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Reportagem

Vazão cênica na Mostra de Cinema

22.10.2020  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Divulgação/Taiga Filmes e Vídeo

Como todo outubro em São Paulo, a Mostra Internacional de Cinema reserva interfaces com as artes cênicas em seu vasto panorama global. Pela primeira vez as exibições serão em ambiente online, uma plataforma própria, ou em espaços drive-in. Em 2009 o festival foi dos pioneiros ao levar parte do conteúdo para a internet, mas a escala atual muda paradigmas sem precedentes sob pandemia viral.

Dentre os 198 filmes desta 44ª edição, de 22 de outubro a 4 de novembro, relacionamos títulos que envolvem direta ou indiretamente aspectos do circo, da performance e do teatro. Há transposição de peça, cinebiografia, atriz assinando longa-metragem, teatrólogo se indagando sobre como agir politicamente nos dias de hoje, atores de grupo no elenco de uma obra ou outra, palhaço encantando a adolescência no sertão, enfim, experiências que guardam algum atravessamento com as artes da presença. Seja nas películas, seja no percurso de seus artistas.

A peça Há mais futuro que passado – um documentário de ficção (2017), escrita por Clarisse Zarvos, Daniele Avila Small e Mariana Barcelos, inspira livremente o filme Ana. Sem título, da diretora Lucia Murat (de A memória que me contam), misto de documentário e ficção programado na seção Mostra Brasil.

O roteiro do road-movie apresenta artistas plásticas mulheres da América Latina através da ótica de Stela (interpretada por Stella Rabello, atriz ligada à companhia carioca Foguetes Maravilhas). A personagem resolve fazer um trabalho sobre cartas trocadas entre elas durante os anos 1970 e 1980. Para tanto, percorre Cuba, México, Argentina e Chile para descobrir o que essas mulheres enfrentaram durante as ditaduras civil, militar ou assim combinadas nesses países.

Durante a viagem, Stela encontra inúmeras artistas importantes e muitas ativistas como as da associação Mães da Praça de Maio, que perderam seus filhos durante a repressão na Argentina. Em meio a idas e vindas ela descobre Ana e resolve se aprofundar melhor sobre a vida dessa artista e ir atrás de sua história.

Divulgação/Taiga Filmes e Vídeo A atriz Stella Rabello e a diretora Lucia Murat no set de ‘Ana. Sem título’, livremente inspirado na peça ‘Há mais futuro que passado – um documentário de ficção’

No texto original encenado por Daniele (idealizadora da Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais), as atrizes Clarisse Zarvos, Cris Larin e Tainah Longras (mais participação em vídeo de Carolina Virgüez)  apresentam uma pesquisa sobre artistas de diferentes países latino-americanos atuantes entre as décadas de 1960 e 1980, questionando a predominância de nomes masculinos e europeus na narrativa histórica, bem como a distância entre o Brasil e os países vizinhos.

“Qual é o lugar da mulher latino-americana na história da arte?”. Essa foi a pergunta que impulsionou a criação de Há mais futuro que passado pela equipe liderada por mulheres em todas as funções criativas e técnicas. A dramaturgia, publicada em 2018 pela editora Javali, incorpora ideias da inglesa Virginia Woolf (1882-1941), extraídas do ensaio Um teto todo seu, em que discorre sobre o tema “As mulheres e a ficção”. Em vez de questões de forma, conteúdo e estilo, a escritora reivindica a independência feminina, a autonomia financeira como condição propicia à liberdade no exercício de qualquer ofício.

Em seu entrelaçar ficcional e documental, a peça joga luz sobre nomes como a colombiana Feliza Bursztyn (1933-1982); as cubanas Ana Mendieta (1948-1985) e Zilia Sánchez (1928); a paraguaia Olga Blinder (1921-2008); a argentina Alicia D’Amico (1993-2001); as brasileiras Lygia Clark (1922-88) e Zuzu Angel (1921-1976); a peruana Victoria Santa Cruz (1922-2014); a uruguaia Nelbia Romero (1938); e as mexicanas Pola Weiss (1947-1990), Maris Bustamante (1949) e Mónica Mayer (1954), as duas últimas do grupo Polvo de Gallina Negra (1983-1993), dentre outras lembranças. Há ainda a descoberta de uma jovem brasileira, de prenome Ana, que viaja bastante e vira interlocutora afetiva dessa rede.

