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Artigo

Vide vida: prognósticos da 7ª MITsp

1.4.2020  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Guto Muniz/

Espetáculos internacionais da sétima edição da MITsp permitiram examinar sentimentos contraditórios da sociedade global diante do imponderável ditado pela pandemia. A curadoria soou premonitória ao circunscrever trabalhos que expuseram nuances da vulnerabilidade humana nesta hora da História e formas de distanciamento social a que agora os brasileiros estamos enquadrados não como metáfora, mas sob a concreção da medida sanitária preventiva que um terço das nações adotou com vistas a não sobrecarregar os sistemas de saúde e minimizar o número de mortes.

Os dez dias da Mostra Internacional de Teatro equivaleram a uma sintonia involuntária com acontecimentos da vida nacional na área da saúde. Basta notar o traçado desde a tomada de consciência retardatária nas três esferas de governo até a procrastinação de parte dos cidadãos. O país contava oito casos na noite de abertura do evento, em 5 de março: seis no Estado de São Paulo, um no Rio de Janeiro e outro no Espírito Santo. O primeiro registro tinha sido confirmado em 26 de fevereiro. Na tarde do encerramento, em 15 de março, a plataforma digital do Ministério da Saúde informava que 200 pessoas estavam diagnosticadas com a doença.

Quando escrevemos, o mundo conta mais de 43 mil mortos, entre os mais de 874 mil contagiados e de 185 mil curados em 180 países, segundo monitoramento em tempo real do Centro de Ciência e Engenharia de Sistemas da Universidade Johns Hopkins, de Baltimore, nos Estados Unidos.

Corta para a República de Ruanda, no centro da África. Entre abril e julho de 1994 a etnia Tutsi, 15% da população, foi massacrada por extremistas da etnia Hutu, majoritária. Em cem dias morreram cerca de 800 mil pessoas, incluindo moderadas hutus e pelo menos cem funcionários da organização não-governamental Médicos Sem Fronteiras.

O evento multifacetado culminou com a interrupção da temporada na cidade de São Paulo em 15 de março. Naqueles dias a arte prenunciou autocríticas para essa travessia sem precedentes. Enquanto isso, sociedades enfrentam o dilema de como achatar a curva de crescimento exponencial nos casos de novo coronavírus: mitigar ou suprimir o nível de contágio. Ciência e economia pelejam no grau de confinamento

À época, potências internacionais menosprezaram o descumprimento da Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio, aprovada pela ONU em 1948. Contraditoriamente, a organização desempenhava no país a Missão de Assistência das Nações Unidas para Ruanda (Unamir), chefiada pelo tenente-general canadense Roméo Dallaire. Ele avisou aos superiores da sede, em Nova York, a respeito da chacina planejada havia meses, senão anos, mas o mundo preferiu a inação a intervir em território então pouco rentável às sanhas do mercado. Pano rápido para a desculpa de que se tratava de um conflito tribal embrionário do período colonial no século XIX. Em resumo, faltou vontade política.

Essa tragédia humanitária foi cênica e musicalmente condensada ao público brasileiro por meio do espetáculo Sábado descontraído (Samedi détente, em francês), de 2014, criado por Dorothée Munyaneza. Um dos pontos de vista da narrativa é o da menina prestes a completar 12 anos, a própria, moradora num bairro da capital, Kigali. Ela viu familiares, amigos e vizinhos serem brutalmente assassinados. O facão, ferramenta típica nas comunidades rurais predominantes, virou a principal arma branca da guerra civil. Somente numa igreja foram executadas 110 pessoas cujas carteiras de identidade descreviam a etnia, tutsi, assim como os documentos dos hutus traziam o mesmo dado correspondente.

Tendo sobrevivido e migrado com a família para a Inglaterra, onde estudou música e ciências sociais e depois se mudou para a França, Dorothée contorna a escala épica da história através das memórias afetivas e doloridas mediadas pelo corpo. Mais precisamente, parece empregar recursos da psicoacústica, ramo do conhecimento que estuda as respostas psicológicas associadas ao som. Para tanto, o rádio é seu veículo ativador, seja como símbolo gregário, seja pela presença literal de um aparelho.

