Reportagem
Assim como escancara as desigualdades socioeconômicas, a pandemia à brasileira cala fundo sobre a vulnerabilidade da maioria dos trabalhadores no campo das artes e da cultura. As últimas semanas evidenciaram relatos frequentes de técnicos, produtores, artistas e grupos ou coletivos em busca de cestas básicas para subsistir ou mesmo fechando seus espaços, alguns mantidos a duras penas mesmo antes das medidas restritivas.
O primeiro diagnóstico divulgado no Brasil ocorreu em 26 de fevereiro; a primeira morte, em 17 de março. Na cidade do Rio de Janeiro e no Estado de São Paulo a quarentena foi implantada em 24 de março. Apesar dessa linha de tempo, desde 6 de fevereiro, há mais de três meses, vige a lei federal 13.979 que dispõe sobre as orientações para enfrentamento da emergência de saúde pública provocada pela Covid-19 – a decretação da pandemia pela Organização Mundial de Saúde (OMS) se deu há dois meses.
Portanto, nos respectivos entes federativos as autoridades deveriam ter sido céleres na adoção de estratégias preventivas ou mitigadoras, dada a escala global da doença, mas se mostraram lentas. Ressalte-se a inépcia da União em fazer chegar na ponta o benefício mensal de R$ 600 a trabalhadores informais, microempreendedores individuais (MEI), autônomos e desempregados em todas as categorias. As filas nas calçadas das agências da Caixa Econômica Federal se revelaram desumanas por incitar a aglomeração e expor a população ao contágio.
Não é uma luta simples, ela é árdua, como sempre foi a luta da cultura. Mas a cultura é o cerne da resistência, foi assim durante a ditadura militar. Temos de reconquistar esse espaço e nos unir aos movimentos sociais, no sentido de fazer com que a gente possa conquistar os nossos direitos fundamentais
Sérgio Mamberti, ator e ex-gestor do MinC
Diante da gravidade do cenário, avançaram nos últimos dias as negociações multipartidárias para a Câmara dos Deputados aprovar a recém-batizada Lei de Emergência Cultural. Em linhas gerais, ela prevê destinar mensalmente um salário mínimo (R$ 1.045,00) aos trabalhadores e prestadores de serviço do setor e R$ 10 mil aos espaços culturais para sua sustentabilidade até um mês após a crise sanitária e humanitária, cujo encerramento, por enquanto, não se sabe.
Quatro projetos de lei em tramitação desde fim de março foram “apensados” (anexados) ao primeiro deles, o PL 1075, de autoria da deputada federal Benedita da Silva (PT-RJ), presidente da Comissão de Cultura da Câmara, e subscrito por 26 colegas de diferentes gradações ideológicas. Dias depois, os líderes da minoria José Guimarães (PT-CE) e da oposição, André Figueiredo (PDT-CE), coassinaram o PL 1089; a deputada Aline Gurgel (Republicanos-AP) apresentou o PL 1251; e o deputado Tadeu Aguiar (PSB-PE), o PL 1365, este assumidamente inspirado no PL 1064, do senador Humberto Costa (PT-PE), no outro território legislativo, sob idêntico teor.
Na terça-feira (5) foi aprovado em plenário virtual requerimento de Guimarães para adotar regime de urgência na apreciação do primogênito PL 1075. Na sexta-feira (8) a mesa diretora da Câmara designou a deputada federal Jandira Feghali (PCdoB/RJ) relatora da Lei de Emergência Cultural. Seu parecer será proferido, espera-se nos próximos dias, junto às comissões de Cultura, de Finanças e Tributação e de Constituição, Justiça e Cidadania.
Esses passos foram cantados por Guimarães e por Jandira durante webconferência realizada na noite de domingo (3) para discutir o formato e o conteúdo da futura lei. Houve participações de agentes de múltiplas expressões, entre artistas e produtores, representantes de movimentos e entidades socioculturais, secretários de cultura estaduais e municipais, além de outros parlamentares. “O presidente da Câmara já está ganho para a ideia”, disse Guimarães. Minutos antes, trocara mensagens com Rodrigo Maia (DEM-RJ), com quem já conversara no meio da semana e garante que ele ficou “bem impressionado” com a proposta.
