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Crítica

Cenas de uma felicidade relativa

22.3.2021  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Alexandre Brum Correa

Em certo momento de Ô, bença!, a narradora, uma artesã, detalha como dá forma a uma boneca a partir do barro. Começa pelo pé e avança por tronco, braços, mãos, ombros e, afinal, a cabeça, “pra ajudá o corpo a pensá”. As imagens pensam permanentemente nessa autodeclarada micropeça concebida, roteirizada e atuada por Bya Braga, que partilha a direção com Alexandre Brum Correa.

Acompanhada em transmissão online programada pelo La Movida Microteatro, espaço de Belo Horizonte, a obra de cerca de 15 minutos assume o tom barroco no modo próprio de se expressar em fala, gestualidade e transfiguração do corpo. É minuciosa nas faltas que moveram Esmeraldina até ali: pela primeira vez em vida ela conta com um banheiro para chamar de seu.

O componente crítico avança desde o ponto de partida: o chão do trabalho de artífice das ceramistas. Dali para as artes da cena foi um átimo. As linguagens fundem-se, demonstrando coerência da atriz, pesquisadora e pedagoga Bya Braga ao projetar em Esmeraldina a riqueza da tradição de uma gente e de uma terra que não deixaram de forjar sua cultura, a despeito da subtração permanente de direitos básicos

A ficção foi inspirada no caso de uma ceramista do Vale do Jequitinhonha (MG) que, a despeito de reconhecida pelas criações, não possuía sanitário dentro de casa. Aliás, como três em cada dez brasileiros. Em setembro passado, pesquisa do IBGE mostrou que o déficit de banheiro e de rede de esgotos no norte do país é de 79,2%, enquanto no sudeste corresponde a 11,3%.

Como tratar desse assunto em arte? Essas informações acerca do atraso e da desigualdade do Brasil no setor de saneamento não estão em cena, decorrem da curiosidade gerada pela fruição.

Bya aferra-se à fábula inspirada no convívio e memória cultivados junto a artistas populares. Por trás da singeleza, é possível avistar um elaborado sistema de decodificação de uma felicidade sincera e, ao mesmo tempo, expositiva da precariedade brasileira de doer na alma.

A personagem com matizes de comunidades rurais ocupa o espaço diminuto de uma banheira em um cômodo estilizado em cores e texturas vivas, reconhecíveis de moradias urbanas – set do próprio apartamento da atriz na capital mineira.

Correa, por sua vez, assina ainda a ambientação cênica e a construção da máscara que, lá pelas tantas, comporá a narrativa da protagonista – a caracterização da metade do rosto traz ares da commedia dell’arte até no registro de voz. Quanto ao espaço, esse artista ajuda a instaurar níveis de saturação na visualidade verde e rosa de paredes e azulejos, a contrastar a dimensão afetiva do texto e certa aridez das ações. Neste roçar, o idílio do banheiro não esconde o pano de fundo gritante.

O componente crítico avança desde o ponto de partida: o chão do trabalho de artífice das ceramistas. Dali para as artes da cena foi um átimo. As linguagens fundem-se, demonstrando coerência da atriz, pesquisadora e pedagoga ao projetar em Esmeraldina a riqueza da tradição de uma gente e de uma terra que não deixaram de forjar sua cultura, a despeito da subtração permanente de direitos básicos.

Dirigindo-se aos espectadores, como se estes ocupassem com ela as quatro paredes, exprime palavras e cantigas que inundam o imaginário a partir de uma ilhota: a banheira retrô. O trabalho denuncia a condição das pessoas desvalidas, jamais usuárias de um lavabo, sem abrir mão da solaridade que também carregam consigo na contracorrente.

Alexandre Brum Correa Em ‘Ô, bença!’, a atriz e pesquisadora Bya Braga homenageia artesãs do Vale do Jequitinhonha (MG) e suas bonecas de cerâmica ao conceber Esmeraldina, personagem que pela primeira vez tem um banheiro dentro de casa; também há referências aos minerais garimpados em rios de Minas Gerais e à commedia dell’arte

A fisionomia (visagismo) e as tranças desta moça são emoldurada por gestos e cantorias que deslizam na boa prosa e no espanto pelo advento do “meu banheirinho”. Dona de vocabulário físico minimalista, abraçado a objetos que alargam a navegação por águas, redes e peixes, ela reinventa e expande a existência a partir das lacunas. No que se subentende o princípio da concisão da obra longe de conformista, posto que a mediação se dá pela arte, de ponta a ponta.

Bya Braga põe a mão na massa tal qual as artistas emergidas da cultura do barro. E consegue traduzir esse movimento em plena crise sanitária aguda, num aceno tributário do histórico de praticante e estudiosa do teatro. Vide preceitos defendidos logo nas primeiras linhas de Étienne Decroux e a artesania de ator: caminhadas para a soberania (Editora UFMG, 2013), seu alentado ensaio derivado de doutoramento:

“O teatro parece estar perdendo continuamente a infância. Um crescimento é necessário. Porém, sua prática dentro da conduta da industrialização criativa parece afastá-lo demais do cultivo da sinceridade, da poesia, da imaginação, da receptividade afetiva e do cuidado com o mundo, dos deslimites do corpo e da fala do ator, da experiência e dos processos de criação da existência de quem o pratica”, escreve.

Ao emular uma boneca, Esmeraldina não foi esculpida, necessariamente, por meio da mímica corporal dramática legada pelo artista e pensador francês Decroux, influência patente nos percursos de Bya e Correa. Contudo, a atriz modera, com lucidez e ludicidade, a artesania intelectual para acessar corporalmente lugares íntimos que se revelam universais nesse retrato do abandono do cidadão pelo Estado.

Ficha técnica:

Concepção e atuação: Bya Braga

Direção: Bya Braga e Alexandre Brum Correa

Ambientação cênica e máscara: Alexandre Brum Correa

Roteiro: Bya Braga

Assessoria de mascaramento: Elisa Rossim

Iluminação: Eliezer Sampaio

Assessoria artística e histórica para a artesania do Vale do Jequitinhonha: Terezinha Furiati

Produção: Duo Mimexe e Jacqueline de Castro

Fotos e design gráfico: Alexandre Brum Correa

Realização: Duo Mimexe Apoio: Grupo de Pesquisa LAPA (Laboratório de Pesquisa em Atuação) da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (EBA-UFMG/CNPq)

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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