Artigo
4.11.2020 | por Valmir Santos
Foto de capa: The Václav Havel Library
No momento em que o globo terrestre fixa atenção em quem vai ocupar a Casa Branca nos próximos quatro anos, a cinebiografia do dramaturgo tcheco Václav Havel (1936-2011) produz efeito luminoso similar àquele de quando se conhece a trajetória e as atitudes do florista e “chacareiro” uruguaio José Mujica: de como a ascensão de civis ao cargo máximo de uma nação pode, sim, transformar significativamente a face do poder a partir de suas presenças carregadas de passados humanistas. Uma fala do ator Viktor Dvořák no papel-título de Havel, atribuída a um dos professores do escritor, sintetiza o legado de pessoas como essas: “O mais importante da consciência é que sempre a carregamos conosco. Não podemos nos livrar dela mesmo que queiramos”.
O segundo longa-metragem de Slávek Horák, programado na competição de novos diretores da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, é generoso no modo como expõe a cultura de teatro aliada à luta política – associação atávica dessa arte em todas as sociedades em que ela aflora ou se revigora, notadamente quando a barbárie coloca a civilização contra a parede.
Em exibição na plataforma online do evento, até meia-noite de quarta-feira (4), o segundo longa-metragem de Horák é pouco dado a inovações no formato narrativo, exceção à primorosa solução cenográfica que coabita as duas linguagens – teatro e cinema – em determinados trânsitos espaço-temporais do roteiro. São instantes tão efêmeros quanto se dá no campo das artes cênicas.
A equipe de criadores do filme não se gaba ou se demora em seus achados audiovisuais poéticos. Antes, consola-se, como se haicais fossem, fazendo com que esses átimos se eternizem na experiência de quem assiste. Profissionais ou estudantes da cenografia ou da direção de arte hão de encontrar nexos para admirar, mais uma vez, a tradição do país onde nasceu o mestre da cenografia Josef Svoboda (1920-2002) e que abriga a Quadrienal de Praga, principal exposição mundial dedicada aos elementos constitutivos da cena.
Para quem se dizia lutar pelo direito de fazer teatro, navegar em seus dramas satíricos e absurdos, e não necessariamente entrar para a política, o filme esculpe essa formação bifurcada. A subversão se dava como ato militante ou ato criativo em seus escritos para a cena, de identificação com o emergente e depois chamado teatro do absurdo na Europa
O desempenho dos atores, Dvořák e Anna Geislerová à frente, esta como intérprete da mulher do autor teatral e ativista político, Olga Havlová (1933-1996), e a atenção aos fatos históricos compensam sobremaneira o roteiro formalmente correto em se tratando do subgênero cinebiografia. Acompanhamos a vida pregressa, desde os primeiros contatos de Havel com o teatro na Praga do início dos anos 1960, passando pela perseguição do regime comunista, que levou o dissidente à prisão entre 1979 e 1983, até o instante que antecede seu antológico discurso na praça Venceslau, no centro da capital, onde uma multidão se concentrou em 21 de novembro de 1989 para balizar o Fórum Cívico, movimento político que articulou a transição para as reformas democráticas. Quatro dias antes, forças de segurança dissolveram brutalmente uma manifestação estudantil que lembrava os 50 anos da marcha na qual a juventude foi às ruas contra a ocupação nazista do país.
Vale anotar que Mujica passou 12 anos preso por envolvimento político com a guerrilha Movimento de Libertação Nacional – Tupamaros (MLN-T), que, inspirada na Revolução Cubana, de 1959, apelou à luta armada para resistir e exercer diversas ações no Uruguai em prol das transformações sociopolíticas, antes e durante a ditadura militar.
Havel, por sua vez, dizia não desejar protestar, “só quero fazer teatro”, porém acabou detido durante o show de uma banda de rock que ancorava um espaço de agitação cultural. O rapaz que recém-descobrira na dramaturgia um ofício já intentava registrar o áudio das peças, assim como as músicas eram gravadas e difundidas em diferentes suportes, de maneira “que as pessoas pudessem assistir em fitas VHS”. Em certa medida, predizia o que o atual panorama da pandemia deflagrou: os experimentos cênicos via internet.