Jandira também participou da reunião com Maia dias atrás e explicou que a primeira coisa que ele costuma perguntar é de onde sairão os recursos e como serão direcionados. “Ele se sensibilizou com dois aspectos. O primeiro deles é que apresentamos o cadastro de cerca de 15 mil espaços culturais segundo levantamento do IBGE e que, portanto, daria uma quantia de R$ 150 milhões por mês no orçamento [R$ 10 mil para cada endereço], o que considerou absolutamente possível ser absorvida. O segundo aspecto do qual ele gostou muito foi o da contrapartida, que considera um fortíssimo argumento para o projeto de lei andar”, disse a deputada, no sentido de que depois da pandemia os espaços beneficiados ofereçam ações artísticas e culturais à população.
No cadastro do Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais
constam atualmente 18.210 espaços e 69.345 agentes. O finado MinC pretendia substituir o SNIIC por Mapas Culturais, prometendo mais facilidade de uso, mais possibilidades de filtros de busca e integração a outras bases de dados, como a Rede Cultura Viva, o Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas e o Cadastro Nacional de Museus.
Na webconferência, Jandira ponderou que achava difícil passar o benefício de um salário mínimo, pois o auxílio universal da União, decorrido da suspensão social, foi estipulado em R$ 600 com possibilidade de prorrogar as três parcelas. “Dificilmente vai evoluir acima desse valor, creio que não deveria ser prioridade agora”, disse. Ela avaliou os principais pontos do conjunto de projetos de lei em foco e chamou a atenção para a abertura de linha de financiamento bancário voltada a pequenas e microempresas (produtoras), sem juros e com prazos alongados para quitação; sustar tributos federais e pagamentos das contas de água, luz e internet dos equipamentos; e estimular editais descentralizados para criação, produção e circulação por meio de repasses às secretarias estaduais e municipais.
“A gente pode fazer uma junção dessas proposições importantíssimas que contaram com o compromisso e a sensibilidade de todos os parlamentares que assinaram esses projetos de lei’, disse, lembrando que outros países tomaram medidas semelhantes por considerarem a relevância da arte e da cultura para a sociedade. “Nosso esforço é no sentido de não caracterizar o projeto como da oposição, que vá para a votação de maneira robusta, como resultado de uma grande construção de acordo, inclusive com líderes do centro. Sem disputas menores, é todo mundo pela cultura, sem protagonismos exacerbados.”
Na vizinha Argentina, o Ministério da Cultura anunciou no mês passado uma série de programas e incentivos, entre eles um fundo de desenvolvimento que visa a contribuir para a sustentabilidade dos espaços e dos trabalhadores desse ramo no contexto da Covid-19. O subsídio é dividido em três modalidades, a depender da capacidade do local: a) para até 100 pessoas, $ 100.000,00 (pesos ou R$ 8.660,00 mensais); b) de 100 a 200 pessoas, $ 150.000,00 (R$ 12.990,00) e de 200 a 300 pessoas, $ 200.000,00 (R$ 17.320,00). O salário mínimo no país vizinho é de $ 16.875,00 (R$ 1.461,38).
No chat da webconferência acerca da Lei de Emergência Cultural a produtora e pesquisadora Andrea Caruso Saturnino, de São Paulo, digitou que uma lei de intermitência seria uma proposta mais adequada do que editais, aludindo ao regime assalariado para empregadores instituído na França em 1936. O estatuto denominado “intermitente do espetáculo” foi reformulado ao longo dos anos e assegura, entre outros procedimentos, o direito de receber indenizações de seguro-desemprego a artistas e técnicos justificadas por um teto mínimo de horas trabalhadas no ano. “A situação de urgência é uma oportunidade para avançarmos com as políticas culturais vigentes. Precisamos inovar. Pensar a manutenção de espaços deve incluir programação e manutenção de equipes fixas”, emendou Andrea.