Exibido no Sesc Avenida Paulista, Sábado descontraído corresponde ao nome de um dos programas de maior audiência no país por difundir canções de várias partes do mundo. Os idiomas oficiais em Ruanda são os bantos quiniaruanda e suaíli, além do francês e do inglês. Em cena, o espírito lúdico do entretenimento radiofônico contrapõe-se aos fatos aterrorizantes enunciados ao microfone pelo compositor francês Kamal Hamadache, postado no set lateral em que opera a aparelhagem de som e intervém de quando em quando para citar documentos e estatísticas em relação ao mal-afamado massacre de Ruanda.

A ruandense Dorothée Munyaneza em ‘Sábado descontraído’; ao fundo, o compositor Kamal Hamadache: rememorações da infância sobre o genocídio de 1994
Guto Muniz/Foco in Cena

A música e a dança são sublimadas como seiva nas atuações das artistas de dança Dorothée e Nadia Beugré, esta nascida na Costa do Marfim. Suas ações e movimentos falam do banho de sangue, mas cuidam para que o discurso da denúncia não se sobreponha ao da arte. Há uma mixagem entre a pulsação musical e a dramaturgia. O baque seco do corpo sobre o solo ecoa também da batida sonora. Ritmos locais que constroem pontes entre o hip hop e o reggae, sob a partitura do compositor francês Alain Mahé, comunicam a vitalidade juvenil anteposta à cultura da morte.

Aliás, há uma aposta em expor o conceito de cultura em seu sentido mais amplo. Porém com criticidade, como no cinema exportação de Hollywood que também povoou o imaginário da atuante e diretora. Ou ainda assumindo e celebrando a expressão popular por meio do rádio e da influência da cultura urbana que politiza o espaço público. Cidadania cultuada na voz à capela ou na perplexidade do gesto. Sábado descontraído mistura informações, memórias e abstrações sem cair no pastiche. Dá liberdade para se ampliar visões a respeito da subjetividade, da pulsão de vida e do contexto sociopolítico que nos parece tão próximo pelo enfrentamento das desumanidades.

A infância que um dia colheu a tempestade agora a reelabora artisticamente com a relevância que o tema exige. Ao percorrerem caminhos musicais e corporais que acessam ancestralidades, essas artistas pisam o chão com força para perguntar aos quatro cantos do planeta: “Onde vocês estavam em abril de 1994?”. Não é retórica antiocidental. Dorothée e parceiros transcendem vitimização nesse primeiro trabalho da Compagnie Kadidi. Melhor, quem sabe, ouvi-los como um convite à autocrítica, desde o tecido mais íntimo, para pensar acerca de quem é inimigo de quem no fundamentalismo étnico, o que não está distante de outras variações do extremismo.

A costa-marfinense Nadia Beugré e Dorothée no espetáculo que marcou a fundação da Compagnie Kadidi, em 2013, sediada na França: sem margem para vitimização
Guto Muniz/

A natureza humana tem aspectos de sua imponderabilidade explorados em Farm fatale, de 2019, encenação do francês Philippe Quesne em colaboração para a companhia alemã Münchner Kammerspiele, o teatro municipal de Munique. Assim como na criação da ruandesa Dorothée, o desenho sonoro exerce forte ascensão. Em vez da recepção de quem ouve, consta a perspectiva de quem leva ao ar uma rádio independente em plena terra arrasada, a fim de suscitar novas ideias.

Convém abrir parênteses. Lembra-se do Espantalho do Mágico de Oz? No livro do estadunidense Lyman Frank Baum, de 1900, o personagem tem mais tutano do que apenas vento na cabeça, como reitera a versão para cinema do compatriota Victor Fleming, de 1939. O Espantalho de palha de milho deseja muito ter um cérebro. No entanto, vive encabeçando decisões alheias junto ao Homem de Lata, ao Leão e à recém-chegada Dorothy. Fecha parênteses. Na concepção de Quesne e do dramaturgo permanente da companhia, Martin Valdés-Stauber, cinco figuras são convertidas em Espantalhos e praticam uma espécie de contracultura em nome das causas ambientais.

Não poderia vir de outro país, onde o Partido Verde completou 40 anos em janeiro, uma montagem na qual atores com alma de palhaço e corpo disforme, rosto mascarado e voz metalizada performam como ocupantes de uma fazenda abandonada. Era ali onde “trabalhavam” e agora decidem reexistir como se fossem, está sugerido, os últimos remanescentes após a extinção da espécie humana à qual sentem-se ligados, Espantalhos que são.

Juntam forças para soerguer da memória as plantações, as árvores, os animais ao redor e tudo o mais, restituindo-lhes vida. Para tanto, a vara de condão são as canções que registram nesse não-lugar tomado de um branco insípido, porém generoso nos equipamentos e instrumentos vindos sabe-se lá de onde, com aparato tecnológico que permite antená-los ao que sobrou ou está por se reinventar.

