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Artigo

Drama do endereçamento

16.6.2020  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Arslan

Nova ação do Centro Cultural São Paulo revela mais uma face de como a arte presencial busca maneiras de se reinventar na crise humanitária da Covid-19. Treze pessoas que escrevem para teatro foram convidadas a endereçar textos curtos não para a cena, dessa vez, mas para alguém de livre escolha que também tenha praticado o ofício. A maioria dos destinatários da série 13 cartas imaginadas morreu, exceção a duas, uma delas filha da ficção.

A jornalista e dramaturga fluminense Dione Carlos (autora de Revoltar e outras 16 peças) abre na terça-feira (16) escrevendo à poeta e ensaísta Leda Maria Martins, também fluminense radicada em Belo Horizonte, professora associada da UFMG com pós-doutorados em rito, dramaturgia, teatralidade e teorias da performance, autora de A cena em sombras e Afrografias da memória, “duas obras-primas que nos fazem refletir sobre a herança afro-diaspórica”, segundo a missivista.

A Ciência mostra que estamos diante de uma espécie de pneumonia severa, com alto grau de letalidade. É uma volta ao período das trevas; a Ciência e o conhecimento acumulados foram transformados em seres pestilentos e são apedrejados

Cidinha da Silva escreve a Carolina Maria de Jesus

Com luz do sol incidindo sobre seu rosto durante a leitura, Dione celebra a trajetória da mulher “que levou a encruzilhada para dentro da Academia”. Lembra uma citação dela: “Nossas ancestrais eram pluriversais, não podemos optar pela ignorância”. E elogia o pensamento vivo de quem diz o que faz. “Seu conhecimento é sabedoria. Vejo suas obras como convocações poéticas”, continua.

A professora cujo nome batiza o Prêmio Leda Maria Martins de Artes Cênicas Negras de Belo Horizonte é saudada com respeito profundo: “Esta carta é uma declaração de amor, de quem aprendeu a lhe amar em corpo, espírito, palavra escrita, falada, encenada, pensamento vivo”, declara Dione. “Que o tempo da ancestralidade nos liberte de um passado que não passa, de um presente que não acontece, de um futuro que não chega. Que toda dramaturgia seja uma oferenda para tratar o passado, alimentar o presente e apontar futuros melhores.”

Divulgação Leda Maria Martins
Lilian Dias Dione Carlos

Mulher e transexual, a autora, diretora e atriz Luh Maza inventou sua interlocutora por afinidade: Abá de Conta-Contos, definida como uma travesti preta e escritora de teatro no século XVIII. “Andava triste sem encontrar destinatária para minha emoção. Queria escrever para outra mulher. Outra negra. Outra trans. Precisava também ser outra dramaturga. E eu achava bom ser brasileira. Representatividade”, contextualiza a autora nascida no Estado do Rio de Janeiro e atuante em São Paulo.

Com domínio de enquadramento no vídeo, Luh posiciona-se na transversal, com  parede de pedras ao fundo. Lança olhar direto à câmera nas passagens mais agudas. Demonstra acuidade no relato de sua personagem ao fundir elementos autobiográfico à plausibilidade histórica. Cita Xica Manicongo, “nossa mana”, alcunha de Francisco Manicongo, uma africana vinda do Congo, escravizada e vendida a um sapateiro na cidade de Salvador, em 1591, conforme aborda o pesquisador Luiz Mott no livro Homossexuais da Bahia: dicionário biográfico (séculos XVI-XIX), de 1999.

Presente na antologia Dramaturgia negra, assim como Dione (livro com 16 textos organizado por Eugênio Lima e Julio Ludemir, publicado pela Funarte em 2019), Luh assinou roteiro para a temporada de 2019 da série Sessão de terapia, exibida na GNT e na plataforma Globoplay. Por isso conta a Abá mais um feito: “ano passado escrevi e dirigi a primeira obra criada, musicada e atuada por mulheres trans no Theatro Municipal de São Paulo [Transtopia]. Dez minutos de um dia para fazer História. Aquele palco tão erudito ocupado por treze travas maravilhosas. E a plateia? Bichas, fanchas, não-bináries e queers de todas as letras. Desculpa, eu sei que você não conheceu Judith Butler, mas quer saber? Eu acho que você era queer pra caramba”. A estadunidense Judith é filósofa e uma das pensadoras da Teoria Queer, segundo a qual os gêneros são construções sociais.

Criticando os privilégios brancos e cisgêneros (indivíduos que se identificam, em todos os aspectos, com o gênero atribuído ao nascer em função do seu sexo biológico), inclusive no meio artístico, Luh caminha para o ponto final da carta com certa esperança. “Nós estamos aqui, Abá: transpofagizando a dramaturgia. E agora, quando o que era antes não é mais e a incerteza do que vem assusta a todos, eu penso como é importante rever a história. A sua ausência nos revela”.

