação, como se as questões que configuram a nação fossem desde sempre de ordem ontológica e não conjuntural.

5. O estado a que isso chegou – II

Mais uma abertura de parênteses, talvez longo: os governos populares de Lula [2003-2011] e Dilma [2011-2016] de fato trouxeram inúmeros benefícios de ordem econômica para grande parte sempre sofrida da população. Como é de conhecimento público mundial, dezenas de milhões de brasileiros foram resgatados da condição de miséria absoluta a que vinham sendo submetidos durante séculos. Mas, se a justiça social foi promovida, o mesmo não se pode dizer com relação a uma cidadania cultural, infelizmente. Porque o enfrentamento das mazelas do sistema capitalista foi sempre evitado, com todas as suas benesses ao sistema bancário e de financeirização do capital. Na “Carta ao Povo Brasileiro” [2002], em que se credenciava junto aos extratos médios da população à governança, Lula já anunciava como candidato ao mandato que venceria a tragédia futura. Assim é que, ao final da Oresteia, novamente evocada, o Corifeu-palhaço vaticinava:

“Mas por que não vem a desejada paz confortadora?… Livrando desse implacável pânico? Os meus olhos veem a pacificação, mas minha alma em sobressalto descrê de tempos tão tranquilos. Agora chegou o fim? A salvação?… Onde se deteve ou se findou a ira, a ira precursora da vingança?!”

Na sociedade, já chegando nos dias de hoje, a crise local vai produzindo mais e mais insatisfação com os governos populares. O desemprego cresce, a pobreza volta a aumentar, a criminalidade e a violência urbana explodem e, por consequência, a sensação de insegurança junto às populações. O imaginário simbólico começa a ser sequestrado por discursos messiânicos, conservadores, belicistas que acusam a esquerda e as políticas sociais e de inclusão – implementadas em toda a história do país apenas nos primeiros anos do século – por todas as misérias da terra.

Paradoxalmente, reatualizando as velhas práticas de colonização e ainda por conta da crise global, São Paulo vai ganhando mais e mais espaço como destino e porto da produção cultural internacional. Grandes eventos aqui têm sede criando a impressão de uma modernidade – selo das grandes metrópoles que desde sempre inspiraram nosso olhar bovarista de terceiro mundo. Boa parte também da nossa melhor produção cênica se desloca com sucesso por outras línguas, causando um descolamento das questões locais.

O espaço vai ficando cada vez mais confinado para o teatro que interessa, aquele de caráter público que se especializa na interpretação da realidade, claro que conectada aos dilemas do mundo contemporâneo e à história do país. Uma história, vale lembrar, que tem como peculiaridades colonização violenta e capitalismo ultramoderno, que lançou e lança mão da escravidão, da pauperização, do trabalho precário para seu desenvolvimento. Em resumo, a economia como centro do mundo, razão de ser do Estado e da sociedade.

Este é um ponto fora da curva, central na percepção do teatro de hoje: as instâncias institucionais e partidárias de esquerda desconsideraram historicamente assuntos centrais, questões identitárias, que no cotidiano sombrio causavam e causam todo tipo de patologia social. Só muito recentemente, por conta dos movimentos da sociedade civil, o racismo, as identidades de gênero, a hegemonia do patriarcado, a ecologia, os direitos das populações autóctones passaram a se constituir seriamente em assuntos a serem enfrentados na busca de uma sociedade minimamente democrática. Descontada aí a sensibilidade dos governos populares com relação à centralidade de providências nesse sentido, o que resultou efetivamente numa mudança de normas refletida em políticas educacionais e de inclusão que começaram a mudar e a libertar pouco a pouco os costumes. O problema é que a alienação dessas temáticas na centralidade da luta de classes demorou tanto a ser encarada nas políticas de formação do campo progressista que sua inclusão nos últimos 20 anos não foi suficiente para que um salto humanista se consolidasse nessa direção. Muito ao contrário, a direita que sempre impôs à nação a moeda da tradição, família e propriedade capitalizou e catalisou os avanços como ameaças à pouca estabilidade social ainda existente, quando não como obstáculos ao progresso e aos direitos sacrossantos do contribuinte.