A webconferência foi articulada pelo historiador Célio Turino, idealizador do Programa Cultura Viva (dos pontos de cultura) nas gestões Gilberto Gil e Juca Ferreira no extinto Ministério da Cultura; pelo contador de histórias Marcelo das Histórias, da Rede Latino-Americana de Cultura Viva Comunitária); e pelo escritor Alexandre Santini, diretor do Teatro Popular Oscar Niemeyer, de Niterói, mediador do encontro transmitido via canal da Mídia Ninja no YouTube. Ao longo de 3 horas e 40 minutos convergiram, intermitentes, cerca de 250 pessoas à sala de conversa, de distintos Estados, e mais centenas que acompanharam por outras redes sociais.
A cultura é fundamental, sobretudo nesse momento de um Brasil pandêmico. Que a gente entenda que ela é uma infraestrutura da vida, não uma abstração. É feita por trabalhadores da cultura que desde 2016 sofrem com uma censura e violência grandes em relação à desvalorização, aniquilação e asfixia do tipo de cultura que não se quer; porque tem uma cultura que é desejada, mas não é a cultura de todos e nem a cultura para todos
Camila Mota, atuadora do Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona
Responsável pela implantação dos pontos de cultura entre 2004 e 2010, Turino cogitava, dado o recrudescimento da Covid-19, a propósito de “uma assistência financeira para as instituições, entidades e espaços artísticos-culturais, além de uma renda básica para os profissionais da cultura e agentes da cultura viva, como mestres da cultura popular”, conforme escreveu em breve artigo para o site da Revista Movimento.
No encontro pela internet, observou: “Dentre todos os setores econômicos e sociais, a cultura é a mais afetada, porque nossa atividade depende da aglomeração de pessoas. A primeira atividade a fechar, pois boa parte da arrecadação e da receita da cultura vem por meio da bilheteria. Um bom evento cultural junta muita gente e, seguramente, será a última atividade a ser retomada. Mesmo com a reabertura de uma série de outros setores, ela levará mais tempo. É difícil que alguém queira voltar logo a sentar ao lado de outra pessoa no cinema ou no teatro”.
Segundo Turino, costuma-se analisar os efeitos da pandemia sob a perspectiva da saúde, estrito senso, e obviamente da economia, mas ainda não se percebeu a dimensão desse confinamento em termos psicológico, de como incide na subjetividade das pessoas. Na quarentena, fruir artes seria uma das principais válvulas de escape, vide a multiplicação do consumo de conteúdos digitais afins. “Nesse aspecto, considero a cultura o grande remédio. É a alternativa para que esse país volte a se unir. Não se constrói um país à base do ódio, da disputa, da separação, do mau agouro. Cultura é o posto disso, é viva, é o amor, é liberdade, é o futuro”, afirmou.
Mas, afinal, quais as fontes de recursos para implementar a Lei de Emergência Cultural? O historiador disse que a principal delas é a do Fundo Nacional de Cultura (FNC), a descontingenciar, que teria R$ 890 milhões ainda não executados este ano e outros R$ 350 milhões pendentes de 2019, totalizando R$ 1,24 bilhão. O FNC é o principal mecanismo de investimento direto a partir de recursos do orçamento da União e de outras origens sem perder de vista uma distribuição de maneira equilibrada. No cálculo de Turino, isso permitiria destinar R$ 10 mil a pelo menos 15 mil espaços (sejam escolas de arte, de dança, teatro, circo, pontos de cultura, cinemas etc.), demandando R$ 150 milhões mensais por um período de pelo menos quatro meses, ou R$ 600 milhões. Sobraria para se “pensar em editais específicos para produção e circulação adiante”, como disse o historiador.