Rui Mendes Luh Maza

Algumas perguntas mobilizaram o curador de teatro do CCSP, o jornalista e crítico Kil Abreu, ao propor essa iniciativa a 13 dramaturgos e dramaturgas. “O que seria desta mídia tão pessoal quanto antiga, a carta, se usada hoje, tempo da comunicação instantânea em que o pensamento fabulado já não espera, suspenso, pela resposta? E o que seria, para artistas de agora, imaginar cartas endereçadas a escritores e escritoras de outras épocas?”, cogitou.

Fonte de inspiração em diferentes campos da arte, o procedimento da narrativa por meio de correspondência é conhecido na literatura pelo menos desde o século XVIII. Até hoje perpassa demais linguagens como o audiovisual, as artes plásticas e as artes cênicas. Citemos o romance epistolar de Goethe, Os sofrimentos do jovem Werther (1774), no qual os escritos do protagonista a um amigo é publicado em livro após sua morte.

Em Cartas portuguesas (1991), Bia Lessa dirigiu as atrizes Luciana Braga e Carla Camurati no espetáculo baseado na correspondência de uma freira portuguesa do século XVII com seu amante, a madre Mariana Alcoforado e um oficial militar que servia na França. A adaptação foi assinada pelo cineasta Julio Bressane.

Ao tomar um “fora” por e-mail, cuja frase final era “Cuide de você”, a artista e escritora francesa Sophie Calle se valeu da experiência pessoal para conceber uma instalação de mesmo nome envolvendo textos, fotografias e vídeos. Para tanto, convidou 107 mulheres a interpretarem a mensagem do ex-namorado com quem vivera por dois anos. A mostra passou pelo Brasil em 2009.

No Festival de Cannes de 2014, o cineasta franco-suíço Jean-Luc Godard enviou uma mensagem por vídeo de nove minutos pedindo desculpas ao público e aos organizadores por não poder comparecer ao evento que exibiu Adeus à linguagem, filme vencedor do prêmio do júri naquele ano.

São muitas as recorrências. Evidentemente, a série 13 cartas imaginadas se dá sob a nova ordem mundial em transe. Além de temas incontornáveis na pauta dos direitos humanos na contemporaneidade, como o racismo, o sexismo e a LGBTQI+fobia, parte dos textos (veiculados em vídeos de 5 minutos em média cada um) toca na premência da pandemia. Por vezes não diretamente, como Marcos Gomes ao gravitar o leito de morte de Anton Tchékhov (1860-1904). Há cerca de dez anos o dramaturgo, diretor e ator era um dos atuantes no espetáculo O ruído branco da palavra noite, da Companhia Auto-Retrato, com direção de Caetano Gotardo e Marina Tranjan. Foi por meio dessa montagem, baseada no livro O cotidiano de uma lenda – Cartas do Teatro de Arte de Moscou, de Cristiane Layher Takeda, editado em 2003 pela Perspectiva, que conheceu a obra do autor russo, morto no mesmo dia de seu pai, um 2 de julho, e nascido na mesma data da avó materna, um 17 de janeiro. Bem como a futura esposa, com quem contracenava no referido espetáculo, hoje também mãe de seu filho.

“Essas pequenas coincidências, insignificantes, meu caro Anton, só existem porque em uma vida como a sua cabem todas as outras, se não inteiras, pelo menos em partes, talvez tão pequenas, que nem nos damos conta, quando saímos do teatro, que uma delas ficou lá, grudada no assento. O que espanta é ter deixado em seu lugar um vazio tão grande. Essas pequenas vidas que se extinguem sozinhas, insignificantes, como Firs [o criado ancião] ao final da sua peça O jardim das cerejeiras, serão choradas em segredo por nós, agora e sempre”, afirma Gomes, com gravidade, ele que escreveu Luiz fria, Recursos humanos e Origem destino, entre outras.

Reprodução Anton Tchékhov
Nelson Kao Marcos Gomes

Membro dos grupos XIX de Teatro e Teatro Kunyn, o ator e dramaturgo Ronaldo Serruya pesquisa a questão queer nas artes cênicas desde 2009. Sua videocarta faz uma ponte entre a transmissão do vírus HIV, da Aids, que a geração do autor franco-argentino Raul Damonte Botana, o Copi (1939 – 1987), conheceu de forma dramática, e o novo coronavírus Sars-Cov-2 em curso. São diagnosticadas falsas moralidades, hipocrisias, culpas.