Guto Muniz/Foco in Cena A encenação do francês Philippe Quesne para a companhia alemã Münchner Kammerspiel foca em causa ambiental com uma pitada de anarquismo e injeção de lirismo

A fábula toca o cerne da política contemporânea ao discutir as proteções ecológica e climática. Esses cuidadores de pássaros, como se autodenominam, rejeitam discursos fatalistas tipo “no future/no nature”. Com uma pitada do anarquismo de banda punk e injeção de lirismo nos arranjos e letras – inusitada síntese entre Sex Pistols e Beatles –, eles são críticos ao agronegócio, à banalização do uso de insumos como o glifosato, campeão entre os produtos comercializados no Brasil sob a blindagem da bancada ruralista no Congresso Nacional e usufruto de indústrias nacionais e estrangeiras de agrotóxicos.

Como se viu no Sesc Vila Mariana, a estética de Farm fatale, corruptela do francês famme fatale, a mulher fatal, entorna para o onirismo radical em sua segunda parte, apagando qualquer vestígio realista até então entrevisto. A ênfase nos recursos de luz e de cenografia nutre o imaginário: fruímos uma nau de sensatos de matriz felliniana. Os instrumentos de sopro dão asas ao mistério da transformação. O distanciamento que no teatro está mais associado ao procedimento brechtiano da consciência crítica é coroado com a disjunção total da narrativa. A magia materializa-se feito um edifício de emoções palpáveis de que outro mundo é possível a partir da revolução interior, e coletiva, considerando-se o pragmatismo elementar da sustentabilidade planetária.

Do sonho para a realidade globalizada, a produção inglesa O pedido (The claim), de 2017, é um trabalho cujas densidades de texto e atuação sobressaem no espaço de uma arena. O formato e a contiguidade do público remetem à experiência da primeira fase do Arena, teatro em atividade desde meados do século XX no centro paulistano. Com o despojamento de quatro totens de luz fluorescente, as interpretações em dupla ou trio catalisam a cena aberta pela concisão dos diálogos e calibragem da trama. Tim Cowbury escreve valorizando o subtexto, por mais que em determinados momentos a verdade irrompa à maneira da geração britânica in-yer-face, que soltava o verbo “na sua cara”, conforme estilo do drama nos anos 1990.

Nereu Jr Nascido no Zimbábue e criado em Londres, Tonderai Munyevu destaca-se pela atuação na produção inglesa ‘O pedido’: refugiado submetido a rito de discriminação pelo Estado

O diretor Mark Maughan ajusta com minúcia a noção de tempo e espaço dos personagens e dos atores. Nascido no Zimbábue e criado em Londres, Tonderai Munyevu atua como o refugiado da República do Congo com capacidade de persuasão inequívoca para encarar a angústia da espera no controle de assistência social. Aos poucos, a discriminação subliminar fica mais violenta.

Isso se aplica ao campo da língua. Há ruídos e lacunas na compreensão do francês pelo inglês oficial. Como se compreensão e bom senso fossem atributos só de quem domina tradução. Resta a atitude protocolar e o desprezo pelo estrangeiro, o outro à frente que insiste em contrariar a invisibilidade como política de Estado. Nick Blakeley e Indra Ové, por seu turno, são mordazes no artificialismo das máscaras sociais, evidenciando o jogo de fingimento e os chavões institucionais. A polidez e o sarcasmo são distinguíveis feito óleo e água. Impossível desviar os sentidos das contracenações.

Único, por óbvio, a permanecer o tempo todo no centro do círculo, a sala do sistema de averiguação, Tonderai Munyevu exprime carisma e articulação que faz de Serge, o refugiado, um cidadão convicto dos seus direitos e condutor pertinaz no desnudamento das entrelinhas. Sua valia é a palavra. A plateia do Teatro Cultura Inglesa escuta-o atentamente, diferente das autoridades a serviço da herança colonizadora.

Indra Ové e Nick Blakeley expõem as máscaras sociais ao personagem de Tonderai (no centro da cena) na peça de Tim Cowbury dirigida por Mark Maughan
Nereu Jr

O desvelamento do pormenor é de outra grandeza em By heart, de 2013, criação do português Tiago Rodrigues. Absolutamente ancorado no texto, o diretor e dramaturgo aposta alto na capacidade de sensibilizar o público por meio da prática milenar do ato de ler, inerente ao da escuta de si e do exercício de alteridade.