Em 19 de fevereiro de 2020, Gabriel Morais reportou em O Globo que o FNC, um dos três instrumentos da Lei de Incentivo à Cultura (a Lei Rouanet em vigor desde 1991) distribuiu R$ 742,8 milhões em uma década, de 2009 a 2019, em valores atualizados. No ano de 2010 foram contempladas 461 iniciativas, num total de R$ 344 milhões. No ano passado, 66 projetos receberam cerca de R$ 17 milhões, conforme dados obtidos via Lei de Acesso à Informação.
Também está no radar recursos vindos do Fundo Setorial do Audiovisual. A relatora Jandira Feghali disse que, no momento, o governo não tem limites a cumprir em termos de meta fiscal em função do decreto legislativo que reconhece o estado de calamidade pública gerado pela pandemia do novo coronavírus, por sua vez referendado pelo Superior Tribunal Federal (STF).
Para efeito comparativo, Turino lembra que no melhor momento de execução orçamentária do Programa Cultura Viva, em 2009, foram alcançados cerca de 3.500 pontos de cultura em todo o país, envolvendo 1.100 municípios com um montante mensal de R$ 110 milhões. “Vamos pensar e tentar concretizar que todo mundo receba os recursos em todas as gradações”, afirmou.
No encerramento da webconferência, o historiador previu que os próximos dias demandariam muito esforço para sistematizar a redação da lei. A intenção é chegar a “uma régua” universalizante, que permita a participação de todas as pessoas inerentes ao ofício das artes e das culturas. Entre seus interlocutores em São Paulo, além do diálogo colaborativo com entidades, pesquisadores e fazedores de outros Estados, encontram-se membros do Fórum Nacional de Secretários e Dirigentes Estaduais de Cultura; o grupo Artes da Cena pela Democracia e Liberdade (ATAC), “uma movimentação horizontal que envolve artistas, técnicos, produtores, gestores, coletivos e espaços cênicos de diversos estados brasileiros”; o gestor público Américo Córdula, que atuou no MinC de 2004 a 2011; e o advogado João Brant. Trata-se de esforço por ajuste fino que, espera-se, subsidiará a relatoria.
Pela dignidade
Como se vê, somente agora ganha corpo a possibilidade de uma Lei de Emergência Cultural que leve em conta as especificidades desses profissionais e amadores, formais ou informais, que dão liga à cadeia produtiva transversal no país continental e obviamente diverso em suas manifestações para além dos escaninhos das indústrias convencionais do segmento. Da roda de rima de samba ao baile funk, das artes nas ruas aos grandes eventos, sabemos que tudo parou e o retorno é incerto.
Conclamando os povos do teatro, “que é uma máquina girada por operários de luz, de cena, de vídeo, cenotécnicos”, a atuadora Camila Mota, do Teat(r)o Oficina Uzina Uzona, em São Paulo, declarou que a cultura não é um conceito abstrato. “A cultura é fundamental, sobretudo nesse momento de um Brasil pandêmico. Que a gente entenda que ela é uma infraestrutura da vida, não uma abstração. É feita por trabalhadores da cultura que desde 2016 sofrem com uma censura e violência grandes em relação à desvalorização, aniquilação e asfixia do tipo de cultura que não se quer; porque tem uma cultura que é desejada, mas não é a cultura de todos e nem a cultura para todos. Não é a liberdade da cultura, isso não é vital neste momento no país [com o grupo de extrema direita no poder]”, afirmou.