“Quem diria, hein Copi? Depois que vimos nossos buracos humilhados, vilões anais expostos à sanha dos moralistas em headlines sensacionalistas de toda ordem, eis que agora é o simples aperto de mãos que se interdita”, diz Serruya, camisa vermelha, uma planta saltando à direita da imagem. O Kunyn concebeu Desmesura, em 2017, espetáculo inspirado na vida e na obra do também ator e desenhista de textos já conhecidos em palcos brasileiros, como A geladeira e Homossexual ou a dificuldade de se expressar.  

“Termino te dizendo que você ficaria estarrecido (ou não) em saber que a ciência e a política estão juntas desde o início para evitar a propagação do novo mal. Inimaginável antes, não? Eu não estava lá, quando tivemos que ser nós, apenas nós, tantas como nós, sozinhas, cheias de feridas e escarras, cadavéricas, mal se aguentando em pé, a exigir uma vida qualquer. Porque as bichas valem quase nada. Não valiam na época. Valem ainda tão pouco. A tristeza é a mesma. E é imensa. Mas, ainda assim, sempre é possível escolher RIR”.

Reprodução Copi
Divulgação Ronaldo Serruya

Celular em mão, pulsando closes quando risca o clima de denúncia, uma planta ao lado para equilibrar a imersão, a dramaturga, diretora, atriz e professora Ave Terrena chama o irlandês Oscar Wilde (1854-1900) para os trópicos e o conclama a “enviadescer”, citando a poeta Lina Pereira, a também atriz, cantora e compositora Linn da Quebrada. “Você ficou dois anos na cadeia. Isso acontece com tanta gente no Brasil… Geralmente, mais anos. Por ser quem é… Você foi considerado doente, culpado, criminoso. Sua luta silenciosa, quantas de nós não vivemos no desfiar do tempo? O veto moto-contínuo, o NÃO carimbado de cara na nossa cara”, conta-canta Ave, autora de Segunda queda, As 3 uiaras de SP City e Lugar da chuva.

De repente, a videocarta ao autor de De profundis, texto que estruturou como carta para destilar mágoa pelo outrora amante pivô do escândalo que o levou ao cárcere, comunica notícias da vida na cidade da remetente. “Tarântula, Rondão, Arrastão, Limpeza, operações malditas, quantas travestis perseguidas, presas, exterminadas só por tentar trabalhar, por teimar em não morrer, sendo forçadas a ler pintado no muro ‘Limpe São Paulo, mate um travesti por noite’. Quantas não cortaram os próprios pulsos pra ser soltas da cadeia, porque tinham medo do sangue? Quanto sangue derramado. Quantos homens trans apagados da história, impelidos ao suicídio? E pros que ficam, um luto atravessado, sem tempo de lamentar. Um nome falso escrito na lápide – a gente já nasce tendo que aprender a dublar. Quem não vive, quase nunca entende.”

Reprodução Oscar Wilde
Luciana Bati Ave Terrena

Sentado ao lado de uma mesa, no centro dela um vaso com flores que não se sabe se artificiais, Lucas Mayor opta pela imagem de si em silêncio enquanto discorre a própria voz off em tom naturalista-realista para evocar o autor, cineasta e ator Domingos Oliveira, morto em março de 2019, aos 82 anos. Começa assim: “Você não sabe, mas quando estive no Rio, ano passado, visitei seu antigo apartamento em Copacabana. Fiz uma foto dele e é pra essa foto que eu fiquei olhando esses dias enquanto pensava em coisas que eu queria te dizer”, fala o escritor que publicou três livros de crônicas e há sete anos faz a curadoria do projeto Terça em Cena, no Espaço Cultural Cemitério de Automóveis, voltado à difusão de peça curtas.

O apartamento de Oliveira e o do próprio Lucas serão explorados com confessada obsessão. “Antes vivíamos em apartamentos ou em casas, mas agora são os apartamentos e as casas que vivem em nós. Estamos tentando nos habituar a isso”, justifica, trazendo citações à companheira dele, Priscilla Rozembaum, ao amigo Paulo José e a artistas e pensadores influentes como Fellini, Truffaut, Marx, Freud e Bach, este incorporado à trilha. Entre os filmes que o homenageado dirigiu estão Todas as mulheres do mundo e Separações.

“Desde 1963, com a sua primeira peça, Somos todos do jardim da infância, que você montou na varanda desse mesmo apartamento e arrumou sérios problemas de convivência com o síndico e os condôminos, você tem dito a quem quer que seja que o teatro é uma combinação estranha, em que os atores fingem que é verdade, tentam fazer de verdade uma coisa que eles têm certeza que não é, que é mentira, e os espectadores também, sem ter combinado nada com eles, sentam nas cadeiras e ficam querendo crer que aquilo é verdade sabendo que é mentira, e que isso é uma coisa complexa e sofisticadíssima, que está aí há mais de dois mil e quinhentos anos e que não é possível, por exemplo, a um marciano entender isso, que é coisa de gente mesmo. (Gente bem doida, convenhamos)”.

