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Crítica

A poesia vinga a dor da outra

13.3.2021  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Print da tela

Estamos vivas é uma criação solo do coletivo Atuadoras que subverte a violência sistêmica à mulher. Toma daquelas armas para pôr fim aos privilégios do patriarcado, como parte da sociedade vem cobrando conscientemente seus direitos. Na peça, a narradora é assassina serial de estupradores, feminicidas e abusadores de esposas, namoradas, filhas e outras tantas cidadãs. Opera com tirocínio de quem matou por vingança e reagiu movida, deliberadamente, pelas sujeições que sofreu desde a infância, dentro de casa, assim como viu acontecer com outras pessoas da família, na vizinhança e no espaço público em geral.

O texto e a atuação de Maysa Lepique invertem os papeis da brutalidade. E o fazem a partir de um território invisibilizado: o do cárcere feminino, de onde a protagonista elenca os atos que cometeu, atando-os à memória de sua avó chamada Iá Mi. O nome evoca a força agressiva transformadora de Iá Mi Oxorongá, também grafada Iyami Osorongá, o que significa Minha Mãe Oxorongá, orixá pilar na comunidade iorubá tradicional. O etnólogo e antropólogo Pierre Verger, que viveu anos na Bahia, descreve essas ajés, feiticeiras, como “mulheres velhas, proprietárias de uma cabaça que contém um pássaro. Elas mesmas podem se transformar em pássaros, organizando entre si reuniões noturnas na mata, para saciar-se com o sangue de suas vítimas, e dedicando-se a trabalhos maléficos variados”, conforme relata a pesquisadora Irinéia Maria Franco dos Santos[1].

Estamos vivas’ é filha de seu tempo, das identidades emancipatórias. As vozes que por ali navegam expressam a representatividade das suas criadoras e vêm atravessadas por pesquisa de campo. O vocabulário, a gestualidade e a cultura das encarceradas soam inerentes. O imaginário é delas

Referências míticas ou ancestrais como essas permeiam a dramaturgia que descola do revide, latente na descrição realista dos crimes, e culmina na experiência de estranhamento igualmente subversivo no modo como a encenação vem à tona por videoconferência ao vivo.

Em seu trabalho autoral, Maysa concilia pensamento crítico e tom fabular com falas pertinentes à condição feminina. A câmara fixa alcança diferentes planos por meio da movimentação da atriz no espaço cênico exíguo de uma cela. A variedade de campo alcançada através da proximidade e de deslocamentos longitudinais é proporcional à multitude de mulheres sugeridas pelo uso de tecidos e adereços para demarcar as mudanças temporais e espaciais com sutilezas. Assiste-se a uma inspirada modulação na maneira de interagir com objetos e fazer da apropriação desse habitat improvisado um lugar de tomada de consciência ao contrapor a liberdade ao ódio. Afinal, não faltam motivos “nesse mundo macho pra menina e mulher se estropiarem”.

Print da tela Maysa Lepique escreveu e atua em ‘Estamos vivas’, solo dirigido por Vera Lamy junto ao coletivo Atuadoras, fundado em 2006 por artistas e pensadoras que, por meio da arte, discutem questões pertinentes às mulheres do século XXI

O ritmo febril das palavras é atenuado por silêncios a denunciarem silenciamentos. Ou por imagens corporais e ações que produzem texturas, cores e volumes contrastantes de passagens terríveis. Como quando relata um estupro coletivo. Os olhos claros vítreos da atuante podem intimidar com fúria ou convencer de seus argumentos por justiça. Uma ambiguidade bastante produtiva ao expor a recusa à subordinação conservadora e dar o que pensar sobre a normalização das atitudes e omissões dos homens e do Estado, cometidas só pelo fato de elas serem elas, mulheres.

A fala confronta o falo sem a ênfase discursiva da causa que, evidentemente, move as demais integrantes da equipe de criação: a diretora Vera Lamy, a cenógrafa e iluminadora Silvana Marcondes e a coordenadora técnica e musical Evelyn Cristina. Elas estão como que abraçadas à Maysa no solo, presentes nas minúcias das composições, na usina imagética gerada quando assumem canções-chave na íntegra, minutos suspensivos, entre outras rupturas das convenções de abordagem da realidade prisional feminina em diferentes instâncias da arte.

Criada no semestre passado, portanto no âmbito do isolamento social por causa da pandemia, Estamos vivas é filha de seu tempo, das identidades emancipatórias. As vozes que por ali navegam expressam a representatividade das suas criadoras e vêm atravessadas por pesquisa de campo. O vocabulário, a gestualidade e a cultura das encarceradas soam inerentes. O imaginário é delas. Como no talento da autodeclarada vingadora – aliás, não nomeada – ao dominar a artesania do fabrico clandestino de cachaça, a maria-louca. A proeza lhe confere liderança.