Achado dramatúrgico que mobilizou Lucia Murat e equipe, cujo elenco conta com mais dois integrantes da Foguetes Maravilhas, os atores Felipe Rocha e Renato Linhares, além da atriz-MC e slammer Roberta Estrela D’Alva (vivendo, sobretudo, a multifacetária e enigmática personagem-título negra), do paulista Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, e de Lucas Canavarro. “O longa trabalha com drama, e traz questões como o papel da mulher, a realidade política do continente e a situação das artes plásticas. A personagem Ana é negra e isso levou o filme também a discutir a questão do feminismo negro e o racismo no Brasil”, afirma a diretora, que elaborou o roteiro com a escritora Tatiana Salem Levy.

“Resolvi fazer desse trabalho um filme porque sabia que nesta busca ia encontrar minha geração. No Brasil, existem mais de 430 mortos desaparecidos durante a ditadura. Muitas mulheres. Mas, diferente do Chile, os responsáveis nunca foram julgados”, diz Lucia em nota de divulgação. “O medo faz parte das nossas vidas. Da minha por ter sido torturada e por ter vivido com esses fantasmas…”

Artista ligada ao o Estúdio Lusco-fusco, que no ano passado criou Insônia – Titus Macbeth para recortar horror e totalitarismo na obra de Shakespeare (ao lado de Helena Ignez, Michele Matalon, André Guerreiro Lopes e outros), a atriz e produtora Djin Sganzerla dirige e atua em Mulher oceano, que compete no segmento novos diretores da Mostra Brasil.

Uma escritora brasileira que acaba de se mudar para Tóquio dedica-se a escrever um novo romance, instigada por suas experiências no Japão e por uma das últimas cenas que presenciou no Rio de Janeiro: uma nadadora de travessia oceânica rasgando o horizonte com vigorosas braçadas em mar aberto. Essas duas mulheres, aparentemente, não compartilham nenhuma conexão, até que a vida de uma começa a interferir na vida da outra, estranhamente ligadas pelo mar. Hannah, a escritora, mergulha em uma jornada de autodescoberta no Japão, enquanto Ana, a nadadora, no Rio, estranhamente tem seu corpo transformado em uma espécie de oceano interior. Djin contracena com Kentaro Suyama, Stênio Garcia, Lucélia Santos, Gustavo Falcão, Rafael Zulu, Jandir Ferrari e outros, além de dividir o roteiro com Vana Medeiros neste que é seu primeiro longa-metragem.

A seção Apresentação Especial exibe Todos os mortos, codireção de Caetano Gotardo e Marco Dutra. Gotardo colaborou em criações da Companhia Auto-Retrato, como em O ruído branco da palavra noite (2010), que codirigiu com Marina Tranjan a partir de cartas e textos do russo Anton Tchékhov. Seu longa de estreia foi O que se move (2013), com atuações de Cida Moreira, Andrea Marquee (ambas cantoras e compositoras) e Fernanda Vianna, esta do Grupo Galpão de Belo Horizonte.

Na sinopse de Todos os mortos, São Paulo é uma cidade em rápido crescimento em 1899, poucos anos depois da abolição da escravidão. As três mulheres da família Soares, antigas donas de terras e escravos, acabam de voltar para a capital paulista. Perdidas após a morte de sua última criada, elas tentam se adaptar às mudanças no Brasil. Ao mesmo tempo, a família Nascimento, que trabalhava como escrava na fazenda dos Soares, agora se depara com uma sociedade na qual não há espaço para os negros recém-libertos. Entre o passado e o presente do Brasil, de maneira deslocada, todos lutam para sobreviver no mundo moderno.

Ativista influente da consciência antirracista na produção teatral na cidade de São Paulo, o historiador, africanista e ator Salloma Salomão compôs a música do filme, ele que interpretou Mestre Egeu em Gota d’água {PRETA}, espetáculo de 2019, sob direção de Jé Oliveira. O elenco de Todos os mortos inclui Mawusi Tulani, Clarissa Kiste, Carolina Bianchi, Gilda Nomacce, Luciano Chirolli e Rogério Brito, eles e elas participantes empenhados de criações cênicas orientadas pelo teatro de pesquisa, de risco. Para completar, nova dupla de cantora: a diva Alaíde Costa e novamente Andrea Marquee.