Lenise Pinheiro Rafaela Penteado, Joana Mattei, Pedro Lopes e Aílton Graça contracenam na cena do massacre em ‘Solidão’

No imaginário de uma população corrompida por séculos de preconceito, acossada por uma instabilidade de toda a ordem, o tiro foi fatal e o retrocesso vertiginoso em nova vitória humilhante do capital. Também foram naturalizados temas e questões em que o bom senso já avançara e aparentemente superara, como a barbárie da tortura, a selvajaria da violência policial e a impiedosa menoridade penal. Causas de interesse público ao estado laico como aborto, legalização de drogas e distribuição de renda sumiram rapidamente do noticiário geral, sufocadas pelas políticas e propostas recessivas de um neoliberalismo autoritário e discriminador em torno do qual se reuniram todas as forças conservadoras e reacionárias, rompendo o asfalto e o verniz da “cordialidade e simpatia.”

Pouco importa a grandes segmentos da população que o chefe de Estado e sua gang sejam sexistas, misóginos, favoráveis à tortura, aos regimes ditatoriais, à eugenia. Tanto faz. Disputada furiosamente pelas mídias pequenas e progressistas e pela arte engajada, a pauta cultural hoje sofre derrota atrás de derrota. Para considerável da população aparentemente está satisfeita com os avanços da “uberização” e as promessas de melhoria econômica comprovadas pela popularidade de um governo incompetente e autoritário.

A disputa pelo imaginário simbólico é dura. Em todos os momentos em que a arte e a cultura avançaram havia movimento, junção de forças. No nosso campo, o que está em jogo não são decisões cênicas formais, mas imaginação social. Na contemporaneidade, a atomização, a segmentação de pautas é uma característica central. Por conta da sobrevivência, a resistência é um movimento que leva ao encolhimento, a uma certa atomização, a no máximo à reunião em pares. Precisamos inventar formas de existência, porque a resistência é reativa e pouco propositiva. Note-se a esquerda partidária: não consegue se juntar nunca, faz tudo que pode para se credenciar junto à população com bom-mocismo e simpatia, um segmento tentando ser confiável mais que o outro, um atacando o outro, todo mundo dono da verdade. Agora o outro espectro: já viu a direita não ter uma visão totalizante, não se conectar ao movimento do capital global ou não fechar os olhos para a brutalidade e para a ignorância, por mais sofisticados que possam aparentar esses sintomas? No Brasil de hoje é a direita que comanda e expõe a radicalidade das ideias, por mais estapafúrdias, terraplanistas e reacionárias que sejam.

Como exemplo: nas últimas eleições à Presidência da República a direita tinha uma proposta clara relativa à delinquência pública: atirar nas cabecinhas. À esquerda sobrava uma alternativa clara e radical: distribuição de renda e educação humanista. Só que distribuição de renda implica enfrentamento do capital, do sistema bancário, da concentração absoluta de renda, da financeirização global etc. Mas aí, supostamente, não se pode avançar: é questão pétrea, por conta da lei da gravidade do Bill Clinton. Venceu quem radicalizou as ideias e barbaramente apontou a “solução” para o dia a dia.

6. Estado de poesia

Voltando à cena, ao palco, entendo que pensar e se mover nesse contexto, acumulado por censura e demonização, são tarefas demasiadas só para fazedores.

Não por acaso este escrito começa com a entrevista de um filósofo maior, marxista, engajado a vida toda com a formação cultural e política brasileira, feita por uma jornalista, crítica e repórter cultural. A pauta girou em trono do movimento dos coletivos teatrais espalhados pela cidade inteira. Se, de fato, o pensamento crítico é fundamental, se conecta os vários fazeres em perspectiva histórica e utópica, minha sensação é de que por conta da modernização, na chave das tecnologias e redes de comunicação social, ele também por aqui se rarefez.

As reflexões existentes a partir da cena, sobre o fazer cênico, confinaram-se aos blogs, aos sites, às postagens de iniciativa pessoal e nem sempre verticais. Claro está que tais plataformas, por mais desejo de serem públicas, têm como característica, digna de aplauso, a iniciativa pessoal, já que se trata de atividade pouco ou nada gratificante sob todos os pontos de vista.

A precariedade, a linguagem e o espírito público reúnem: não nos movemos por dinheiro e nunca entendemos mercadoria e economia como espírito da coisa. É doloroso percebermos que para grande parte da população brasileira, preocupada com as questões cada vez mais duras da sobrevivência, pouco importa se o país já vive de algum tempo em estado de exceção, se os direitos humanos estão sendo destruídos, se o trabalho e suas parcas garantias estão se extinguindo como condição estrutural da vida contemporânea.