Era acusado de endossar documento contra antissocialistas. O regime chegou a sugerir que trocasse o ativismo político pela literatura dramática, o que o líder carismático evidentemente discordou.
Tendo testemunhado a Primavera de Praga em 1968, aos 32 anos e logo banido dos palcos, quando tropas soviéticas ocuparam a capital tcheca, cujo regime comunista implantado havia 20 anos acenava inflexão no sistema opressor à liberdade de expressão e aos direitos humanos, Havel embarcaria, décadas depois, em articulações de manifestos políticos. Ele se viu como um dos cabeças da Revolução de Veludo que compreendeu seis semanas no final de 1989. Estudantes desencadearam protestos populares para que o regime convocasse eleições livres e se afastasse do pleito. Como a Tchecoslováquia e o Partido Comunista colapsaram, ele foi alçado a derradeiro presidente da Checoslováquia, e, depois, eleito primeiro presidente da República Tcheca, após a dissolução pacífica que conformou também a República Eslováquia.
Para quem se dizia lutar pelo direito de fazer teatro, navegar em seus dramas satíricos e absurdos, e não necessariamente entrar para a política, o filme esculpe essa formação bifurcada. A subversão se dava como ato militante ou ato criativo em seus escritos para a cena, de identificação com o emergente e depois chamado teatro do absurdo na Europa.
Sua espoa, Olga, era a primeira-leitora crítica e, mais tarde, primeira-dama. Ela se posicionava como vanguarda feminista quando ele ainda patinava em posturas machistas, na linha do político de esquerda cujo discurso progressista escorrega feio na reprodução de vícios do patriarcado. Numa das passagens, ele chega a juntar a esposa e a amante na mesma mesa e propõe pactuarem um triangulo amoroso desde que não o traíssem. “Amante ou esposa, teatro ou política. Ainda acha que pode ter tudo”, diz Olga, algo irônica, retirando-se a outra ter feito o mesmo. Ainda assim, o casal aparou rusgas e prosseguiu no relacionamento que o fortaleceu mutuamente, vide as cartas que trocaram durante a prisão do escritor.
Havel se recusou a sair do país com garantias de viabilizar produções de suas peças no exterior, como em Nova York. Perseguido, tido como persona non grata, foi impedido de assistir a um espetáculo no teatro, ao lado de Olga, e jogado na calçada por seguranças, numa das cenas emblemáticas dos impasses.
O cineasta Slávek Horák lança mão da metáfora da página em branco com a qual o escritor se depara em momentos decisivos da criação, seja pelo caminho da literatura, seja pelo caminho da ação política. A palavra foi a principal aliada de Havel, ele que contornou distúrbios de fala na adolescência e, em adulto, juntou-se a outros cidadãos para protestar e enfrentar distúrbios sociais causados, em sua maioria, por organismos estatais. “A verdade e o amor devem prevalecer sobre as mentiras e o ódio” – era a frase bolada às pressas por apoiadores e estampada no pôster de sua campanha. Pé atrás com o enunciado algo sentimental, assim que tomou conhecimento, dessa vez Václav Havel não teve como revisar e sucumbiu ao destino que se desenhava.
Para complementar as ideias do intelectual filho de família rica que perdeu bens para o regime, levando-o a conciliar os estudos trabalhando em um laboratório de química e como motorista de táxi, destacamos trechos do livro Entrevista à distância (Edições Siciliano, 1991, tradução de Lya Luft), uma longa conversa com o jornalista compatriota Karel Hvizdala realizada em 1985 e consolidada por ambos no ano seguinte.
O dramaturgo estava prestes a completar 50 anos e fez desse encontro um libelo ao teatro como sismógrafo crítico acerca dos problemas da sociedade. Como se pode ler em peças como A festa no jardim, Comunicado, Dificuldade agravada de concentração, Ópera dos mendigos, Os salvadores, Largo desolato, A tentação, O hotel da montanha, Protesto, Audiência, Vernissage e Partida, algumas delas montadas no Brasil.
