Menu
Biocritica - Uma questão de conta...

BiocríticaQuestão de Crítica conta...

Tão pessoal, tão coletivo

8.1.2021  |  por Daniele Avila Small

Foto de capa: Alex Carvalho

A Questão de Crítica, revista eletrônica de críticas e estudos teatrais, foi inaugurada no final de março de 2008. Ela é de Áries, eu sou de Leão. As atividades da revista são indissociáveis da minha trajetória pessoal. Por onde eu vou, levo ela comigo, de uma maneira ou de outra. E ela já me levou a muitos lugares. Mas, melhor que isso, a Questão de Crítica sempre foi um projeto para conectar pessoas a partir da circulação de ideias.

A criação da revista foi uma consequência direta da minha vivência no curso de Teoria do Teatro na UNIRIO. Desde 2006, eu vinha escrevendo críticas em um blog pessoal e queria fazer um projeto maior, que envolvesse mais gente. Demorei um pouco para achar os parceiros que iniciariam a revista comigo, o Marcio Freitas e a Dinah Cesare, que há muito já não estão mais por perto.

Na época, ainda existia jornalismo cultural dedicado às artes da cena no Rio de Janeiro e havia pelo menos cinco pessoas escrevendo crítica de teatro adulto regularmente para os jornais impressos da cidade. No entanto, me parecia que faltava espaço para uma discussão mais demorada sobre o teatro contemporâneo – e um olhar mais afinado com as proposições dos artistas que se dedicavam à pesquisa de linguagem. Parte da crítica jornalística daquele momento na capital fluminense, especialmente a do jornal O Globo, adotava uma postura autoritária e normativa. Era característica da época a cultura do protagonismo individual, do “grande nome”. Ainda estamos na transição para uma outra mentalidade, mas ali já se desenhava uma espécie de horizontalização dos lugares de poder. O advento da internet é o sinal mais evidente dessa transformação.

Agora, com a virtualização de tudo, pela necessidade de uma emergência sanitária sem precedentes, é possível visualizar uma nova onda dessa transformação imensa que já estávamos vivenciando com os avanços apressadíssimos das tecnologias, especialmente dos meios de comunicação. As placas tectônicas da cultura não estão apenas se movendo numa velocidade agora mais sensível; elas também estão se desmaterializando sob os nossos pés e nos lançando no ar. O teatro do Brasil tem encontrado um lugar nesse universo de convivialidade remota e vai encontrar outros lugares depois desse grande trauma

De certo modo, contra esse cenário de autoridade vertical, a revista surgiu querendo abrir espaço para arejar a conversa. De 2008 até hoje, muitas pessoas gostaram da ideia e colaboraram com a revista, enviando textos para as suas cinco seções: críticas, estudos, conversas, processos e traduções. O ritmo das edições e a dinâmica de participação variou bastante ao longo dos anos.

No segundo semestre de 2009, um hacker invadiu o sistema (que era muito precário, não tinha nem backup) e deletou tudo o que tinha no site. Tudo. Textos, imagens, comentários, até as fotos dos colaboradores. Sem dinheiro para investir em um novo site naquele momento e tendo que me dedicar à escrita da monografia de final de curso, demorei um pouco para me recuperar dessa violência tão imaterial e tão concreta. Houve um hiato de alguns meses na existência da Questão de Crítica, mas foi nesse intervalo que eu escrevi o trabalho que viria a publicar em 2015 com o título O crítico ignorante – Uma negociação teórica meio complicada, pela Editora 7Letras. Foi um momento importante, em que pude colocar no papel o que era o meu projeto de crítica naquela época e que se mesclava com o projeto da revista.

Com a ajuda de uma amiga designer, a Denise Barros, consegui fazer um novo site, desta vez na plataforma WordPress e com nova identidade visual. Postei novamente cada um dos textos que haviam sido deletados, retomando a revista no início de 2010. Nesse ano, fiz a minha primeira cobertura crítica em uma outra cidade para a Questão de Crítica. Eu e Felipe Vidal fomos convidados para o Acto 2!, encontro realizado em Belo Horizonte pelo Espanca!, com o Grupo XIX (SP) e a companhia brasileira de teatro (PR).