Os mineiros do Grupo Galpão catalisam O lodo, do cineasta Helvécio Ratton (de Uma onda no ar e O segredo dos diamantes). Antônio Edson, Eduardo Moreira, Inês Peixoto, Fernanda Vianna, Paulo André e Teuda Bara, além do ex-integrante, Rodolfo Vaz, ajudam a contar a história de Manfredo. O personagem atuado por Moreira é funcionário de uma empresa de seguros e leva uma vida normal. Mas ele começa a perceber que está deprimido e procura a ajuda de um psiquiatra, o dr. Pink (Renato Parara), que insiste em saber sobre o passado do sujeito. Intimidado e relutante em revelar detalhes de sua vida, o paciente abandona o tratamento. Mas Manfredo começa a ser perseguido pelo médico, com telefonemas insistentes, nas ruas e até em pesadelos que se tornam realidade.

A história é uma adaptação do conto O lodo, do também mineiro Murilo Rubião, publicado em 1979, e resulta um thriller psicológico, gênero que Ratton experimenta pela primeira vez na carreira, ele que possui formação em psicologia.

Paulo André também pode ser visto em Cidade pássaro, produção paulista de Matias Mariani acerca de Amadi, um músico na casa dos 30 anos que vive na Nigéria. Ele viaja ao Brasil para tentar encontrar o irmão, Ikenna, que trabalha como matemático em um instituto de tecnologia, em São Paulo. Ao chegar lá, porém, descobre que a instituição sequer existe. Seguindo pistas fracas, ele percebe que o irmão não é o profissional respeitado que aparentava ser. Em meio à sua busca, Amadi precisa escolher entre a fidelidade à sua família despedaçada e uma nova vida na capital paulista.

Ainda na Mostra Brasil, o filho do ator malinês Sotigui Kouyaté (1936-2010) – conhecido de espectadores brasileiros por atuações em montagens dirigidas pelo inglês Peter Brook (Le costume, Hamlet, Tierno Bokar) –, o griot (contador de histórias) Toumani Kouyaté é personagem, roteirista e codiretor de Entre nós, um segredo, seu filme de estreia, ao lado da cineasta brasileira Beatriz Seigner (de Los silencios).

Trata-se de uma narrativa que aconteceu com ele quando estabelecido com sua família e vivendo no Brasil, em 2014. Foi surpreendido pela convocação do avô para retornar com urgência ao Mali, seu país natal, junto a outros mais de 40 cidadãos malineses que moravam fora, para ouvi-lo contar uma última história. Seu avô sentia a morte se aproximar e precisava passar segredos da nação para a linhagem de djélis mais jovens, a fim de que eles seguissem com a tradição. A cultura oral, vista como um dos maiores tesouros do Estado, capaz de protegê-lo de guerras e crises, é também um importante componente social e político que precisa de continuidade. Kouyaté também canta, dança, toca e fotografa, além de professor universitário e organizador de festivais em vários países da África, da Ásia, da Europa e no Canadá. Entre Nós, um Segredo é seu filme de estreia como diretor e roteirista.

O universo circense permeia Filho de boi, do diretor baiano Haroldo Borges, corroteirista a triangular as agruras e as alegrias de um adolescente com o seu pai e com um palhaço do circo mambembe recém-chegado em sua cidade, no sertão. A presença do ator Luiz Carlos Vasconcelos, diretor de Vau da sarapalha (1992), com o paraibano Piollin Grupo de Teatro, e criador do palhaço Xuxu é um bom indício da cultura de picadeiro levantada da poeira do chão rural – ou mesmo sob uma lona.

Em seu primeiro longa ficcional, Borges resolveu utilizar alguns aspectos do documentário: o elenco é formado por não atores que não leram o roteiro. O filme conta a história de João, um menino de 13 anos que tem uma relação partida com o pai e que sonha em deixar a pequena cidade onde vive. Quando o circo chega ao povoado, faz amizade com um palhaço, que o encoraja a enfrentar seus medos. Segundo os realizadores, a obra lança luz sobre um Brasil atual, revelando um universo de masculinidade e preconceito onde é urgente se reinventar. O trio é completado pelo morador local João Pedro Dias e pelo ator Vinicius Bustani, de Salvador.