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“Sou um escritor e sempre considerei minha vocação o dever de dizer a verdade sobre o mundo em que vivo, relatar seus terrores e misérias e, assim, antes prevenir que instruir. Sugerir algo melhor e concretizá-lo é, antes de tudo, a tarefa de um político – e nunca fui político e nem desejei sê-lo. Também como autor teatral sempre parti do princípio de que cada espectador tem de encontrar dentro de si a chamada solução, que só assim pode ser verdadeira, e que minha tarefa não é oferecer algo pronto. Sempre me interessei pela política, isso é correto, mas como observador e crítico, e não como criador (parto da verdade óbvia, nessa relação um tanto irrelevante, de que a crítica da política também é política à sua maneira)”. (página 13)
“Talvez seja paradoxal, mas é evidente que só a orientação ética e espiritual baseada no respeito por alguma autoridade ‘fora do mundo’ – pela ordem da natureza ou do cosmos – pode fazer com que a vida na Terra não sucumba através de algum ‘mega suicídio’, que continue suportável e alcance dimensões realmente humanas. E só tal orientação pode, obviamente, conduzir a um desenvolvimento das estruturas sociais em que o ser humano volte a ser humano, uma pessoa humana concreta”. (página 16)
“A tradicional disputa política entre direita e esquerda gira, na terminologia marxista, em torno da propriedade dos meios de produção. Portanto, em torno da questão as empresas precisarem ser privadas ou ‘socializadas’. Para ser sincero, não vejo nisso o problema principal. Eu formularia isso da seguinte maneira: trata-se, principalmente, do fato de o homem ser a medida de todas as estruturas, incluindo as econômicas, e não de ele dever se adaptar à medida dessas estruturas. Isso significa que o mais importante é que as relações pessoais não se percam: as relações entre o ser humano e seus colaboradores, entre subalternos e chefes, entre o homem e seu trabalho, entre esse trabalho e o seu resultado, etc., etc. A economia totalmente centralizada e estatizada (quer dizer, comandada por diretivas planejadas) anula essas relações de maneira catastrófica: entre o ser humano e a vida econômica abre-se um abismo cada maior”. (página 17-18)
“Convenci-me de que através da economia me aproximaria de alguma forma da sociologia. Era um engano, o estudo não me agradava, tínhamos disciplinas como construção de estradas e cascalho, e depois de dois anos decidi passar para a Universidade de Belas Artes, não sei mais se na Faculdade de Teatro ou Cinema, provavelmente cinema”. (página 33)
“No exército, entrei pela primeira vez em contato ativo com o teatro, e isso em circunstâncias bastante curiosas. Naquele tempo o exército ainda apoiava fortemente atividades culturais; as formações e divisões legitimavam-se com isso e eram valorizadas segundo isso. Com meu amigo e colega de quartel Karel Brynda, hoje diretor do Teatro Estatal em Ostrava, fundei um grupo de teatro. (…) No segundo ano do exército, decidi escolher junto com Brynda uma peça de hussardos [militares russos entusiastas do estilo de vida de fanfarrão alegando elevar o espírito], escrevendo eu mesmo esse texto. Achávamos que nossa equipe gozaria de maior atenção e apoio se nosso batalhão e a divisão apresentassem uma peça de sua própria autoria, sobre o meio militar. Escrevemos com absoluto sangue frio uma peça ‘realista-socialista’ e ao mesmo tempo ‘corajosamente crítica’. Era uma peça de muitos personagens, para que muitos camaradas pudessem participar. Diferente de Noites de setembro [montada no ano anterior], nossa peça não se passava entre oficiais, mas sim entre soldados rasos, no que demos até um passo adiante, para perto do povo. Nossa peça chamava-se Diante de nós a vida e em casa tivemos grande sucesso”. (página 38)