Fábio Seixo Domingos Oliveira
Arquivo pessoal Lucas Mayor

Um quintal com jardim serve de cenário para Solange Dias sentar-se e ler, em tom confessional, sua “saudade cheia de imagens” de João das Neves, morto em agosto de 2018, aos 84 anos. “Estou com saudade de alguém que sempre acreditou na possibilidade da arte para transformar as pessoas, este país e o mundo e, pra isto, você se colocava inteiro em tudo que fazia. Sinto falta deste sentimento de alguém que lutava por uma arte radicalmente livre de todas as amarras, mesquinharias e hipocrisias. Que amava incondicionalmente este Brasil, este trem que vive descarrilhando. Você, que é um brasileiro e tanto!”, exalta a dramaturga.

“Meu amigo, como contar pra você sobre o universo de emparedados em que estamos vivendo neste momento?”, coloca ela nas primeiras linhas. A diretora, dramaturga e educadora integrante do grupo Teatro da Conspiração tenta localizar o cofundador doso históricos Centro Popular de Cultura (CPC), extensão da UNE, e Grupo Opinião, ambos no Rio de Janeiro, quanto aos desmandos dos dias atuais que remetem ao período da ditadura civil-militar brasileira confrontada pela geração dele.

O autor de O último carro é apresentado a um quadro sem retoques. “Aí, João, mais do nunca, nosso trem continua correndo desgovernado, sem rumo, sem freios e, pior, com maquinistas maníacos por corpos despedaçados de sonhos e utopias. Estamos numa viagem drástica, em discursos de conduta que definem quem pode viver ou morrer de acordo com os ganhos ou perdas numa bolsa de valores em que a vida de uns tem muito mais valor do que a vida de outros”.

André Seiti/IC João das Neves
Divulgação Solange Dias

Em outra vertente, Rudinei Borges dos Santos joga com a prosa poética que tanto admira na prática e no pensamento de seu destinatário, o andaluz Federico García Lorca (1898-1936), fuzilado pelos franquistas durante a Guerra Civil Espanhola. Passados 86 anos, ele lança na frase inicial a sua bússola de navegação pela palavra-imagem. “O coração insone dorme comigo no ventre dos pássaros”, deita o verbo o dramaturgo de boina postado ao lado da tela de computador que exibe uma foto em preto e branco de Lorca envolto em cores de aquarela.

Em sua elaboração afetiva de variadas paisagens, Santos deixa entrever aspectos de sua própria dramaturgia, como em Dezuó: breviário das águas. Tendo a filosofia e a educação como eixos de sua pesquisa e criação continuadas, reverencia o autor de Bodas de sangue feito um peregrino em pleno centro de sua jornada.

“Qual é o teu nome? A tua sina? O teu juramento? São crisálidas. O ensombro sobre a multidão de atiradores. A parede invisível dum cômodo sem alicerce. A janela onde avistam o descampado e a catedral. A grande marcha sobre a terra estrangeira. A grande comunhão dos homens. A fábrica onde cozem azougues. A cicatriz da tua perna esquerda. O aleijão no abdômen. O suor nas têmporas. A nudez do córrego onde nadam os meninos de Fuente Vaqueros. O vilarejo onde caminhas em Andaluzia, antes do rio secar. A beira do penhasco como o mormaço na garganta. Não há remendos nem ataduras. A tarde acode o fim do dia, a ida aos recônditos mais distantes. E vou contigo até Granada para te dizer das cotovias que vi na planície. Para te dizer da estrada estreita que abre, entre paragens, pelo deserto enquanto caminhas. Sou o deserto enquanto caminhas”, aderna Santos.

Reprodução Federico García Lorca
Samuel Kantor Rudinei Borges dos Santos

“Olá meu camarada”, pisa devagar a atriz, dramaturga e redatora publicitária Angela Ribeiro, cofundadora da Companhia Bruta de Arte. Nos próximos cinco minutos e 42 segundos ela vai conciliar as emoções do riso e do choro na sua conversa com o alemão Bertolt Brecht (1898-1956). “Eu tenho pensado tanto em ti quando eu preciso de coragem, pra perguntar como é que você sobreviveu a tantas guerras? A gente está vivendo uma guerra aqui. Mas é uma guerra diferente, é uma guerra que parece que pra você vencer precisa ter mais humanidade e dividir, só que pra algumas pessoas isso é tão violento e tão difícil”, argumenta ao lado de uma janela com rede de proteção, no que parece ser a varanda de um apartamento, bem-acompanhada por duas plantas, uma delas a espada-de-são-jorge, cujas fibras são resistentes e elásticas.