Borges dirigiu o documentário Jonas e o circo sem lona (2015), do qual foi roteirista e diretor de fotografia.

Fernando Brenner A dupla Rubens Rewald e Jean-Claude Bernardet, do filme ‘#eagoraoque’, em evento de fevereiro de 2020 em Montevidéu

“Como agir politicamente hoje?”. A questão é lançada pelo filme #eagoraoque, mais uma obra na Mostra Brasil. O drama político codirigido por Rubens Rewald e Jean-Claude Bernardet discute se é possível mudar as coisas, as pessoas, a sociedade. E agora, o que fazer? Um intelectual e suas contradições. Esse é o mote da ficção abduzida pelo momento brasileiro. Em cena, a atriz Palomaris Mathias, o professor de filosofia Vladimir Safatle e o próprio Bernardet.

Em 2018, Rewald e Bernardet dirigiram em São Paulo a peça A procura de emprego, do francês Michel Vinaver, com Magali Biff, Eucir de Souza, Fernanda Viacava e Bianca Lopresti no elenco.

Radicado há décadas no Brasil, o belga Jean-Claude Bernardet é professor emérito da USP, teórico de cinema, crítico, cineasta, roteirista, escritor, dramaturgo e ator. Fez o roteiro de O caso dos irmãos Naves (1967), de Luís Sérgio Person, e dirigiu São Paulo, sinfonia e cacofonia (1994). Contracenou com Helena Ignez no longa Antes do fim (2017), de Cristiano Burlan, outro importante interlocutor artístico nos últimos anos.

No livro Caos / dramaturgia (2005), Rewald apresenta uma contribuição original de articulação entre novos saberes e o processo de produção da escritura dramática: cria-se um novo sistema com seus códigos próprios para a utilização desses conceitos, resultando a elaboração de uma metodologia para a produção dramatúrgica em processo. O diretor do filme Super nada (2013), no qual um aspirante a ator sonha em ter uma carreira de sucesso, também é professor na USP.

No competição novos diretores, em âmbito internacional, o tcheco Slávek Horák dirige Havel, seu segundo longa-metragem, baseado em fatos da trajetória de Václav Havel (1936-2011). A trama tem início nos anos 1960, quando o personagem-título (papel de Viktor Dvořák) era um dramaturgo boêmio, e retrata mudanças drásticas na vida: sua transformação em ativista pelos direitos humanos na década de 1970 até assumir a presidência da extinta Tchecoslováquia no fim dos anos 1980. A cinebiografia também apresenta aspectos da vida pessoal de Havel, como seus casos amorosos e o relacionamento com a esposa, Olga (por
Anna Geislerová), que era uma espécie de “espelho moral” para o protagonista.

No início e na metade da década de 2000, a diretora Soledad Yunge e a Cia. 3 de Sangue montaram em São Paulo duas peças do dramaturgo, poeta e político que exerceu o poder de 1989 a 2003 no país do leste europeu, compatriota de Kafka: Vernissage e A audiência, compondo assim um pequeno, pioneiro e significativo repertório de Havel. Em ambos os textos, surge Vanek, seu alter ego. Para sobreviver à crise econômica, o personagem intelectual trabalha numa cervejaria, armazenando a bebida em barris.

Em A audiência, ele é coagido pelo chefe estúpido a descrever suas atividades atuais, patrulhamento ideológico na base faustiana do “eu coço as costas dele, ele coça as minhas e eu coço as tuas”, como argumenta o superior que acena com promoção. O assédio moral ganha proporções sexuais em Vernissage. Certa noite, Vanek é convidado por um casal, que se diz amigo, a conhecer o apartamento que acabara de reformar, superdecorado para a devida exposição. Segue-se um strip-tease pequeno burguês, elogio da família e da propriedade.

No campo da performatividade, ou de suas transversais, pinçamos três projetos, um sérvio, um finlandês e outro ucraniano que têm potencial para inquietar quem aprecia as linguagens liminares.