A imaginação no poder instala-se quando cerca de 500 espectadores compenetram-se por 90 minutos na tarefa de dez pessoas convidadas a subir ao palco para decorar as 14 linhas do Soneto 30, de William Shakespeare. Sentadas, elas são regidas por Rodrigues, de talento equiparável a professor de cursinho no timming perfeito para conduzir multidões, leia-se tocar corações sem messianismos, duma inteligência nas artes da literatura e da cena.

Aprender de cor, ou by heart, na expressão inglesa, é um dos movimentos pilares da arte do teatro. Decorar, repetir, equivalem a práticas cotidianas dos artistas do tablado. O branco, a falha, como todos sabem, é dos deslizes mais temidos pelos intérpretes do texto.

Dez cadeiras alinhadas, de múltiplos design, e um caixote de frutas carregado de livros são os únicos itens em termos de cenografia (se bem que as duas pilastras de fundo do Teatro Faap, que estorvam quando não acolhidas com proposição, acabam ornando como uma ágora). A estratégia de entreter, por vezes esvaziada nos meios televisivos e mesmo teatrais, alça voos espirituosos nessa experiência mediada por Shakespeare e outros escritores e pensadores alinhavados com engenho.

Guto Muniz/ O diretor e ator português Tiago Rodrigues em ‘By heart’, espetáculo no qual visita o ‘Soneto 30’ de Shakespeare e evoca sua avó que o influenciou no amor pela literatura

O encenador lisboeta, artista em foco nesta edição da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, parte de uma entrevista do crítico literário francês George Steiner, morto em fevereiro, aos 90 anos, para entrelaçá-lo às memórias da avó, Cândida, também nonagenária, leitora contumaz de prosa e poesia, solar influência na carreira.

Em 1989, no programa de televisão holandês Da beleza e da consolação, do canal VPRO, conduzido pelo jornalista Wim Kayzer, Steiner narrou o episódio do Congresso Soviético de Escritores, em 1937, no qual Boris Pasternak, diante da perseguição do regime stanilista, absteve-se de emitir palavras durante os três dias do encontro. No encerramento, contudo, o escritor limitou-se a levantar e declarar apenas o número “30”, a deixa para que cerca de duas mil pessoas do auditório recitassem, em uníssono, o soneto shakespeariano que ele mesmo havia traduzido para a língua russa.

By heart mobiliza essa qualidade de afeto e de pertencimento. Convence cada um ou uma a ser um “soldado” na aventura coletiva de percorrer o soneto dentre os 154 que Shakespeare deixou, como se não bastassem as peças. “Têm cura as perdas e tristezas fim”, sentencia o último verso da composição, recordando, séculos depois, da ascendência comum aos que enfrentam a virulência global em curso.

Infelizmente, o público perdeu a chance de assistir à segunda montagem assinada por Rodrigues na programação, Sopro, dada a suspensão das atividades do Centro Cultural Fiesp, na véspera, onde as três sessões aconteceriam no Teatro do Sesi SP, primeiro dos reflexos de cancelamentos ou alterações na reta final.

Em tempo: By heart é uma produção da companhia Mundo Perfeito, cofundada por Rodrigues e pela cenógrafa, figurinista e produtora Magda Bizarro. Em 2013, por ocasião de Ocupação Mirada no Sesc Belenzinho, eles se autodeclaravam assim no informe enviado à imprensa: “O Mundo Perfeito tem combatido as forças do mal desde 2003, ano em que nasceu. O seu nome traduz a ironia de um olhar crítico sobre o presente e o idealismo de um olhar otimista face ao futuro. É também um nome que faz as pessoas sorrirem, seja por que razão for”.

Guto Muniz/Foco in Cena Rodrigues constroi empatia na condução de dez espectadores estimulados a decorar a composição, procedimento de singeleza e inteligência que tem a cumplicidade da audiência

E a outra representação portuguesa na mostra tampouco decepcionou com O que fazer daqui para trás, de 2015, do coreógrafo João Fiandeiro. O transbordamento dos limites físico dos atuantes, na corrida intermitente do palco aos arredores do edifício, o Teatro Cacilda Becker, passando pela coxia e plateia, denotam o esgotamento e a necessidade de repensar as maneiras de como viver junto, a começar do sujeito consigo.