“Estou realmente convencido de que a temporada em que trabalhei no Teatro ABC me influenciou definitivamente para que eu entrasse para o teatro. Foi por acaso uma temporada importante: a última temporada de Werich no teatro, aliás [ator e dramaturgo tcheco Jan Werich]. O ABC sob Werich era algo como um distante eco do Teatro Libertado e naquela vez tive sorte – realmente só por cinco minutos – de ainda poder respirar algo da sua atmosfera. Lá aprendi e pude observar diariamente, ‘de dentro’, o teatro não só como um empreendimento para a apresentação de peças, ou como uma soma mecânica de peças, diretores, atores, bilheteiros, uma sala e um público, mas como algo mais: um foco aceso, espiritual, vivo, um local de conscientização política, um ponto de intersecção de linhas de força da época, e um sismógrafo, um espaço de liberdade, um instrumento de libertação do ser humano: entendi que cada apresentação pode ser um fato social vivo e único, que na sua importância ele vai muito além do que parece ser a princípio. Lembro, por exemplo, que assistimos repetidamente à ‘pré-encenação’ – isto é, o diálogo entre Werich e Hornicek diante da cortina durante as mudanças de cenário – e sempre ríamos embora soubéssemos tudo quase de cor; até os músicos da Orquestra Vlach, bastante ignorantes, seguiam a ‘pré-encenação’ do poço da orquestra, embora pudessem ficar sentados no saguão bebendo. O que irradiavam esses diálogos, sempre arrebatando cada um de nós? Algo difícil de escrever, até misterioso, e mesmo assim algo essencialmente teatral, algo que me convenceu de que o teatro tem sentido. A atmosfera eletrizante do entendimento espiritual e sensível entre plateia e palco, esse singular campo magnético que surge ao redor do palco, eram coisas que eu não conhecia e que me fascinavam. (…) Por mais sugestiva que fosse a atmosfera no ABC, internamente eu era atraído para outra parte: para os teatros menores que surgiam, especialmente o Teatro dos Balaústres. Lá trabalhava gente que me era mais próxima pela geração; lá não se revivia apenas algo passado, mas procurava-se uma nova poética. E lá eu sentia que teria maiores chances de também fazer algo além de ser contrarregra”. (páginas 40 e 41)
“Nos anos 50 havia na Tchecoslováquia só os grandes teatros oficiais – chamados de teatros de alvenaria. Lá, além dos clássicos, havia de vez em quanto uma apresentação mais ou menos interessante que realmente atraía pessoas de todo tipo: as sátiras. Tratava-se, portanto, da crítica mais ou menos superficial de males, carências, fraquezas humanas (ou ‘restos do passado’), da burocracia, da corrupção, assim como existem na tradição da dramaturgia soviética. (…) O renascimento dos pequenos teatros tem seu começo nos anos de 1956 a 1957, quando começou a surgir no Reduto do Clube Akkord. Foi, aliás, o primeiro – ou o primeiro conhecido – grupo de rock na Tchecoslováquia, e nesse tempo era um fenômeno imensamente interessante e importante”. (página 42)
“(…) para mim foi um período muito importante, não só porque os oito anos no Teatro dos Balaústres na verdade foram o único tempo em que pude me dedicar totalmente ao teatro, intensa relação com o teatro, mas porque esse tempo me formou como autor. Entreguei-me com entusiasmo quase insensato ao meu trabalho, ficava de manhã à noite no teatro, e de noite (com a ajuda de minha mulher) preparava cenários, era uma espécie de embriaguez alegre. Com o tempo acalmei-me naturalmente e me tornei mais objetivo. Apesar disso convivi com ele até 1968, quando deixei o teatro; ajudei a criar seu perfil, identifiquei-me com ele completamente. Formalmente, tive lá as mais diferentes funções: de contrarregra a iluminador, secretário, leitor e dramaturgo. Mas a função que eu exercia exatamente num dado momento não era decisiva, muitas vezes eu desempenhava todas ao mesmo tempo: de tarde combinava viagens, de noite iluminava um espetáculo ou reescrevia uma peça”. (páginas 45 e 46)
Talvez eu ainda deva mencionar outra coisa: o interesse pela linguagem. Sua ambivalência me interessa, seu mau uso; a linguagem me interessa como autora da vida, dos destinos e dos mundos; a linguagem como a mais importante habilidade, a linguagem como ritual e fórmula mágica; a palavra como portadora do movimento dramático, como legitimação, como meio de autoafirmação e autoimposição
Václav Havel, dramaturgo