Em 2011, surgiu o Encontro Questão de Crítica, realizado no Galpão Gamboa com apoio da Secretaria Municipal de Cultura do Rio. Fizemos uma homenagem a Yan Michalski [1932-1990, destacado crítico, ensaísta e professor polaco-brasileiro] com uma palestra de abertura da Fátima Saadi, que então se dedicava à Revista Folhetim, e convidamos várias pessoas para discutir assuntos relacionados à crítica e ao teatro. Todos os debates (deste e dos encontros que viriam depois) foram gravados e estão disponíveis no canal que criamos no Vimeo naquele momento, a TV Questão de Crítica.

No ano seguinte, fizemos a primeira edição do Prêmio Questão de Crítica, no Teatro Gláucio Gil, onde acontecia a Ocupação Complexo Duplo, cuja direção artística eu compartilhei com Felipe Vidal. Para entregar os troféus – uma garrafa de cachaça com o rótulo personalizado –, convidamos a equipe de técnicos e funcionários do teatro. Foi uma festa informal, sem alarde, e assim seguimos em todas as premiações. Depois fizemos, entre 2014 e 2016, o Prêmio Yan Michalski, que premiava artistas-alunos de universidades e cursos profissionalizantes.

Elenize Dezgeniski Participantes do Idiomas – Fórum Ibero-Americano de Crítica de Teatro realizado em Curitiba, em 2016, com convidados de Argentina, Uruguai, Portugal e Espanha, além de Brasil

O Prêmio QdC foi acolhido pelo Espaço Sesc, na gestão da Bia Radunski, que nos deu um apoio fundamental. Foi lá também que realizamos o 2º Encontro Questão de Crítica, para o qual ganhamos um edital na SMC, o FATE (Fundo de Apoio ao Teatro) – salvo engano, um dos únicos, em todos esses anos, que tinha uma categoria para eventos dessa natureza. Isso foi em 2013, ano em que um convite do professor Fernando Mencarelli (UFMG) e do Galpão Cine Horto proporcionou um encontro que ampliou significativamente o universo da Questão de Crítica. Fazer a cobertura crítica do Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto daquele ano me aproximou de pessoas que também estavam se dedicando à crítica de teatro na internet: o pessoal do Teatrojornal, Horizonte da Cena e Satisfeita, Yolanda? – que mais tarde formariam a DocumentaCena – Plataforma de Crítica.

No ano seguinte, também a convite do Menca e da professora Sílvia Fernandes, fizemos, junto com os mesmos colegas da DocumentaCena e ainda outros críticos, a cobertura da primeira edição da MITsp – Mostra Internacional de Teatro de São Paulo. Nessa época, diversos festivais adotaram essa prática. Estivemos em edições subsequentes da MITsp e outros festivais da capital paulista, como a Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, a Bienal de Teatro da USP, o Cena Contemporânea, de Brasília, entre outros. Nesse contexto de encontros em festivais, a DocumentaCena foi tateando as suas possibilidades de organização.

Em 2015, com apoio do Rumos Itaú Cultural, foi possível realizar o 3º Encontro Questão de Crítica. Foi uma grande alegria, porque o edital teve cerca de 1.500 inscritos e ficamos entre os 108 selecionados. Ao mesmo tempo, conseguimos apoio de um edital do Rio para quatro edições da revista e a realização de algumas entrevistas para o nosso canal no Vimeo. Reunimos muita gente e publicamos um livro (impresso e digital, com acesso livre) com o conteúdo gerado nos debates. Realizamos um sonho antigo que eu tinha, a Mostra de Teatro Brasileiro Filmado, com vídeos de peças do Rio e de São Paulo, do fim dos anos 1960 até o ano 2000. Cada projeção destes vídeos era mediada por um pesquisador ou pesquisadora, com uma discussão em seguida. Nessa ocasião, lancei O crítico ignorante, livro com a pesquisa realizada em 2009.

2016 também foi um ano muito especial. Logo em janeiro publiquei o primeiro podcast da revista. Naquela época, esse formato já me interessava muito, mas eu nunca consegui me dedicar a ele com regularidade. Nesse ano, correalizamos e participamos do Encontro DocumentaCena, em Belo Horizonte, com nossas parceiras de Minas, do Recife e de São Paulo. No segundo semestre, aconteceu um projeto que considero muito importante, sonhado, realizado e vivenciado com muito carinho por mim e pela Luciana Eastwood Romagnolli, resultado dos planos que se iniciaram lá naquele encontro de 2013 em BH. Com patrocínio da Caixa Cultural de Curitiba, fizemos o Idiomas – Fórum Ibero-Americano de Crítica de Teatro, com convidados de países como Argentina, Uruguai, Portugal e Espanha, além de participantes de várias cidades do Brasil. Nessa ocasião, lançamos o site da plataforma, agora compartilhada entre a Questão de Crítica, o Horizonte da Cena e o Satisfeita, Yolanda?. Todo o conteúdo gerado no Idiomas está no canal da DocumentaCena no YouTube. Nesse mesmo ano, participei do primeiro congresso da Associação Internacional de Críticos de Teatro, da qual tive a iniciativa de criar uma seção brasileira, com críticos de várias cidades. O desejo de interlocução em âmbito nacional sempre esteve presente na Questão de Crítica. Não foram raras as vezes em que a revista abrigou textos escritos por pessoas de outras cidades, sobre artistas de outras cidades.