Penso que o universo é demasiado grande para os que podemos tão pouco. E o duro é que ainda que no lugar das nossas experiências lidemos com o confinamento, os nossos quereres são enormes.

Leekyung Kim Giovana Cordeiro e Chico Carvalho em ‘Erêndira – A incrível e triste história da Cândida Erêndira e sua avó desalmada’ (2019), produção do Sesi-SP

Na esteira do caminho desta tentativa de análise, tenho apontado experiências pessoais ou de coletivos de que fiz e faço parte, como material empírico. No último ano, tive o privilégio de coordenar a encenação de Erêndira – A incrível e triste história da Cândida Erêndira e sua avó desalmada [temporada de setembro a dezembro de 2019 no Teatro do Sesi-SP]. Tenho para mim que o fato de havermos negligenciado uma dimensão de conversa e de análise de conjuntura foi um dos fatores que nos levou a esse beco de estreita ou nenhuma saída.

Também já referi lá atrás que a força do movimento, como todos os movimentos que se firmam, reunia em sua proa gente das artes do teatro, da filosofia, da música, da escrita, de outras praças do Brasil e do mundo, além das relações efetivas com os movimentos sociais. E que o jornalismo e a crítica teatral tinham um papel também aí estruturante. Eram (e são) os críticos, os pesquisadores, os analistas da cena que compunham as comissões curadoras e julgadoras dos editais de fomento à produção, de caráter e acesso público e universal. Sim, porque a Lei de Fomento inspirou práticas de chamamento público também nas estatais ou instituições de cunho cultural que se multiplicaram no início do século XXI.

Eram frequentes as práticas de conversas públicas a respeito de projetos, tendências, experimentos. Pode ser impressão minha – por um certo descolamento meu dos coletivos –, mas a conversa pública que ainda hoje se mantém e mobiliza no campo específico das artes da cena diz respeito apenas à “brancaleônica” tentativa de manutenção das conquistas em chave econômica ou burocrática. Ou, na melhor das hipóteses, como ativismo poético, em reatividade aos trágicos retrocessos que vêm sendo impingidos em todas as áreas sociais e humanas. Com pouca ou nenhuma repercussão sobre o grosso da população.

Como na boa imagem do Roberto Schwarz, o capitalismo continua empilhando vitória sobre vitória. Especialmente no campo da cultura e dos costumes. O fato é que os segmentos mais conservadores da sociedade, capitaneados e firmemente organizados em torno do programa de poder vigente avançam num projeto messiânico de reorganização social absolutamente conforme às regras do neoliberalismo.

Do outro lado, as forças progressistas, das quais fazemos parte, destarte todas as tentativas, não conseguem organizar estratégias e propostas radicalmente humanistas articuladas entre os vários segmentos com horizonte anticapitalista. Talvez nos falte imaginação social e coragem política que nos reúna para além da normalidade “democrática” dada. O que é claro é que os espaços que a direita ocupa com a convicção da impunidade possibilitam até a propagação de censura, boicote e todo tipo de prática neonazista, naturalizando o horror. Do lado progressista, as ideias são tímidas e “civilizadas” numa tentativa aparente de credenciamento junto a uma fantasmática opinião pública, manipulada pela grande mídia fechada com as propostas de retrocesso econômico.

Nós fizemos Erêndira partindo desse princípio e dessa dor. E a socialização deste escrito é a extensão da cena da própria neta e sua avó desalmada. Há ali alguns princípios regendo tudo e que talvez interessem a esta discussão. Percebemos que o ambiente autoritário e “educativo” sobre o qual o poder hoje mais e mais organiza a sociedade acabava por contaminar o nosso fazer: de alguma forma temos entendido, reativamente, a cena como braço civilizatório, com cunho moralista e vocação catequética e quase jesuítica.

Resgatando o filósofo alemão Walter Benjamin [1892-1940], o desenvolvimento das forças produtivas entra em contradição com as relações de produção, transformando-as e até anulando-as. Ou seja, o discurso humanista na prática está sendo sempre subvertido da pior forma (direitos humanos para quem? A Amazônia é nossa, portanto podemos devastá-la! O indígena é um ser humano como nós! A reforma da Previdência gera empregos! Podemos cortar 25% do valor nominal dos salários dos funcionários públicos, assim obtendo recursos para saúde e educação para todos! O poder público deve financiar obras artísticas que enalteçam a família e a nação, e por aí vai) na esteira da precarização do trabalho e da expansão do mundo da mercadoria e da financeirização.