“Quais são os seus planos pra hoje Brecht?”, diz Angela, reafirmando cumplicidade de ideias com o poeta e dramaturgo e sua companheira, Helene Weigel (1900-1971), trabalhadores da arte que estão entre os pilares do Berliner Ensemble, inaugurado em 1949, no lastro do pós-guerra, palco de peças como O círculo de giz caucasiano e Mãe coragem. “Aliás, mande um abraço imenso pra essa mulher! Que mulher. Você sabe né, que esse homem histórico que você se tornou se deve também à caminhada ombro a ombro com ela. Tortuosa muitas vezes, mas eu precisaria de uma segunda carta pra falar sobre isso. Enfim… Cada encontro tem os seus acordos e quem sou eu para julgá-los. Mas é uma mulher imensa”.

Recuperado o fôlego e o brilho no olho após lágrimas, a dramaturga emenda: “A gente precisa agora pensar num antídoto pra tudo isso? Um espasmo de coragem, alguma coisa inabalável. Vocês são bons nisso! Algum tipo de poesia que nos dê coluna. Ando matutando muitas coisas. E tenho pensado muito e cada vez mais que o amor é uma arma violenta contra todo esse egoísmo que tem nos assolado. Amor é político. E é capaz de nos mover até os lugares mais impossíveis. O que é que vocês acham?”. Longo silêncio seguido de suspiro, misto de cansaço, desgosto, tristeza, alívio e desejo.

Reprodução Bertolt Brecht
Divulgação Angela Ribeiro

Os excluídos e respectivos exploradores em peças que radiografaram os ciclos dos bandeirantes a propósito do ouro, do café e da indústria são a tônica do paulista Jorge de Andrade (1922-1984), eleito pelo dramaturgo, ensaísta e tradutor Aimar Labaki. A perspectiva sociológica insinuada na introdução, cantarolando Caros amigos, de Chico Buarque, jamais perde de vista o ato criador da escrita, tampouco a camada de fina ironia crítica. “A direita hoje chama de comunista qualquer um que não concorde com ela. De Oswaldo Cruz a Tiririca, tudo comunista. Já a esquerda, bom, a esquerda também chama de neoliberal tudo que vai da falecida social-democracia até Hitler. Não votou no PT? Fascista. Se bem que no caso da última eleição, quem não votou no PT, ajudou sim a eleger um fascista”, faz o aparte desviando da tela do computador, no que aparenta ser o escritório de trabalho em casa, para mirar a câmera do smartphone que o registra.

“Tua obra pode ser lida como uma grande busca pelo Pai perdido, resultando na reconciliação possível com o próprio passado. Teu gênio foi conseguir falar de si mesmo e de nossa tribo ao mesmo tempo. Hoje, mais uma vez, essa busca pelo Pai pode ser uma metáfora perfeita para nossa agonia coletiva. Somos um povo vivendo o grande desamparo de ver uma utopia – ou uma ilusão coletiva dissolver-se no ar. Se o interregno 1945-1964 foi a primavera de um grande verão que nunca houve, 1985-2016 foi um verão que não teve Carnaval no final. Nem outono. Fomos direto pro inverno”, diz Labaki, autor de textos como A boa, O anjo do pavilhão cinco e A valsa de Lili.

Participante do Arte contra a Barbárie, movimento que abriu mão de lideranças personalistas e foi impulsionado pelo teatro de grupo no final dos anos 1990 – decisivo na elaboração e implantação do Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, tornado lei em 2002 –, ele se debruça sobre o legado de Andrade e o correlaciona às especificidades de quem se empenha no estudo e na criação dramatúrgica na atualidade. “Dei essa volta para te dizer que escrever para teatro, nesse sentido, de escrever uma obra poética que sirva de base para uma criação cênica não é mais a definição certa pro melhor teatro feito pelas novas gerações. É claro, sempre vai ter uns malucos que continuam a escrever. Tão aí o Alexandre Dal Farra e a Silvia Gomez levando a tocha com grande qualidade e voz própria. Mas para os coletivos de produção, nós, escritores, estamos na borda da franja. Fazemos bonito na renda em volta, mas não têm lugar pra nós na trama do tecido. Uma exceção talvez seja o Newton Moreno, mas aí é gênio, e gênio não se explica”, raciocina Labaki, ágil na oralidade que flerta com facilidade com a telenovela, reflexo da função de roteirista que também exerce, assim como Andrade o fez, por exemplo, em O grito, exibida pela Rede Globo em 1976, na faixa das 22h, em substituição a Gabriela e sucedida por Saramandaia.