Mas, aquele momento tão efervescente levou um balde de água fria com o golpe que destituiu a presidenta Dilma Rousseff do seu cargo e colocou o Brasil em uma descida cada vez mais íngreme ao fundo do poço. A realização de eventos dedicados à reflexão sobre teatro tem sido cada vez mais difícil. Não foi mais possível fazer uma nova edição do Idiomas, por exemplo, nem conseguir apoios para a revista. O Rio de Janeiro elegeu um bispo da IURD [Igreja Universal do Reino de Deus] como prefeito da cidade. As políticas culturais, tanto do estado (que há mais tempo já vinha sofrendo o desmonte da cultura) quanto da cidade, simplesmente deixaram de existir.

Nessa época, o que sustentou a energia da revista foi a realização do Prêmio Questão de Crítica. Ao mesmo tempo em que a premiação tomava demais o nosso tempo para que conseguíssemos escrever com a devida regularidade, as discussões que tínhamos para pensar as premiações foram, para mim, como um espaço de formação. Durante um determinado período de planejamento do Prêmio, a comissão julgadora tinha encontros e embates que enfrentavam a difícil e contraditória tarefa crítica de valorar trabalhos teatrais. Nesta época, se formou um grupo que permaneceria até a edição mais recente da premiação: Daniel Schenker, eu, Mariana Barcelos, Patrick Pessoa, Paulo Mattos, Renan Ji e Viviane da Soledade. Mas, por conta do excesso de demandas que uma premiação impõe ao longo do ano inteiro, com o tempo foi ficando difícil manter essa ação sem remunerar o júri. Então, o Prêmio Questão de Crítica precisou fazer uma pausa. A última edição foi em 2019. Nos últimos anos tínhamos abolido a dinâmica indicados/vencedores, destituído a separação em categorias, e começado timidamente a incluir a dança. A propósito, a dança tem estado cada vez mais presente na revista com a colaboração da Ivana Menna Barreto.

Em 2018, a Questão de Crítica completou 10 anos de atividades, com comemoração em uma mesa-redonda na MITsp, a convite do Antonio Araújo. Daquele momento até fins de 2019, a revista ficou em suspenso, como se tivesse tirado um ano sabático. Por trás disso, eu estava trabalhando sem parar, a equipe bastante dispersa, e ficou impossível cuidar das publicações. As demandas da escrita da minha tese de doutoramento diminuíram radicalmente as possibilidades de dedicação à revista, até que eu consegui defender a tese em meados de 2019 e ficar livre para voltar a me dedicar à Questão de Crítica. De lá para cá, estou tentando recuperar o ritmo.

Guto Muniz A mesa-redonda ‘Daqui a 10 anos’ marcou primeira década da Questão de Crítica em ação reflexiva realizada no Goethe-Institut São Paulo e integrada à MITsp de 2018

Quanto aos projetos de encontros e intercâmbio, no final de 2018 apareceu uma luzinha no fim do túnel. Com os meus comparsas Felipe Vidal e Paulo Mattos, e em parceria com o Goethe-Institut do Rio, conseguimos apoio do Sesc Copacabana para a primeira edição de um projeto que estava sendo gestado por nós há muito tempo, a Complexo Sul – Plataforma de Intercâmbio Internacional, projeto do Complexo Duplo e da Questão de Crítica. A partir da Panorama Sur, da Argentina, da Movimiento Sur, do Chile, e da Experimenta Sur, da Colômbia, criamos no Rio uma plataforma para proporcionar espaços de intercâmbio com artistas latino-americanos e para formação de artistas brasileiros que queiram desenvolver projetos autorais. Na proposta nuclear da Complexo Sul, está o entendimento de que a encenação, a dramaturgia e o pensamento crítico são praticamente uma coisa só, são partes de um mesmo complexo.