Presença constante da Mostra de Cinema, um dos nomes expoentes da arte de performance no mundo, radicada em Nova York, a artista sérvia inscrita no título do documentário De volta para casa – Marina Abramovic e seus filhos é epicentro da narrativa em torno da exposição The cleaner, que faz uma retrospectiva de sua carreira e passa por lugares como Estocolmo, Oslo, Florença e Copenhague. O destino final é sua cidade natal, Belgrado, território que ela não visitava havia 40 anos e onde deu os primeiros passos na carreira como uma pintora figurativa e depois abstrata. A direção é do croata Boris Miljkovic, cujo filme concorre na competição novos diretores.

Dirigido pelo finlandês Arthur Franck, o documentário Olliver Hawk, o hipnotizador, de 2019, narra a vida e as peripécias de Olliver Hawk (1930-1988), uma personalidade em sua época. Iniciou a carreira na Austrália e se tornou famoso na Finlândia durante a década de 1960, quando centenas de milhares de espectadores assistiam às suas apresentações de hipnose. Em paralelo a essas performances, Hawk tratava pessoas com transtornos mentais, o que o levou a ser julgado por fraude. Além disso, seu talento o transformou em uma importante peça no jogo do poder político local. Imagens de arquivo ilustram a criação do culto a uma personalidade e exploram a relação entre poder, verdade e mito. Este thriller documental com a Guerra Fria como pano de fundo faz um retrato do populismo e da manipulação pública, e mostra a ascensão e a queda de um misterioso personagem. O trabalho é a estreia de  Franck na direção de longas documentais.

Na seção Perspectiva Internacional, Dau. Degeneração e Dau. Natasha, respectivamente segundo e primeiro filme, compõem o projeto idealizado pelo diretor russo Ilya Khrzhanovskiy. Ele simula o sistema totalitário soviético combinando cinema, ciência, performance, espiritualidade, experimentação social e artística, literatura e arquitetura para falar do uso totalitário do poder.

Em Dau. Degeneração, que dirigiu e roteirizou em parceria com o professor de filosofia russo Ilya Permyakov, o enredo constata que a pesquisa científica no secreto Instituto Soviético quase foi interrompida por intermináveis bebedeiras, brigas e devassidão. Essa rotina não foi quebrada por experimentos ou discussões esotéricas e espirituais nem pelo aparecimento de cientistas mais jovens. Em certo momento, um grupo de membros do Komsomol (a organização juvenil do Partido Comunista da União Soviética) chega ao local para participar de uma experiência: a criação de uma nova pessoa. Eles estão encantados pela ciência proibida da eugenia e deixam clara sua crença nesses princípios. Não demora para começar uma batalha contra o estilo de vida que se tornou a norma no lugar.

Já em Dau. Natasha, a personagem do título administra o refeitório de um instituto soviético secreto de pesquisa nos anos 1950. O mundo dela é pequeno, dividido entre as demandas da cantina durante o dia e as noites movidas a álcool com sua colega mais nova, Olga. Numa festa, certa noite, Natasha se torna próxima de um cientista francês que visita o local. No dia seguinte, sua vida se transforma drasticamente quando ela é convocada para um interrogatório por um general da KGB, a então polícia política, que questiona a natureza de sua relação com o convidado estrangeiro.

O filme inaugura o projeto de Ilya Khrzhanovskiy, cuja direção divide com Jekaterina Oertel, nascida na Rússia e criada na antiga Alemanha Oriental.

Ainda na competição novos diretores, o ator e dramaturgo argentino Rafael Spregelburd, que circula por festivais de teatro pelo Brasil desse a década de 1990, com seu grupo El Patrón Vázquez, atua em Nem herói nem traidor, de Nicolás Savignone, seu segundo longa. A ação se passa em Buenos Aires, em 1982, e acompanha Matías, um jovem de 19 anos que acabou de concluir o serviço militar e agora sonha em estudar música na Espanha. Ele precisa convencer o pai, que se opõe à ideia, e a namorada, que reluta em mudar de país. Em pouco tempo, porém, tudo muda: a Guerra das Malvinas eclode, e Matías é forçado a amadurecer ao ser novamente envolvido no serviço militar. Será a deserção seu primeiro ato como adulto?