A atriz situou que o Oficina é um teatro sempre ligado ao aqui e agora, e o aqui e agora dos teatros, de maneira geral, se dá por meio do poder da presença. É assim que a grupo dirigido por José Celso Martinez Corrêa faz política, faz arte. “Preocupa muito essa projeção de como os teatros virão no futuro: não existe voltar aos poucos ao teatro, existe uma urgência de se defender que esse estado que estamos passando seja provisório. Não é um fim que as vidas se apartem. É um estado provisório fundamental de saúde, e cultura é saúde. É preciso que a gente leve a sério uma mobilização social de quarentena. E é muito importante pressionar o Governo Federal e a gente firmar uma aliança vital da cultura com todas as áreas, da ciência e da educação, para que isso seja atravessado da maneira mais digna possível em um país que está resistindo a um processo de cultura e de saúde de seu povo. Isso é uma calamidade na vida cultural do país, e quanto mais se adia e se debocha do isolamento social das populações vulneráveis muito pior isso chegará adiante. A cultura é a cultura dos teatros, dos poetas, dos povos indígenas, da medicina da floresta, da Amazônia, da medicina tradicional, dos povos pretos, do candomblé, dos quilombos. Tudo isso também é cultura e não pode estar apartado desse momento emergencial da cultura”, disse Camila.
Representando o Fórum do Litoral, Interior e Grande São Paulo, formado por artistas, produtores e gestores culturais de mais de 80 municípios do Estado, a diretora Tiche Vianna, do grupo Barracão Teatro, de Campinas, disse para tomar cuidado na elaboração de editais diante da imprevisibilidade de quanto poderão ser executados.
“A cultura tem de aproveitar o lugar em que foi encurralada pelo governo que temos, e todos os direitos retirados, para se unir nos três entes da federação. Em termos estaduais, o PL 253 trata das mesmas exigências, absolutamente emergenciais. Em muitas cidades os artistas estão fazendo conta para devolver o espaço ao proprietário. Isso é um problema, porque normalmente são eles que fazem fruir a cultura dentro de seus territórios”, afirmou Tiche. Em tramitação na Assembleia Legislativa, o PL 253 cria o Programa de Auxílio Emergencial para Trabalhadores do Setor da Cultura e Espaços Culturais em São Paulo.
Em tempo: a Secretaria de Cultura da capital paulista, por meio da Coordenação de Cidadania Cultural, publicou no sábado (9) a 1ª Edição de Premiação de Espaços Culturais Independentes que realizam atividades na cidade. O edital apoiará cem estabelecimentos que possuam histórico de trabalho continuado nas linguagens circenses, teatrais, de dança, música, artes plásticas e outras, assim como pontos de cultura, priorizando a cultura como principal agente de transformação social. O montante de R$ 1 milhão será repartido em única vez entre 50 projetos de R$ 8.000,00 e outros 50 de R$ 12.000,00. As inscrições para o chamamento vão até 7 de junho. “Sabemos que apenas esse edital não vai ‘salvar’ todos os espaços da cidade, por isso precisamos pressionar o legislativo e as três esferas para agirem também na crise; não dá para o menor dos orçamentos públicos de São Paulo ser responsável por toda a área”, escreveu o ator e diretor teatral Pedro Granato, em rede social, coordenador de Centros Culturais e Teatros na prefeitura, acrescentando que a pasta doou mais de 120 mil cestas básicas nos últimos dias. “Seguimos lutando pela cultura nesse momento que parece um pesadelo.”
Desafio estendido a outras paragens. No último dia 5, em carta aberta, o Fórum Nacional dos Secretários e Dirigentes Estaduais de Cultura manifestou apoio à decretação da Lei Nacional de Emergência Cultural entendida como instrumento essencial para garantir proteção mínima necessária ao setor. “Nesse contexto, se torna imperativo o descontingenciamento e a obrigatória execução do Fundo Nacional de Cultura, detentor dos recursos que serão acessados com o amparo da lei instituída, beneficiando a complexa rede que sustenta a Cultura Brasileira. Os Estados, por nós aqui representados, cumprindo o seu papel no Pacto Federativo, devem se aliar a essa tarefa na execução das políticas, garantindo a capilaridade da distribuição dos recursos em todo território nacional”, subscrevem representantes de secretaria, fundação, agência ou superintendência.