Em 2019, não conseguimos dar continuidade a esse projeto, mas o ano de 2020, virando tudo do avesso, nos fez pensar que seria bem possível realizar uma edição online e reunir nossos colegas latino-americanos novamente – agora sem as despesas de logística. E que também seria possível proporcionar encontros e espaços de experimentação (mesmo que apenas virtualmente) para artistas de diferentes partes do Brasil, e não só do Rio de Janeiro. Isso nos deu um novo fôlego.

Final de 2020… Enquanto escrevo este texto, não posso deixar de pensar que mais de 182.000 pessoas morreram de COVID-19 neste país. A pandemia mudou radicalmente as nossas vidas e está muito difícil de enxergar o futuro. Ainda assim, desde o final de março e o início de abril, o acesso a inúmeros registros em vídeo de espetáculos de toda parte e as surpreendentes experimentações de teatro online reanimaram a revista. Os problemas que se colocaram para as definições dadas do que é ou do que pode ser o teatro têm nos demandado escuta, pensamento e conversa. E um chamado para a oralidade, para as conversas online ao vivo. A possibilidade de ter, em uma plateia virtual, participantes de diferentes cidades ao mesmo tempo não me parece uma coisa banal. Pelo contrário, pode ser uma grande abertura. A afetuosidade que tenho experimentado nesses encontros me parece sinalizar que há o que plantar e colher nesse espaço etéreo de conexões imprevistas. Em larga medida, a expansão das possibilidades da internet, lá no início dos anos 2000 a 2010, viabilizou uma perspectiva mais fresca e mais livre para o exercício da crítica de teatro. Foi esse movimento histórico que viabilizou o surgimento da Questão de Crítica. Agora, com a virtualização de tudo, pela necessidade de uma emergência sanitária sem precedentes, é possível visualizar uma nova onda dessa transformação imensa que já estávamos vivenciando com os avanços apressadíssimos das tecnologias, especialmente dos meios de comunicação. As placas tectônicas da cultura não estão apenas se movendo numa velocidade agora mais sensível; elas também estão se desmaterializando sob os nossos pés e nos lançando no ar. O teatro do Brasil tem encontrado um lugar nesse universo de convivialidade remota e vai encontrar outros lugares depois desse grande trauma. Nada será como antes – é o que dizem os cientistas e os astrólogos, nem mesmo com a chegada das vacinas. Ainda assim, penso que, como sempre, os caminhos encontrados pelos artistas que se lançaram à experimentação em um território desconhecido continuam sendo os caminhos mais desafiadores e interessantes a serem percorridos pela crítica. Meu projeto de crítica, neste momento, está em franco processo de autoexame. Mas os meus votos de dedicação à Questão de Crítica foram renovados. Com amor.

.:. Leia mais sobre o dossiê Biocrítica, a revista Questão de Crítica e a plataforma DocumentaCena

Daniele Avila Small (Rio de Janeiro, 1976) é crítica, pesquisadora e curadora de teatro. Doutora em artes cênicas pela UNIRIO, é idealizadora e editora da revista Questão de Crítica. Em 2017, dirigiu Há mais futuro que passado – um documentário de ficção. Foi curadora dos Olhares Críticos, eixo reflexivo da MITsp entre 2018 e 2020, dentre outros projetos de formação, teoria e crítica de teatro desde 2011, como as edições do Encontro Questão de Crítica, do Idiomas – Fórum Ibero-Americano de Crítica de Teatro e da Complexo Sul – Plataforma de Intercâmbio Internacional. Integrou também as equipes de curadoria do FIT BH 2018 no projeto Corpos Dialetos, da 6ª edição da Janela de Dramaturgia (CCBB-BH) e da seleção local do FIAC – Festival Internacional de Artes Cênicas da Bahia. Em 2020, foi uma das curadoras da Mostra Temática da 14ª CineBH, dedicada ao teatro online.

Tradutora, pesquisadora e crítica de teatro. Doutoranda em Artes Cênicas pela Unirio, é mestra em História Social da Cultura pela PUC-Rio e bacharel em Teoria do Teatro pela Unirio. Autora do livro O crítico ignorante – uma negociação teórica meio complicada (7Letras, 2015) e da peça Garras curvas e um canto sedutor (Cobogó, 2015). Idealizadora e editora da revista eletrônica Questão de crítica, integra o coletivo Complexo Duplo e a DocumentaCena – Plataforma de Crítica.

Relacionados