É desesperador: a cena que propõe, ensina e inclui falas apenas para iniciados acaba municiando o inimigo. Lembram-se da performance La bête [obra de Wagner Schwartz], no Museu de Arte Moderna de São Paulo, que quase gerou uma marcha da “família” por conta do nu?

Enfim, a partir desses e outros pressupostos, entendendo sempre a dialética como forma de buscar uma atualidade substantiva, demos com os costados no Gabriel García Márquez e seu conto já tantas vezes encenado. O fato é que se uma das disputas simbólicas centrais do poder é justamente a edulcoração da família primitiva, perversa e patriarcal, a Avó que não tem nome é o contrário da imagem sábia e bondosa: a velha explora a neta negociando-a sexualmente como mercadoria espetacular para miseráveis em tendas totêmicas de luxo duvidoso. A Candida Erêndira é prima-irmã do Brecht de Ópera dos três vinténs, na qual a família modelo unida e afetiva explora os negócios da mendicância em franco desenvolvimento industrial e tecnológico. A ideia, tomando emprestado a locução do Eric Nepomuceno, tradutor para o Brasil e amigo de Gabo, comentando a montagem, é que:

“(…) o tom essencialmente histriônico criasse uma atmosfera angustiante perfeitamente coerente com a terrível história da menina”.

Ou seja, procurar alguma via de um terrorismo poético onde nos colocássemos em causa, de certa forma implicando-nos enquanto fazedores e cidadãos.

Aponta o Jorge Louraço Figueira, dramaturgo português, pesquisador do teatro brasileiro, no final de um escrito sobre a referida montagem:

“Ao contar a história da parte mais cândida, da parte mais desalmada e da parte mais assassina do Brasil, sem simplificar a parte de cada um, a encenação de Erêndira revela a verdade: entre opressor e oprimido há um pacto conciliatório”.

Leekyung Kim No plano baixo, Dagoberto Feliz, integrante do Folias, e Giovana Cordeiro no papel-título junto ao elenco de ‘Erêndira’, espetáculo que cumpriu temporada até dezembro passado

O apontamento dessas observações é aqui sublinhado, obviamente, não como pretensiosa e irônica resposta ao quadro trágico que se apresenta, mas porque diz respeito ao cimento do trabalho e porque deram vazão e ânimo para esta longa reflexão. Tudo somado, talvez do nosso lado também essa conciliação a que o Jorge se refere seja uma das graves patologias que nos adoece, canhota e canhestra.

Num dos escritos do Roberto Schwarz, está lá apontada:

“a compatibilidade entre escravidão, civilização burguesa e capitalismo.”

Mais à frente, o autor argumenta acerca da história recente do país:

“À derrota da conciliação seguia-se a derrota da radicalização, deixando por terra o socialismo e anunciando o que talvez seja o horizonte contemporâneo, de capitalismo sem alternativa à vista”, declarou em entrevista em 2018 [aos pesquisadores Bruna Della Torre e Mónica González García].

Talvez a definição correta para o termo fosse conformismo e não conciliação.

Na medida que a conciliação (ou a omissão) pôde, ou pode, parir os nazis, a necessidade da reflexão sobre alternativas possíveis, alternativas à vista que hão de existir, nunca foi tão urgente. Talvez nem na ditadura. De repente essa necessidade de aldeamento, tribalização, movimento, sugere norte, direção, articulação dos pensares. O terreno é pantanoso e ao mesmo tempo desértico e talvez por aí haja um todo por fazer.

Novamente o socorro do Walter Benjamin:

“Nunca ninguém se torna mestre num domínio em que não conheceu a impotência, e, quem aceita essa ideia, saberá que tal impotência não se encontra nem no começo, nem antes do esforço empreendido, mas sim no seu centro”.

Aliás, o Benjamin é uma figura recorrente por ter sido de certa forma um dos criadores da melhor tradição crítica, ainda não superada, marxista e dialética. E justamente porque esta tradição olha muito além das superfícies: para as estruturas e suas relações sociais. Ele sistematiza e espalha conceitos e ferramentas poderosos como o da história sendo sempre escrita pelos vencedores. Quem sabe não possa ser passada a limpo pelos vencidos?