O espetáculo empreende uma varredura performativa sobre o ser/estar, abrindo uma inusitada relação com o público. Definitivamente, aquela não foi uma noite convencional na disposição palco/plateia. Os códigos temporais e espaciais surgiram embaralhados e corrompidos. Uma sucessão de quebras de expectativas que estimulou a lidar com a incompletude.

São cinco as presenças atomizadas. Os atuantes correm incessantemente com intervalos entre eles. Avançam ao microfone, soltam frases em pedaços, por vezes sussurradas. Como se fossem maratonistas existenciais de mundanidades, angústias, mortes, falhas, certezas, carências, ceticismos e sutilezas bem-humoradas, enfim, produzem flashes de sensações intensas potencializadas pela exaustação corporal. Do vácuo vem os achados.

A eminência da perda de fôlego conduz a um curioso transe narrativo, uma “gira” por platitudes e sensatez. “Este lugar nasceu do equívoco”; “Entre o que é e o que sente”; “O desejo ardente tem de ser acompanhado de uma vontade forte”. Essa economia verbal feita de frases soltas é preenchida pelo atleta que repousa em cada um dos atuantes que podem trazer da rua um galho de árvore ou uma lixeira. Quando não é o vazio que “fala” por meio do áudio do celular que um performer exaurido gravou numa das voltas no quarteirão, deixando o aparelho em cena e saindo em disparada pela porta lateral da sala.

Descontruindo noções de coreografia e desfazendo as raias da dança, do teatro e da filosofia – por que não? –, o projeto artístico de Fiadeiro é pautado pelo incômodo, um sugestivo roteiro para o humano confrontar-se com o mundo de ponta-cabeça após a pandemia. A ilusão do controle fez água. Em contrapartida, a efemeridade é eterna nas artes vivas.

Guto Muniz/Foco in Cena Carolina Campos em ‘O que fazer daqui para trás’, do coreógrafo João Fiadeiro, que rompe limites do palco e do edifício teatral estimulando o público a uma atenção exploratória

Como se vê, não faltaram prognósticos na MITsp 2020 entre os 13 espetáculos internacionais que elencou. Com uma programação estendida a Ações Pedagógicas, Olhares Críticos e MITbr, além de montagens chamados especiais, o evento multifacetado culminou com a interrupção da temporada na cidade de São Paulo desde 15 de março. Naqueles dias a arte prenunciou autocríticas para essa travessia sem precedentes.

Enquanto isso, sociedades enfrentam o dilema de como achatar a curva de crescimento exponencial nos casos de novo coronavírus: mitigar ou suprimir o nível de contágio. Ciência e economia pelejam no grau de confinamento. Em artigo publicado no jornal espanhol El país, em 24 de março, o filósofo e ensaísta sul-coreano Byung-Chul Han afirmou que o vírus não vencerá o capitalismo porque não gera nenhum sentimento coletivo forte. “Precisamos acreditar que após o vírus virá uma revolução humana. Somos NÓS, PESSOAS dotadas de RAZÃO, que precisamos repensar e restringir radicalmente o capitalismo destrutivo, e nossa ilimitada e destrutiva mobilidade, para nos salvar, para salvar o clima e nosso belo planeta”, escreveu o autor de Sociedade do cansaço.

A ver, quando tudo isso passar. Espectadores dos espetáculos aqui analisados puderam intuir esse quadro em diferentes medidas. Nesse período de desmanches, a imagem do “capitalismo destrutivo” que Byung-Chul Han constata poderia morar no desfecho de Contos imorais – parte 1: casa mãe (Contes immoraux – partie 1: maison mère), criação de 2017 da artista francesa Phia Ménard, outra peça-chave na cartela de espetáculos, com sessões no Sesc Pinheiros. “O ruído do desfazimento, tal tempestade sobre castelo de areia, tem a ver com a fragilidade de carne e osso. A engrenagem perfeita embute sua própria autodestruição, sem apelo a Sísifo: escala-se a montanha por única vez e rola-se pedra abaixo, ponto. Produção de angústia concreta”, como escrevemos na crítica que pode ser lida aqui.