Nuances que estimulam a pensar, por exemplo, qual seria o resultado se Mancha roxa, de Plínio Marcos, tivesse sido escrita por uma mulher, em 1988, peça central na dramaturgia brasileira quando o assunto são o cotidiano e os conflitos de mulheres presas. Algumas daquelas também mataram companheiros ou rivais e têm uma relação ambígua de colaboração e de agressão mútua.

Já a tarefa de vingar-se, que a personagem de Maysa toma para si, denota que violência e luta também são coisas de mulher, assim como o bordado – faz chiste das visões preconceituosas. Os posicionamentos são mais complexos do que parecem. Sua cólera lembra a de outro narrador da literatura nacional em conto de Rubem Fonseca, O cobrador (1979). Com o revólver 38 a tira color, o sujeito indignado acerta as contas com aqueles que, em seu entender, estão lhe devendo. “Estão me devendo comida, buceta, cobertor, sapato, casa, automóvel, relógio, dentes, estão me devendo”, desabafa após matar o dentista que lhe atendeu, mas se recusou a pagar.

Print da tela O gesto de vestir uma blusa simboliza a asa e reafirma, imageticamente, o sentimento de liberdade que está por trás das atitudes da protagonista ao evocar ancestrais no enfrentamento ao machismo estrutural

A personagem da peça em análise não pactua desse pendor terrorista. Suas execuções se contrapõem ao discurso normalmente delegado a homens, inclusive no campo das artes. A narradora não se quer santa, mas lutadora. Ela se queixa de que até as manchetes dos jornais demoram a se dar conta de que a pessoa por trás dos assassinatos em série é uma mulher, desmistificando clichês do sexo frágil.

Maysa Lepique povoa as cenas de outras fisionomias. Dá vazão à cidade, ágora de suas pelejas. À força-guia das que vieram antes, numa singela coreografia de tecidos sobrepostos que encobrem a cabeça e o tronco em determinado momento. Atrita plantas e ferramentas braçais, agulhas de tricô e lenço verde antiaborto. A contundência das ideias corresponde à dimensão estética alcançada pela disposição poética de ir a fundo no tema. Combate o machismo com convicção de linguagem e livros. Afinal, não se pode esquecer dos resquícios de processos históricos coloniais, escravagistas e inquisitoriais que subalternizaram as relações humanas e fizeram da crueldade a regra na balança dos gêneros, nos enfrentamentos dos povos indígenas e das pessoas negras. Basta lembrar das diminutas filas formadas na entrada de penitenciárias femininas em dias de visita. Retrato oposto ao de mães, mulheres, namoradas, filhos ou amigos alinhados nos portões dos presídios masculinos, anos a fio. É disso que se trata. Também.

PS: Na véspera da publicação deste texto, o Supremo Tribunal Federal decidiu, por unanimidade, que a tese da legítima defesa da honra, excrescência do Código Penal brasileiro vigente desde 1940, não pode mais ser aplicada em julgamentos nos tribunais do júri como argumento de defesa em casos de feminicídio, pois contraria princípios da Constituição.

Serviço:

Estamos vivas

Quando: Últimas apresentações sábado (13) e segunda (15), às 20h

Onde: Transmissão ao vivo pelo Zoom. O link de acesso é publicado meia hora antes nas redes sociais do coletivo Atuadoras, Facebook e Instagram.

Quanto: Grátis, as criadoras pedem ao público para colaborar com a campanha de arrecadação Libertas Cooperativa, iniciativa empenhada em realizar atividades formativas em regiões periféricas com alto índice de mulheres sobreviventes do sistema prisional.

Temas de bate-papos com personalidades convidadas após cada apresentação: “Ervas e bordados tecendo resistência feminista” (sábado, 13) e “Toda prisão é política” (segunda, 15).

Print da tela A relação da personagem de Maysa com objetos permite outras leituras aos crimes narrados sob o ponto de vista de quem sofreu violências física e psicológica desde a infância

Equipe de criação:

Texto e atuação: Maysa Lepique

Direção: Vera Lamy

Luz e cenário: Silvana Marcondes

Coordenação técnica e musical: Evelyn Cristina



[1] Santos, I.M.F. Iá Mi Oxorongá: As mães ancestrais e o poder feminino na religião africana. Sankofa. Revista de História da África e de Estudos da Diáspora Africana (v. 1, n. 2, dez. 2008).

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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