Divulgação Jorge Andrade
Divulgação Aimar Labaki

Ladeada por duas plantas, uma comigo-ninguém-pode e uma pimenteira, Cidinha da Silva faz saber a Carolina Maria de Jesus (1914-1977), mineira de Sacramento, a tempestade perfeita que o país enfrenta, em especial a população empobrecida, na conjunção da Covid-19 com o instinto genocida do grupo político instalado em Brasília desde o ano passado. Também alude ao conflito bélico para delimitar a “guerra chamada morte aos pretos, aos indígenas, aos quilombolas, aos pobres, ao povo sem-teto, aos catadores, aos idosos, aos sexual-dissidentes, aos trabalhadores de baixa renda, a todas as pessoas vulneráveis e indesejáveis”, enumera a escritora de 17 livros com títulos como Um exu em Nova York, #Parem de nos matar!, Kuami e O teatro negro de Cidinha da Silva.

“A Ciência mostra que estamos diante de uma espécie de pneumonia severa, com alto grau de letalidade. É uma volta ao período das trevas; a Ciência e o conhecimento acumulados foram transformados em seres pestilentos e são apedrejados”, continua em seu informe a Carolina, que escreveu seu livro de estreia, Quarto de despejo, em 1960, com estilo e conteúdo forjados pelas próprias condições de existência como moradora da favela do Canindé, na zona norte de São Paulo. Trabalhava principalmente como catadora de papel e assim criou sozinha três filhos, enquanto encontrava tempo para anotar a observação permanente do mundo e de si em dezenas de cadernos.

“O mais terrível, Carolina, é que essas mortes poderiam ser evitadas se os governantes se preocupassem com os mais fracos, como você gostava de dizer; se fossem adotadas medidas que buscassem salvar as pessoas, não a economia. O cheiro da morte infesta tudo e coloca o Brasil no centro do noticiário internacional”, reporta Cidinha. “A medida mais eficaz pra evitar a disseminação do vírus é um negócio chamado isolamento social, as pessoas precisam ficar em casa e o comércio, parques, indústria, precisam ficar fechados, não podem acontecer grandes eventos com aglomeração de pessoas. Tem gente que pode, mas não quer ficar em casa. Tem gente que não tem casa. Tem gente que tem casa minúscula, não tem segurança alimentar, água corrente e limpa, eletricidade, internet, salário a receber no final do mês, alguma reserva financeira ou fonte de renda mantida durante a quarentena. Essas pessoas se perguntam: ‘O que vamos comer hoje? Terei comida para mim e para os meus amanhã? Quantas refeições conseguiremos fazer até o fim da semana?’. Perguntas que você conhece tão bem, não é Carolina? Posso imaginar sua carinha serena ao ouvir essas notícias, nada disso te espanta, não é? Iniquidade é sobrenome da vida que você viveu e testemunhou.”

Dito em voz firme e concentrada, o texto ainda lembra de crianças e adolescentes negros e negras assassinados nos morros e no asfalto das metrópoles e interiores. A derradeira frase transmite mais alento, apesar da correnteza brava: “Despeço-me com um abraço afetuoso e te digo que seguimos na sua batida e também do Lima, nós por nós”, diz Cidinha, chamando para a roda mais um artista negro das letras, Lima Barreto (1881-1922).

Reprodução Carolina Maria de Jesus
Pierre Gentil Cidinha da Silva

Em frente ao computador, numa cadeira que range de quando em quando, óculos escuros, Mário Bortolotto é fiel ao humor implícito, traço de cerca de 50 peças que assinou. E assim dispõe-se a trocar algumas ideias com o escritor e crítico de arte francês Guillaume Apollinaire (1880-1918), de ascendência ítalo-polonesa, ícone das vanguardas europeias do início do século XX. “Quem recriminaria tão genial criador de termos… Esses nomes realmente me fascinam. Termos como Cubismo, Surrealismo e Orfismo. Caramba, Orfismo? Duchamp deve ter se divertido com o termo antes de embarcar na sua onda”, afirma na largada.

A verve poética do dramaturgo brasileiro não demora a conectar-se com o espírito daquela época – o cosmopolitismo cultural da Paris dos anos 20 e 30 do século passado. Apollinaire é considerado um dos percussores do Surrealismo com a peça As mamas de Tirésias, que Bortolotto traduz por Peitos de Tirésias (é nela que pela primeira vez aparece a palavra que designa tal movimento). O drama em versos trata da mulher que rompe com o marido – um sujeito alucinado por toucinhos. Ela o amarra, se veste com suas roupas, corta as próprias mamas e reivindica a liberdade assumindo a identidade do personagem-título, um general. E isso é só a metade da história que envereda por campanha contra a procriação e chega a bebês macabros. Já o apuro de linguagem é mais assertivo na coletânea de poemas Álcoois, na qual o escritor abdica da pontuação e da tipografia correntes.