.:. Leia a crítica de Beth Néspoli a partir de Tenha cuidado, solo da artista indiana Mallika Taneja, apresentado na 7ª MITsp

.:. Acesse o catálogo da 7ª edição, com ensaios originais a propósito dos espetáculos e das ações, aqui. E o site da MITsp, aqui

Guto Muniz/Foco in Cena O performer Iván Haidar no espetáculo português que materializa o tema da exaustão e suscita autoquestionamentos sobre as escolhas do sujeito e do coletivo

Equipes de criação:

Sábado descontraído

Concepção, coreografia e direção: Dorothée Munyaneza

Com: Nadia Beugré, Kamal Hamadache e Dorothée Munyaneza

Provocador: Mathurin Bolze

Desenho de luz: Christian Dubet

Cenário: Vincent Gadras

Figurino: Tifenn Morvan

Direção de palco: Frédérique Melin

Direção de som: Camille Frachet

Direção de luz: Nara Zocher de Sousa

Produção: Compagnie Kadidi e Anahi Production

Direção de produção: Emmanuel Magis/Anahi

Assistente de produção: Leslie Fefeu

Coprodução: Théâtre de Nîmes – Scène Conventionnée pour la Danse, Théâtre La Passerelle – Scène Nationale de Gap et des Alpes du Sud, Bois de l’Aune-Aix-en-Provence, Théâtre des Salins – Scène Nationale de Martigues, L’Onde – Théâtre Centre d’Art de Vélizy-Villacoublay, Pôle Sud – CDCN Strasbourg, Théâtre Jacques Prévert – Aulnay-sous-Bois, Le Parvis – Scène Nationale de Tarbes, Théâtre Garonne – Toulouse, Réseau Open Latitudes 2

Apoio cultural: Cultural European Programme, Théâtre de Liège, Théâtre de la Ville – Paris, BIT Teatergarasjen – Bergen. Com apoio do Théâtre Le Monfort–Paris, do Friche Belle de Mai–Marseille, da Direção Regional de Assuntos Culturais PACA – Ministério da Cultura e Comunicação, do SACD, Association Beaumarchais, Arcadi Île-de-France, ADAMI e Prefeitura de Paris.

Este espetáculo é apoiado pelo Consulado Geral da França em São Paulo e pelo Institut Français

Farm fatale

Concepção, direção, cenário, figurinos e produção de palco: Philippe Quesne

Com: Léo Gobin, Stefan Merki, Damian Rebgetz, Julia Riedler e Gaëtan Vourc’h

Colaboração cenográfica: Nicole Marianna Wytyczak

Colaboração de figurinos: Nora Stocker

Iluminação: Pit Schultheiss

Dramaturgia: Martin Valdés-Stauber

Produção: Münchner Kammerspiele, em coprodução com Nanterre-Amandiers, Centre Dramatique National

Este espetáculo é apoiado pelo Consulado Geral da República Federal da Alemanha em São Paulo, pelo Goethe-Institut, pelo Consulado Geral da França em São Paulo e pelo Institut Français

O pedido

Texto: Tim Cowbury

Direção: Mark Maughan

Com: Tonderai Munyevu, Nick Blakeley e Indra Ové

Cenografia: Emma Bailey

Design de som: Lewis Gibson

Design de luz: Joshua Pharo

Produção: Lauren Mooney

Este espetáculo é apoiado pelo British Council e pela Cultura Inglesa

By heart

Texto, encenação e interpretação: Tiago Rodrigues

Com fragmentos e citações de: William Shakespeare, Ray Bradbury, George Steiner e Joseph Brodsky, entre outros

Cenografia, adereços e figurino: Magda Bizarro

Produção executiva: Rita Forjaz

Produção executiva na criação original: Magda Bizarro e Rita Mendes

Produção: Teatro Nacional D. Maria II, a partir de uma criação original pela companhia Mundo Perfeito

Coprodução: O Espaço do Tempo, Maria Matos e Teatro Municipal

Espetáculo criado com o apoio do Governo de Portugal | DGArtes e apoiado pelo Instituto Camões

O que fazer daqui para trás

Concepção e direção: João Fiadeiro

Assistência de direção: Carolina Campos

Performance e cocriação: Adaline Anobile, Carolina Campos, Márcia Lança, Iván Haidar e Daniel Pizamiglio

Desenho de luz: Colin Legran

Direção técnica: Ieticia Skrycky

Coprodução: Teatro Maria Matos (Lisboa) e Teatro Rivoli (Porto)

Apoio à internacionalização: Direção Geral das Artes / Governo de Portugal

Apoio institucional: Câmara Municipal de Lisboa

Residências artísticas: Arquipélago / Centro de Artes Contemporâneas (Açores), Santarcangelo dei Teatri (Itália) e Atelier Real (Lisboa)

Este espetáculo é apoiado pelo Governo de Portugal | DGArtes

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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