O Brasil tem larga e sólida tradição de crítica especializada nas coisas da arte e da cultura não somente, mas também nessa linhagem benjaminiana: Antonio Candido, Roberto Schwarz, Mário Schenberg, Mário Pedrosa, Jean-Claude Bernardet, Décio de Almeida Prado, Sábato Magaldi, Mariangela Alves de Lima…

E gente bacana atuando agora, que não enumero aqui porque são muitos e acabo por cometer omissão: de memória ou desconhecimento.

Escutando novamente Walter Benjamin:

“Crítica, então, como que um experimento na obra de arte, através do qual a reflexão desta é despertada e ela é levada à consciência e ao conhecimento de si mesma. (…) Na medida em que a crítica é o conhecimento da obra de arte, ela é o autoconhecimento desta; na medida em que ela a julga, isto ocorre no autojulgamento da obra”.

O crítico como coautor da obra, olha que bonito! Eu entendo que hoje a função crítica profissionalizada, por conta inclusive das redes sociais, e da intransigência e rigidez de opinião que as redes envolvem não está sendo fácil de ser praticada. O exercício do contraditório em muitas ocasiões leva ao enxovalhamento e linchamento do autor ou autora, às vezes por simples descuido na grafia de uma ou outra palavra. Isto pode e deve estar levando a uma certa timidez, pelo menos no que diz respeito a posições mais polêmicas. Mas, pela beleza da criação, faz parte do encargo a coragem intelectual.

Grosso modo, ela vem sendo exercida: na maioria dos casos são os críticos, os pensadores, os ensaístas, os pesquisadores que atuam nas comissões julgadoras e curatoriais que distribuem recursos para o fomento à produção, circulação e distribuição da obra artística. É uma responsabilidade enorme mexer com o dinheiro público que vai mover a criação em tempos tão fragmentados, por um lado, e de hegemonia mercadológica, por outro. Tarefa para consolidar e avançar efetivamente num campo de criação e existência que faça frente ao “estado a que isso chegou”. O debate é urgente. Para que os pensamentos se deem por conhecer e se encontrar enquanto conquista social que prezamos.

Como já escreveu o pensador húngaro Lukács, citado por Roberto Schwarz: “O crítico é aquele que nas formas entrevê o destino”.

Simpósios, locuções, publicações, encontros, todos serão bem-vindos. É mais do que saudável reconhecer a régua, o compasso e a medida da coautoria das obras artísticas. As presenças do ensaísmo e da crítica são essenciais para o fazimento artístico e para entender o país à luz de sua história e diante da contemporaneidade.

Afinal, tem total razão o Boal:

“Pode ser que o teatro não seja revolucionário em si mesmo, mas não tenham dúvidas: é um ensaio da revolução!”.

*

Carlos Gomes

Marco Antonio Rodrigues é encenador e professor-pedagogo. Foi cofundador e diretor artístico do grupo Folias d’Arte (1997-2010), em São Paulo, com o qual mantém colaboração eventual. Foi editor da revista Caderno do Folias e assinou espetáculos como Babilônia (2001), de Reinaldo Maia; Otelo (2003), de Shakespeare; El día que me quieras (2005), do venezuelano José Ignácio Cabrujas; e Oresteia, o canto do bode (2007), adaptação de trilogia de Ésquilo por Maia. É encenador colaborador d’O Teatrão, coletivo português sediado em Coimbra. Possuí especialização no Sistema Stanislavski pela Academia de Arte Teatral Russa (GITIS), de Moscou. Também colabora como professor-encenador do Célia Helena Centro de Artes e Educação, desde 1990, em São Paulo; da Escola Superior de Educação de Coimbra (Esec) e da Escola Superior de Música e Artes do Espetáculo do Porto (Esmae). Assinou mais de 50 trabalhos, entre os mais recentes: Erêndira, a incrível e triste história de Candida Erêndira e sua avó desalmada, dramaturgia de Claudia Barral para o conto de Gabriel García Márquez, no Teatro do Sesi SP (2019); Richard’s, dramaturgia de Jorge Louraço Figueira para Ricardo III, de Shakespeare (2019); e Ala de criados (2017) e Terrenal (2019), ambos textos do argentino Mauricio Kartun. Recebeu prêmios como Shell, Mambembe, APCA e Molière, além do Prêmio Villanueva, da crítica cubana.

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