Secretário de cultura do Ceará, Fabiano Piúba anotou na webconferência três linhas defendidas pelo o referido fórum: 1) o direito à arte e à cultura como fator de humanização e promoção da saúde, geração de renda, movimentação da economia criativa e simbólica da cultura e como proteção social para os trabalhadores da cultura neste momento; 2) o federalismo cultural como ênfase no fortalecimento do Sistema Nacional de Cultura e que o projeto de lei em debate descentralize os recursos e firme um mecanismo que garanta o repasse fundo a fundo; e 3) implantar ferramentas de sistemas de informação que conectem cadastros dos Estados e municípios. Em seu Estado, compartilha Piúba, desde 2016 os editais são cumpridos por meio do cadastro estadual que hoje soma 33. 589 agentes culturais, sendo 29.010 deles pessoas físicas e 4.579, jurídicas.
O secretário de Cultura de Niterói, Victor de Wolf, informou que a cidade fluminense já gastou cerca de R$ 15 milhões em programas e pagamentos diretos a artesãos ou funcionários ligados a escolas de dança, a teatros e mesmo a salas de cinema. “Conseguimos dar uma salvada nesse setor por um pequeno momento, mas o impacto vai continuar sendo grande, sabemos que Niterói não é uma ilha”, disse. Wolf aludiu ao estudo da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) que prevê que a paralisia na prestação de serviços artísticos e culturais fora do domicílio por três meses acarretaria queda de R$ 11,1 bilhões no valor da produção da economia brasileira.
Nas considerações finais da nota técnica Efeitos da Covid-19 na economia da cultura no Brasil, publicada em 23 de abril e elaborada por cinco pesquisadores do Departamento de Ciências Econômicas da UFMG e do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da UFMG (Cedeplar), pode-se ler:
“Pelo seu caráter meritório, de expressão de valores e tradições, informacional, de estímulo à criatividade e de entretenimento da população, o setor cultural de um país deve ser impulsionado por meio de políticas públicas que garantam sua produção, divulgação e geração de renda para aqueles nele ocupados. Em momentos como os vividos durante a pandemia de Covid-19, a pertinência da formulação de políticas públicas que o incentivem é gritante, posto que todas as atividades artístico-culturais desenvolvidas fora do domicílio estão paralisadas pelo fechamento dos espaços culturais, e, conforme mostrou este estudo, o impacto dessa paralisação se espraia ao longo da cadeia produtiva do setor. Sendo assim, sugerimos propostas ou reiteramos algumas já feitas por parlamentares da esfera federal, por Secretarias estaduais e ou municipais de Cultura.
Medidas de curto prazo:
– pagamento de renda mínima para os artistas e trabalhadores que apoiam a produção artístico-cultural como técnicos de montagem, de cenografia, de som, entre outros, haja visto que mais de 70% são autônomos;
– suspensão de pagamentos de contas de serviços públicos, como energia e água, pelo tempo em que os estabelecimentos culturais estiverem fechados;
– exoneração fiscal dos tributos diretos, como IPTU, IRPF, IRPJ;
– dilatação de prazos referentes ao cumprimento de projetos financiados por leis de incentivo e/ou editais públicos e privados;
– abertura de programa de crédito subsidiado para assegurar sustentabilidade da produção artística, como produção de textos, de roteiros, de projetos cenográficos e coreográficos, entre outros;
– abertura de editais para fomentar produção artística cultural veiculada nas redes sociais e internet.