Bortolotto é abduzido pela relatividade do tempo e estabelece afinidade existencialista coerente com o percurso do poeta que viveu 38 anos, vítima da gripe espanhola, tendo, anos antes, combatido no front durante a Primeira Guerra Mundial e se ferido gravemente. “O nosso tempo não volta. Não vão devolver pra gente. O mal pode vir disfarçado e te pegar em meio a uma guerra, tipo a I Guerra quando o mal te pegou com aquele estilhaço ou como te pegou agora com essa inclemente gripe espanhola. Não, você não vai vencer o mal. Nós não vamos vencer o mal. 102 anos depois e não temos qualquer ilusão de derrotar o mal. O mal quase nunca perde. Você pode sentir os anjos fazendo cócegas nos seus pés. Dessa vez os ‘dias se vão e você vai embora’. O Sena vai continuar ‘fluindo em águas soberanas’ e a noite virá ‘sem demora’.”

Reprodução PARIS, FRANCE – 1916: Portrait de Guillaume Apollinaire blesse a la tete, hopital italien du quai d’Orsay, en 1916 a Paris, France.
Divulgação Mário Bortolotto

A décima terceira remetente é a dramaturga, atriz, diretora, professora e pesquisadora Lucienne Guedes, do Instituto de Artes da Unicamp, integrante e cofundadora do Teatro da Vertigem. Ela teve um prazo diferente de seus pares para a escrita e gravação da videocarta imaginada para Consuelo de Castro (1946-2016), da geração de artistas surgida durante a ditadura, autora de peças como Prova de fogo (1968), À flor da pele (1969) e Uma lei chamada mulher (2013). Assim que o conteúdo estiver disponível será contemplado nesse comentário.

Ao que procedemos no último dia de junho.

Lucienne chama a atriz e dramaturga Verônica, a personagem de 21 anos de À flor da pele, para compor paralelas com uma atriz, dramaturga e diretora de São Paulo que tornou pública a sua condição de vítima de violência psicológica por seu professor de teatro, um dramaturgo com o qual se relacionou por seis anos, conforme disse em vídeo postado em rede social em maio de 2017. O acusado de abusador, na vida real, espelha Marcelo, casado, pai de uma adolescente, 22 anos mais velho que a aluna com quem se relaciona. Ele é professor de dramaturgia e autor de telenovelas acomodado no discurso machista e patriarcal, ex-militante do Partido Comunista, “Senhor Intelectual de Esquerda”, no dizer sarcástico de Verônica, artista inquieta que insufla novas atitudes para a namorada de Hamlet, Ofélia, em seus escritos e experimentos cênicos.

Diante da página de uma publicação com a foto em sépia (a mesma estampada logo mais) de uma dramaturga que tinha 23 anos quando escreveu À flor da pele, expressando olhar revolucionário e “infinito” sobre a condição de ser estudante e intelectual mulher em sua época, de estilhaços pós-1968 e sob os primeiros meses de vigência do Ato Institucional nº 5, o AI-5, que aprofundou o regime autoritário, a remetente lança perguntas a Consuelo: “Por que a saída para nós, mulheres, para as nossas histórias, tem sido o sonho da morte, o voo através da janela, a faca contra a garganta? Por que nossas personagens inventadas para mudar o mundo encontram seu descanso na lâmina, Consuelo? Por que desistimos? Por que nossas personagens desistem? Por que as mulheres da nossa ficção não encontram saída? Por que os enfrentamentos continuam nos derrubando? Por que continuam conseguindo nos silenciar? Por que também a sua personagem, Consuelo, aquela Verônica jovem e com muita vida pela frente, por que a Verônica sucumbe à própria faca na frente daquele que foi seu professor, um homem muito mais velho do que ela e um abusador de merda, Consuelo?”.

Filmada por outra pessoa que oscila enquadramentos em transe e de ternura, de candente sororidade, afinal “A história de qualquer mulher não é só dela”, ao sabor dos ventos e da musicalidade do texto, Lucienne escala o jogo da escrita – “Espera: essa carta é sobre mim? Ou é para você?”. Dança com quem a observa entre o que é cena e o que é carta. O plano flutuante chega a delinear seu rosto com as cores retilíneas de um quadro de Mondrian. “A cena verdadeira é esta: essa carta é uma cena. E não é autobiográfica. Como você, penso também que minha vida não tem graça nenhuma, autobiograficamente falando, nem originalidades. (Embora eu acredite que sua vida foi especial, sim.) Eu não passei por um abuso do tamanho da sua personagem de À flor da pele. Mas sei que isso existe, continua existindo. E eu estou usando essa carta aqui para dar um recado e mandar um abraço para uma mulher jovem que passou por isso: eu escrevo essa carta pra você por causa dela. O espaço se abriu para mim só porque ela foi muito corajosa e expôs toda a coisa do abuso que sofreu de um professor de dramaturgia, como na sua peça, como sua Verônica e o seu Marcelo. E ela está viva, essa mulher jovem. Eu preciso politizar essa cena, esse espaço da carta, Consuelo, me perdoe, tá bom? Essa carta precisa ser perigosa”, crava a criadora que reverbera a ação e o pensamento do feminismo em seu tempo. Como já vaticinava a epígrafe de Elizabeth Ravoux-Rallo, docente francesa de literatura comparada: “É chegado um tempo em que o corpo da mulher irá nascer das palavras das mulheres”.