Na mesma modalidade, no filme francês Dezesseis primaveras, primeiro longa-metragem de Suzanne Lindon, acompanhamos a protagonista de mesmo nome. Ela tem 16 anos e pessoas de sua idade a deixam entediada. Todos os dias, a caminho do colégio, a menina passa por um teatro. Lá, conhece um homem mais velho, que se torna obcecado por ela. Apesar da diferença de idade entre os dois, eles encontram um no outro uma resposta para o tédio e acabam se apaixonando. Mas Suzanne tem medo de estar perdendo um momento de sua vida, aquele momento na vida de uma garota de 16 anos que ela tanto lutou para aproveitar da mesma forma que seus colegas.

Ainda sob o guarda-chuva da competição de novos diretores, em Equinócio, estreia em longa da alemã Lena Knauss, Alexander tem 30 anos e nunca se apaixonou — ou nunca conseguiu se apaixonar. Ele, então, vê em Paula, uma atriz de teatro, a possibilidade de compartilhar um futuro com alguém. Porém, antes que pudesse realmente conhecê-la, Paula morre em um acidente. A perda repentina leva Alexander a um luto profundo. Logo, ele se vê em uma situação delicada: ao conhecer Marlene, irmã de Paula, o rapaz é erroneamente acolhido pela família como se fosse o namorado da falecida. Curioso para saber mais sobre a mulher que poderia ter amado, o protagonista leva a farsa adiante. Ao aproximar-se de Marlene, no entanto, ele é tomado por um sentimento que contradiz a imagem que costumava ter do amor perfeito.

Na seção Perspectiva Internacional, as atrizes, roteiristas e diretoras suíças Stéphanie Chuat e Véronique Reymond contam na ficção Minha irmã a história de Lisa (por Nina Hoss), que já foi uma dramaturga brilhante, mas não escreve mais. Faz algum tempo que ela desistiu de suas ambições em Berlim e se mudou para a Suíça com os filhos e o marido. Ainda que esteja longe, seus pensamentos continuam na capital alemã, onde se encontra seu irmão gêmeo Sven, um famoso ator de teatro.

Porém, quando Sven é diagnosticado com leucemia, Lisa volta para a Alemanha e faz tudo o que está ao seu alcance para levá-lo de volta aos palcos e, assim, dar a ele alguma esperança e força para a luta contra a doença. Por seu irmão, ela negligencia tudo que está à sua volta e começa a colocar em risco o próprio casamento. Mas as condições de saúde de Sven rapidamente se deterioram, e por sua relação difícil com a mãe, também atriz, Lisa decide levar o irmão para a Suíça. Essa complicada situação acaba por refletir seus anseios mais profundos, despertando-lhe o desejo de voltar a criar, e de se sentir viva novamente.

Por fim, e outra vez na seção Perspectiva Internacional, O caminho para Moscou se passa em 1989, quando a Suíça se deparou com a revelação de um escândalo nacional: mais de 900 mil pessoas foram monitoradas por suas convicções políticas durante o período da Guerra Fria.

É nesse contexto que o cineasta alemão Micha Lewinsky projeta ficcionalmente a comédia na qual o policial Viktor Schuler, interpretado por Philippe Graber, é enviado ao teatro Schauspielhaus, de Zurique, para observar e monitorar a cena teatral da esquerda local. No entanto, logo se apaixona por uma das atrizes da companhia, Odile, a quem deveria justamente vigiar. Viktor se vê em uma encruzilhada sem volta: ele deverá escolher entre sua missão e o seu coração.

Serviço:

44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo

Quando: de 22 de outubro a 4 de novembro

Onde: www.44.mostra.org, no Belas Artes Dreve-in (Rua Tagipuru, s/nº, portão 2) e no Cinesesc Drive-in (Praça São Vito, s/nº, 4 pessoas por carro nos dois endereços). Boa parte dos filmes fica disponível na plataforma Mostra Play até 5 de novembro.

Quanto: R$ 6 (sessão online), R$ 40 (Cinesesc Drive-in) e R$ 60 (Belas Artes Drive-in)

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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