Medidas de médio prazo:
– planejar o retorno dessas atividades de modo a assegurar sustentabilidade econômica do setor e confiança do público quanto às medidas preventivas em relação a aglomerações;
– manter renda mínima e apoios de curto prazo até o restabelecimento de autonomia financeira;
– expansão do investimento público em atividades artístico-culturais, priorizando as regiões mais pobres e que contam com menor participação da iniciativa privada;
– retomar políticas de formação de público e democratização de acesso, aproveitando também da oportunidade que o acesso à cultura pela internet trouxe durante o isolamento social;
– formular políticas públicas transversais que estimulem atividades artístico-culturais combinadas a dois outros setores, o da educação e do turismo.”[1]
Na percepção da secretária de Cultura de Ribeirão Preto (SP), Isabella Pessotti, a situação pela qual passa a cultura deflagra uma situação anterior de sucateamento. “A Covid-19 veio mostrar que precisamos reconstruir as estruturas do Sistema Nacional de Cultura. Operacionalizar o sistema, colocar os fundos setoriais novamente para funcionar. Vejo uma força e uma união na classe, inclusive no audiovisual, uma disposição maior se comparada a ex-colegiados nas feituras das políticas públicas”, afirmou. “Os municípios precisam se preocupar em criar e manter ativo seu conselho de cultura, estar alinhado, ter ponto de cultura funcionando. Num momento como esse o Sistema Nacional de Cultura salvaria não só o fazedor de cultura, como arte-educadores, o trabalhador autônomo que não conhece CLT, enfim, toda a cadeia produtiva. A potência de geração de imposto e renda que costuma ser subestimada pelas secretarias da Fazenda. O que a cultura pode retornar é maior numericamente do que se investe nela, isso já é comprovado por pesquisas.”
O professor Rosildo Rosário, morador em Saubara, no Recôncavo baiano, integrante de um grupo de marujada em sua cidade, reforçou a importância de a redação do PL 1075 abarcar a cultura popular. “De maneira que chegue na ponta, em entidades que não tenham organização jurídica, por exemplo. O patrimônio imaterial também merece atenção”, disse, acrescentando receio da gestão do presidente da Fundação Palmares, o jornalista Sérgio Camargo, e sua sistemática defesa negacionista do racismo.
Também da Bahia, o agente cultural Alexandre Aguiar apresentou na conversa online uma das propostas mais inusitadas: que as prefeituras lançassem edital para conceder a empresas construírem e gerirem drive-in a céu aberto, durante o período da epidemia, de modo que o público assistisse aos filmes de dentro dos carros, a exemplo do que funciona em Brasília desde 1973 e virou opção de entretenimento nesse período.
A empresária de escola de dança Milena Malzoni, de São Paulo, disse que “o setor mais discriminado, que é o da cultura, virou a salvação emocional de todo mundo nesta quarentena”. Argumentou sobre os benefícios da fruição de livro, filme, música ou mesmo uma aula virtual de dança de salão. Também citou o artigo 215 da Constituição: “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.”
Em nome do movimento Artigo 5º, arregimentado por artistas de diferentes Estados em defesa da liberdade de expressão e contra qualquer ameaça de volta à censura no Brasil – a ação Cadê Regina? partiu dessa turma, recentemente em parceria com o ATAC –, a diretora teatral Regina Galdino, de São Paulo, propôs que se faça varredura em várias verbas que já existam e precisam ser liberadas para que cada Estado e município possa empregá-las com urgência. Ressaltou observação que escutou recentemente do produtor cultural Alexandre Vargas, de Porto Alegre, acerca da questão da autonomia. “Se deixar esse vazio cultural a partir do desmonte que já vinha acontecendo desde 2016, desidratando a cultura, a gente, enquanto Nação, vai virar alvo fácil, vão atingir nossas expressões que são tão fortes, como o cinema, o teatro, o circo, o teatro de rua, a dança, a música erudita, entre muitas outras”, disse. “É necessário contemplar todas as facetas para enfrentar essa pandemia.”