“Não nos metíamos na explicação do mundo, teses não nos interessavam, não queríamos doutrinar. Tudo aquilo era antes um jogo – só que enigmaticamente o jogo atingia os mais profundos nervos da época, da existência humana, da vida social. Dizia-se que esse humor era puro, era arte pela arte, era dadaísta, era seu próprio objetivo. Apenas ele, aparentemente tão sem ligação com o ‘acontecimento ardente’, tal como o concebia a convenção, expressava singularmente – embora à sua maneira, por desvios – aquilo que mais ‘queimava’: que é afinal o ser humano. E sem ter de ser intelectual, o espectador aberto a isso sentia que também a mais grotesca escapada à maneira de Vyskocil [Ivan Vyskocil, ator] tocava nele algo de essencial, o essencialmente dramático e o realmente imperscrutável da vida, coisas tão básicas como desespero, desesperança, acaso, destino, desgraça, alegria sem razão. Outro traço importante desses teatros era o anti-ilusório: o teatro parava de enganar, de ser ‘um retrato da vida’. Sumiram do palco os tipos psicologicamente desenhados, que ansiavam ser representados na relação mútua, como acontece na vida. Os pequenos teatros queriam simplesmente mostrar uma coisa, e a mostravam; mostravam-na de todas as maneiras possíveis, como lhes ocorresse, por assim dizer, de qualquer jeito, segundo as leis da inspiração do momento. As pessoas estavam no palco por si próprias, atuavam entre si e para o espectador, não apresentavam acontecimentos, mas faziam perguntas ou propunham temas. E, o que considero o mais importante: presentificava-se a experiência do absurdo”. (página 52)
[Instado a definir o teatro do absurdo] “Pessoalmente creio que foi o mais importante fenômeno da cultura do teatro do século XX, porque demonstra a humanidade atual, por assim dizer, em sua crise. Mostra a humanidade que perdeu a certeza metafísica fundamental, a experiência do absoluto, a relação com o eterno, a sensação de que há sentido. Ou: o chão firme debaixo dos pés. Esse é um ser humano para o qual tudo desmoronou, cujo mundo desaba, que adivinha ter perdido algo irrecuperável, mas não é capaz de admitir sua própria situação, portanto esconde-se dela. Ele espera sem poder compreender que era em vão. Esperando Godot. Esse ser humano é atormentado pela necessidade de partilhar o principal, mas não tem nada para partilhar. As cadeiras, de Ionesco. Ele busca seu ponto firme na lembrança, e não sabe que não há nada a ser lembrado. Dias felizes. Ele mente para si mesmo e para os que o rodeiam, com a ilusão de que vai a alguma parte e encontrará algo que lhe devolva a identidade. A volta ao lar, de Pinter. Obviamente situações-modelo do ser humano decadente. (…) Nessas peças não se filosofa, como em Sartre; ao contrário, falam-se banalidades. Mas, em seu significado, são filosofemas [no aristotelismo, forma silogística que, ao contrário de outras modalidades, é apropriada para a demonstração de verdades filosóficas]. Não podem ser levadas ao pé da letra, não ilustram nada. Apenas chamam a atenção para os últimos horizontes de nosso tema comum e geral. Não são enfáticas, patéticas nem didáticas. Antes, são de uma hilaridade um tanto singular. Conhecem o fenômeno da dor infinita. Muitas vezes, nelas, as pessoas se calam ou dizem coisas estúpidas e incoerentes. Quem quiser, pode entendê-las como meras comédias. Essas peças não são – e isso é importante – niilistas. Elas apenas avisam. De maneira chocante, colocam-nos diante da questão do sentido, presentificando a ausência dele. O teatro do absurdo não nos oferece consolo nem esperança. Lembra-nos apenas que estamos vivos: sem esperanças. Nisso consiste o aviso de sua mensagem”. (página 53)
“Escrever peças sempre foi demorado e laborioso para mim: normalmente escrevia uma nova só dois ou três anos depois da outra; cada uma teve várias versões; sempre as escrevi várias vezes, reconstruí, atormentando-me muito com isso, e sempre caindo em desesperança: portanto não sou , decididamente, o tipo de autor espontâneo”. (página 62)