Reprodução Consuelo de Castro
Max Fahrer Lucienne Guedes

Para concluir o artigo, recorremos à carta que o diretor e ator Vsévolod Emilevich Meierhold (1874-1940) destinou a Constantin Stanislávski, a quem tinha por mestre, cofundador da mítica companhia e espaço incluído no título do livro citado linhas atrás, O cotidiano de uma lenda – Cartas do Teatro de Arte de Moscou. Era 18 de janeiro de 1938, aniversário dos 75 anos de Stanislávski. Ambos se encontravam na capital russa.

“Caro Konstantin Serguêievitch,

Ao descrever um dos incidentes em um dos seus contos e experimentando a dificuldade em expressar no papel o que acabara de ocorrer em sua história, N.V. Gógol, de repente, parou e explicou: ‘Não!… Eu não posso! Dê-me uma outra caneta! Minha caneta está preguiçosa, morta, há uma fenda demasiadamente estreita para esta cena!’.

Ao começar esta carta para o senhor, no seu aniversário, eu me encontro na situação de Nicolai Vassilievitch.

Meus sentimentos com relação ao senhor, meu querido mestre, são tais que qualquer caneta pareceria preguiçosa e morta para expressá-los no papel.

Como posso dizer ao senhor o quanto o amo?

Como posso lhe expressar a minha enorme gratidão por tudo o que o senhor me ensinou sobre a mais difícil das coisas, a arte de ser diretor?!

Se eu pudesse superar os obstáculos que têm sido colocados em meu caminho pelos eventos dos últimos meses, eu iria visitá-lo, e o senhor leria em meus olhos minha alegria por vê-lo recuperado de sua doença, pelo fato de o senhor estar mais uma vez saudável e feliz e por começar a trabalhar novamente para o bem do país.

Aperto sua mão com carinho. Eu o abraço.

Lembranças a todos em sua casa […]”.

Quase sete meses depois, em 8 de agosto de 1938, Meierhold enviou uma coroa e um telegrama ao local do enterro do “querido grande mestre”, morto no dia anterior. O discípulo, por sua vez, teve um destino trágico: foi fuzilado seis meses depois, após semanas de tortura, pela força de segurança do ditador Josef Stálin, acusado de formalista ante a voga do realismo socialista que o regime comunista também pregava na arte.

.:. Texto atualizado em 30 de junho de 2020.

Serviço:

13 cartas imaginadas

Quando: terças e quintas-feiras. De 16 de junho a 28 de julho

Onde: nas redes sociais e no site do Centro Cultural São Paulo: @ccsp_oficial (IG), /CentroCulturalSaoPaulo (FB), /radioccsp (YT) e centrocultural.sp.gov.br

Programação:

Dia 16/6, terça

Dione Carlos escreve a Leda Maria Martins (7’53)

Dia 18/6, quinta

Marcos Gomes escreve a Anton Tchekhov (4’36)

Dia 23/6, terça

Ronaldo Serruya escreve a Copi, nome artístico de Raul Damonte Botana (5’02)

Dia 25/6, quinta

Luh Maza escreve a Abá de Conta-Contos (4’35)

Dia 30/6, terça

Ave Terrena escreve a Oscar Wilde (5’06)

Dia 2/7, quinta

Lucas Mayor escreve a Domingos Oliveira (6’)

Dia 7/7, terça

Solange Dias escreve a João das Neves (5’14)

Dia 9/7, quinta

Rudinei Borges dos Santos escreve a Federico García Lorca (5’33)

Dia 14/7, terça

Angela Ribeiro escreve a Bertolt Brecht (5’42)

Dia 16/7, quinta

Aimar Labaki escreve a Jorge Andrade (6’12)

Dia 21/7, terça

Cidinha da Silva escreve a Carolina Maria de Jesus (5’28)

Dia 23/7, quinta

Lucienne Guedes escreve a Consuelo de Castro

Dia 28/7, terça

Mário Bortolotto escreve a Guillaume Apollinaire (6’23)

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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