Já passava das 23h30 quando a palavra na webconferência foi dada ao ator Sérgio Mamberti, de 81 anos, gestor do MinC nas gestões Gil-Ferreira exercendo cargos como o de presidente da Fundação Nacional de Artes (Funarte) ou à frente da Secretaria da Identidade e Diversidade Cultural (SID), entre outros. Ele não escondeu a emoção. “Eu me contive para não falar durante essa reunião maravilhosa. O que as pessoas estão dizendo é tão importante, mostra que o legado que construímos está vivo, embora desarticulado por ausência de uma política federal. Mas está vivo, e isso importa. A gente tem de fazer com que a cultura se manifeste claramente não apenas pelos seus direitos, mas também que se engaje no movimento nacional pela democracia no Brasil. Não é uma luta simples, ela é árdua, como sempre foi a luta da cultura. Mas a cultura é o cerne da resistência, foi assim na ditadura militar. Temos de reconquistar esse espaço e nos unir aos movimentos sociais, no sentido de fazer com que a gente possa conquistar os nossos direitos fundamentais”, afirmou o ator que, no dizer do cearense Marcos Rocha, da Comissão Nacional de Pontos de Cultura, “trouxe para a cultura uma perspectiva mais política e antropológica, de redefinição e mesmo de um marco civilizatório e democrático que se ensaiou e se fez no Brasil por muitos anos”, referindo-se ao trabalho da equipe de Mamberti na SID.
Vice-presidente da Comissão de Cultura da Câmara, a deputada Maria do Rosário (PT-RS) endossou que estamos em um embate pela democracia no Brasil. “Não posso deixar essa reunião ultra-representativa sem falar da importância que esse segmento tem pela defesa da democracia, da liberdade, contra a censura, contra o gabinete do ódio, já que estamos numa jornada para mudar isso tudo. Quem atua na cultura, desde o artesanato até quem estuda economia criativa, são as pessoas mais atacadas, ao lado dos educadores, porque vocês representam a consciência desse país”, afirmou, sublinhando os componentes político, social e econômico da arte e da cultura.
.:. Texto atualizado em 13 de abril de 2020.
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[1] A nota técnica Efeitos da Covid-19 na economia da cultura no Brasil foi produzida pelos pesquisadores Ana Flávia Machado, Débora Freire, Rodrigo Cavalcante Michel, Gabriel Vaz de Melo e Alice Demattos.
Deputados e deputadas federais que assinaram o Projeto de Lei 1075/2020
Benedita da Silva – PT/RJ, Maria do Rosário (PT-RS), Áurea Carolina (PSOL-MG, do mandato coletivo Gabinetona), Alexandre Padilha (PT-SP), Alexandre Frota (PSDB-SP), Alice Portugal (PCdoB), Arlindo Chinaglia (PT-SP), Airton Faleiro (PT-PA), Carlos Veras (PT-PE), Chico D´Ângelo (PDT-RJ), David Miranda (PSOL-RJ), Edmilson Rodrigues (PSOL-PA), Érika Kokay (PT-DF), Fernanda Melchionna (PSOL-RS), Frei Anastácio (PT-PB), Gleisi Hoffmann (PT-PR), Jandira Feghali (PCdoB-RJ), Joênia Wapichana (Rede-RR), Jorge Solla (PT-BA), Lídice da Mata (PSB-BA), Marcelo Freixo (PSOL-RJ), Margarida Salomão (PT-MG), Marília Arraes (PT-PE), Natália Bonavides (PT-RN), Paulo Teixeira (PT-SP), Tiririca (PL-SP) e Túlio Gadelha (PDT-PE)
Deputados federais que assinaram o Projeto de Lei 1089/2020
José Guimarães (PT-CE) e André Figueiredo (PDT-CE)
Deputados e deputadas federais que assinaram o Projeto de Lei 1251/2020
Aline Gurgel (Republicanos-AP), Júlio César (Republicanos-DF), Celso Russomano (Republicanos-SP), Tereza Nelma (PSDB-AL), Liziane Bayer (PSB-RS), Gleicy Elias (Avante-MG) e Aline Steutjes (PSL-PR)
Deputado que assinou o Projeto de Lei 1365/2020
Tadeu Aguiar (PSB-PE)
Isa Penna (PSOL), Monica
da Bancada Ativista (PSOL), Erica Malunguinho (PSOL), Carlos Giannazi (PSOL),
Leci Brandão (PCdoB) e Márcia Lia (PT)
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.