“Eu diria que entre nós o problema é exatamente o contrário. Aqui, o escritor sente-se onerado por solicitações que se tornam uma carga. Tradicionalmente se espera do escritor em nosso meio algo mais que só escrever livros legíveis. A ideia de que o escritor é a consciência da nação tem sua lógica e sua tradição aqui: os escritores, afinal, substituíram nesses anos todos o papel dos políticos, foram renovadores da comunidade nacional, guardiães da língua nacional, despertadores da consciência nacional, tradutores da vontade nacional. Essa tradição continua sob o regime totalitário e mantém sua colocação especial: como se a palavra escrita aqui tivesse uma espécie de radioatividade elevada – ou não seríamos presos por causa dela! Creio que muitos colegas ocidentais poderiam invejar essa nossa grande atenção e ressonância social. Mas é uma faca de dois gumes: pode nos prender, amarrar, limitar – como se de repente nossa transmissão social ficasse bloqueada, como se, em consideração ao papel que nos foi atribuído, a voz sufocasse um pouco por não sabermos se lhe fazemos justiça; como se simplesmente não fôssemos mais tão livres quanto deveríamos ser. Admito que, por vezes, tenho vontade de gritar: não quero ser aquele que desperta, quero fazer apenas o que todo escritor deve fazer, isto é, dizer a verdade! Ou: não se pode pedir esperança apenas aos que a dão profissionalmente, cada um tem de encontrá-la em si! Ou: arrisquem também alguma coisa, eu afinal não sou o redentor de vocês! Mas no último momento sempre me contenho, não grito, engulo tudo outra vez, e penso no que Patocka [Jan Patocka, filósofo] disse um dia: ‘A verdadeira provação do ser humano não é como ele preenche o papel que imaginou, mas como preenche aquele que o destino lhe impôs’. De resto, não se sabe direito o que fazemos com nós mesmos, ou não. Em certo sentido, devemos tudo a nós mesmos: damos um pequeno passo, e esse passo logicamente provoca outros acontecimentos que já se desenrolaram fora de nós, mas possivelmente nem teriam ocorrido sem esse nosso primeiro passo. Teremos realmente direito de nos queixarmos?”. (páginas 71 e 72)
“Começo pelas coisas exteriores: em minhas peças o senhor [para o jornalista] dificilmente encontrará uma atmosfera finamente tramada, estados de espírito, ou uma rica mescla de situações psicológicas, ou vislumbres do misterioso e complicado movimento da alma humana; não encontrará nem ao menos um ocultamento artificial da sua construção interna, do ‘como’; tampouco eles aparecerão como uma série de acontecimentos, fluída, espontânea, conforme o curso natural da vida. Como autor, sou um construtor, professo a construção das peças, eu as faço intencionalmente claras, enfatizo-as, desvendo-as, dou-lhes muitas vezes contornos, por assim dizer, geométricos e regulares – tudo na esperança de que isso não seja sentido como falta de habilidade nem como um fim em si, mas que perceba nisso um sentido bem determinado”. (páginas 176 e 177)
“Talvez eu ainda deva mencionar outra coisa: o interesse pela linguagem. Sua ambivalência me interessa, seu mau uso; a linguagem me interessa como autora da vida, dos destinos e dos mundos; a linguagem como a mais importante habilidade, a linguagem como ritual e fórmula mágica; a palavra como portadora do movimento dramático, como legitimação, como meio de autoafirmação e autoimposição. Interessa-me a frase e sua importância no mundo, onde a valorização verbal, a incorporação no contexto fraseológico e a interpretação linguística são muito mais importantes que a própria realidade, e assim tornam-se elas mesmas a realidade principal, enquanto a ‘realidade real’ se torna apenas um derivado”. (página 178)
“Creio que toda verdadeira obra de arte traz em si algum mistério, ainda que apenas na sua construção um enigma da sua composição, o contato recíproco, o encontro e ultrapassagem mútua das formas, o enigma desse acontecimento estrutural” (página 182)
“Eu diria que a tarefa do teatro, tal como a entendo e tento fazer, não é facilitar a vida de ninguém através de heróis positivos, onde as pessoas possam ousadamente depositar toda a sua esperança, saindo do teatro com uma sensação despreocupada de que os heróis resolveriam alguma coisa em seu lugar. Isso, na minha opinião, seria obra de amigo urso”. (página 183)
Serviço:
Havel
Em exibição na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. O filme entrou na tradicional repescagem do evento, ao lado de outros 131 títulos, e pode ser visualizado até 23h59 de domingo, 8 de novembro. R$ 6. Acesse aqui.
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.